Por Armando Alexandre dos Santos
A Bíblia Sagrada, além de exprimir a Palavra de Deus e, enquanto tal,
constituir uma obra de caráter eminentemente religioso, também é, sem dúvida,
uma obra literária de grande beleza, com perfeições maravilhosas que o espírito
humano pode indefinidamente ir aprofundando e sempre encontrará coisas novas.
No conjunto dos seus 73 Livros inspirados, a Bíblia se revela de beleza,
profundidade e lógica impecáveis. Tem uma unidade extraordinária e, ao mesmo
tempo oferece uma riquíssima variedade de temas e de estilos. Nela se encontram
livros épicos, líricos, místicos, históricos, jurídicos, de provérbios e ditos
curtos etc. Temos, nela, textos populares ao alcance de qualquer pessoa e temos
tratados profundíssimos. E, tanto uns quanto outros, todos têm uma densidade
que desafia os cérebros mais poderosos de todos os tempos, que sempre descobrem
coisas novas e nunca conseguem chegar ao fundo de tanta riqueza escondida.
Para usar uma metáfora extraída da própria Bíblia, eu diria que sua
leitura oferece nutrição e prazer sensorial similar ao do maná, o alimento
milagroso que sustentou os hebreus durante sua longa caminhada pelo deserto, em
demanda da Terra Prometida. O maná continha em si não somente todos os
elementos nutritivos, mas também todos os sabores desejáveis ao palato humano.
Era, portanto, um alimento completo de todos os pontos de vista. Daí a liturgia
católica aplicar analogicamente à Eucaristia, o Alimento da Vida, as passagens
bíblicas que falam do maná, por ser este verdadeiramente uma prefigura
simbólica da Eucaristia: o maná era o alimento que acompanhava os hebreus na
sua jornada rumo à Terra Prometida, alimentando-os e sustentando-os; da mesma
forma, a Eucaristia é o Pão Celestial que acompanha os fiéis durante a
peregrinação neste mundo, nutrindo-os e dando-lhes forças, na peregrinação rumo
à Vida Eterna – da qual a Terra Prometida dos judeus foi, também, uma prefigura.
Mesmo abstraindo de seus elementos religiosos, a Bíblia fornece
abundantíssima (ou melhor, inesgotável) matéria para considerações de ordem
literária. Uma coisa muito importante, entretanto, para bem entendermos isso, e
para não nos perdermos em falsos dilemas que mais desnorteiam do que orientam,
é ter presente que a Bíblia não deve ser lida com espírito matemático... Se
houver algum matemático entre meus leitores, não me leve a mal, mas o próprio
do espírito matemático é a lógica fechada do 2 e 2 são 4. Isso é verdade numa
certa dimensão, não porém em outras, que admitem e requerem uma liberdade muito
maior.
É preciso considerar, inicialmente, a diferença enorme que existe entre o
espírito ocidental (que é o nosso, aquele em que formamos nosso espírito e ao
qual estamos habituados) e o espírito oriental. Por exemplo, é preciso
compreender bem uma coisa muito presente nas Escrituras: o midraxe.
O gênero midráshico é difícil de entender para nós, ocidentais, mas para
um oriental ele é muito normal, muito natural. Uma vez perguntei ao cultíssimo
beneditino D. Estevão Bettencourt qual seria a melhor tradução para o termo
hebraico midrash. Ele respondeu que seria glosa. Quando se glosa alguma coisa, não se
repete a coisa glosada pura e simplesmente, mas se desenvolve com liberdade,
por analogias, por extensão, coisas que têm alguma ligação com ela. Essa
abundância de sentidos analógicos desnorteia, por vezes, uma cabeça ocidental
como a nossa...
Daí o extremo perigo de se analisar os textos bíblicos com nossas cabeças
que, queiramos ou não, foram influenciadas pelo cartesianismo e, mais
recentemente pelo positivismo.
Um exemplo, entre inúmeros outros: quando se lê, no início do evangelho
de São Mateus, a genealogia de Jesus Cristo, desde Abraão, em 42 gerações,
dividida em 3 séries de 14, temos, claramente, um recurso midráxico. Um
ocidental, quando lê essa nominata de ancestrais do Messias, imediatamente se
põe a fazer contas, há calcular o tempo, a verificar cartesianamente se aquela
genealogia pode estar realmente correta. Se for um espírito crítico e
racionalista, quererá apontar, possivelmente, erros na Bíblia, contradições com
outros fatos da própria Bíblia etc. etc. Para um oriental, entretanto, a reação
é completamente diferente. Ele contempla a beleza simbólica da tríplice série
de ancestrais, ele se encanta com essa beleza, ele usa a divisão das três
séries como recurso mnemônico, e nem sequer se incomoda fazendo contas...
É curiosa, sem dúvida, essa diferença profunda entre ocidentais e
orientais, mas é inegável que ela existe... Ora, a Bíblia, inspirada por Deus,
se destina, mediatamente, ao gênero humano em todos os tempos e lugares, mas
direta e imediatamente foi escrita por orientais para orientais. Se não se tem
isso em vista, é inevitável que nos percamos pelo caminho, interpretando
quadradamente trechos que exigem compreensão muito mais matizada.
Esse é um cuidado elementar, que devemos ter para podermos apreciar a
imensa beleza literária da Bíblia.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS- Historiador e jornalista, diretor da
Revista da Academia Piracicabana de Letras-(PAZ).
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