sábado, 12 de janeiro de 2013

COMO COMPREENDER A BELEZA LITERÁRIA DA BÍBLIA

Por Armando Alexandre dos Santos

A Bíblia Sagrada, além de exprimir a Palavra de Deus e, enquanto tal, constituir uma obra de caráter eminentemente religioso, também é, sem dúvida, uma obra literária de grande beleza, com perfeições maravilhosas que o espírito humano pode indefinidamente ir aprofundando e sempre encontrará coisas novas.
No conjunto dos seus 73 Livros inspirados, a Bíblia se revela de beleza, profundidade e lógica impecáveis. Tem uma unidade extraordinária e, ao mesmo tempo oferece uma riquíssima variedade de temas e de estilos. Nela se encontram livros épicos, líricos, místicos, históricos, jurídicos, de provérbios e ditos curtos etc. Temos, nela, textos populares ao alcance de qualquer pessoa e temos tratados profundíssimos. E, tanto uns quanto outros, todos têm uma densidade que desafia os cérebros mais poderosos de todos os tempos, que sempre descobrem coisas novas e nunca conseguem chegar ao fundo de tanta riqueza escondida. 
Para usar uma metáfora extraída da própria Bíblia, eu diria que sua leitura oferece nutrição e prazer sensorial similar ao do maná, o alimento milagroso que sustentou os hebreus durante sua longa caminhada pelo deserto, em demanda da Terra Prometida. O maná continha em si não somente todos os elementos nutritivos, mas também todos os sabores desejáveis ao palato humano. Era, portanto, um alimento completo de todos os pontos de vista. Daí a liturgia católica aplicar analogicamente à Eucaristia, o Alimento da Vida, as passagens bíblicas que falam do maná, por ser este verdadeiramente uma prefigura simbólica da Eucaristia: o maná era o alimento que acompanhava os hebreus na sua jornada rumo à Terra Prometida, alimentando-os e sustentando-os; da mesma forma, a Eucaristia é o Pão Celestial que acompanha os fiéis durante a peregrinação neste mundo, nutrindo-os e dando-lhes forças, na peregrinação rumo à Vida Eterna – da qual a Terra Prometida dos judeus foi, também, uma prefigura. 
Mesmo abstraindo de seus elementos religiosos, a Bíblia fornece abundantíssima (ou melhor, inesgotável) matéria para considerações de ordem literária. Uma coisa muito importante, entretanto, para bem entendermos isso, e para não nos perdermos em falsos dilemas que mais desnorteiam do que orientam, é ter presente que a Bíblia não deve ser lida com espírito matemático... Se houver algum matemático entre meus leitores, não me leve a mal, mas o próprio do espírito matemático é a lógica fechada do 2 e 2 são 4. Isso é verdade numa certa dimensão, não porém em outras, que admitem e requerem uma liberdade muito maior. 
É preciso considerar, inicialmente, a diferença enorme que existe entre o espírito ocidental (que é o nosso, aquele em que formamos nosso espírito e ao qual estamos habituados) e o espírito oriental. Por exemplo, é preciso compreender bem uma coisa muito presente nas Escrituras: o midraxe. 
O gênero midráshico é difícil de entender para nós, ocidentais, mas para um oriental ele é muito normal, muito natural. Uma vez perguntei ao cultíssimo beneditino D. Estevão Bettencourt qual seria a melhor tradução para o termo hebraico midrash. Ele respondeu que seria glosa. Quando se glosa alguma coisa, não se repete a coisa glosada pura e simplesmente, mas se desenvolve com liberdade, por analogias, por extensão, coisas que têm alguma ligação com ela. Essa abundância de sentidos analógicos desnorteia, por vezes, uma cabeça ocidental como a nossa...
Daí o extremo perigo de se analisar os textos bíblicos com nossas cabeças que, queiramos ou não, foram influenciadas pelo cartesianismo e, mais recentemente pelo positivismo.
Um exemplo, entre inúmeros outros: quando se lê, no início do evangelho de São Mateus, a genealogia de Jesus Cristo, desde Abraão, em 42 gerações, dividida em 3 séries de 14, temos, claramente, um recurso midráxico. Um ocidental, quando lê essa nominata de ancestrais do Messias, imediatamente se põe a fazer contas, há calcular o tempo, a verificar cartesianamente se aquela genealogia pode estar realmente correta. Se for um espírito crítico e racionalista, quererá apontar, possivelmente, erros na Bíblia, contradições com outros fatos da própria Bíblia etc. etc. Para um oriental, entretanto, a reação é completamente diferente. Ele contempla a beleza simbólica da tríplice série de ancestrais, ele se encanta com essa beleza, ele usa a divisão das três séries como recurso mnemônico, e nem sequer se incomoda fazendo contas...
É curiosa, sem dúvida, essa diferença profunda entre ocidentais e orientais, mas é inegável que ela existe... Ora, a Bíblia, inspirada por Deus, se destina, mediatamente, ao gênero humano em todos os tempos e lugares, mas direta e imediatamente foi escrita por orientais para orientais. Se não se tem isso em vista, é inevitável que nos percamos pelo caminho, interpretando quadradamente trechos que exigem compreensão muito mais matizada.
Esse é um cuidado elementar, que devemos ter para podermos apreciar a imensa beleza literária da Bíblia.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS- Historiador e jornalista, diretor da Revista da Academia Piracicabana de Letras-(PAZ).

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