"Cinquenta anos em cinco", era o que
Juscelino Kubitschek costumava afirmar ao se referir sobre o seu mandato,
fazendo alusão ao impulso desenvolvimentista que o Brasil ganharia com a
introdução da indústria automobilística no Brasil. Sem dúvida que essa
iniciativa trouxe progresso em muitos aspectos, mas trouxe a reboque, diversos
malefícios também, fora o fato de que sim, o Brasil cresceu, mas muito aquém do
exagerado slogan de seu governo.
E foi dentro dessa perspectiva socioeconômica, que
o jovem cineasta Luiz Sérgio Person construiu o seu primeiro longa-metragem, denominado
São Paulo S/A. Logo na primeira cena, Person já nos arrebata. Do lado de fora
de um prédio de classe-média no centro de São Paulo, vemos um casal discutindo
dentro de um apartamento residencial.
Ecos Hitchcockianos óbvios logo de cara, embora na
biografia de Person, isso não seja citado com ênfase. Ele era entusiasta do
cinema italiano principalmente e talvez o mestre do suspense, não tivesse lhe influenciado fortemente, mas convenhamos, essa primeira cena evoca tal suspeita. O
sujeito transtornado é Carlos, interpretado por Walmor Chagas, num de seus
melhores (senão o melhor), papéis no cinema.
A sua jovem esposa é Luciana, interpretada por Eva
Wilma e a briga era mais uma entre tantas que o casal travava, pela
insatisfação dela perante o comportamento de seu marido, fugindo ao padrão
tradicional da família classe média daquele período.
Carlos tem amantes, mas não é nem pela vida dupla
(no caso tripla), que leva, mas pelo fato de que não se trata de um hedonista
pura e simplesmente. O personagem vive sob pressão o tempo todo e nem o prazer
carnal dividido com várias mulheres, lhe satisfaz. Sua inquietude é profunda e
reflete o massacre da sociedade que deixa o homem mediano acuado, sem
perspectivas e pior que tudo, derrotado diante dessa engrenagem.
Carlos é recém-formado em desenho industrial e
acaba de ser admitido na Volkswagen. Casou-se com Luciana (Eva Wilma), apenas
para cumprir o roteiro esperado de um jovem classe média que se forma na
faculdade e constituiu uma família.
E ela, idem (apesar de "trabalhar fora",
algo incomum para a época, como professora de inglês), seguindo o padrão da
típica "menina de família", mas sua frustração é diferente em relação
à Carlos, pois não apresenta a mesma inquietude que atormenta Carlos em relação
à sua crise existencial.
Isso se intensifica, com as cenas onde aparecem as
amantes de Carlos (Ana - Darlene Glória e Hilda - Ana Esmeralda). Como já disse
anteriormente, nem o prazer sexual lhe satisfaz inteiramente e a sensação de
vazio o consome.
Conhece então o empresário italiano, Arturo
(interpretado por Otello Zeloni), que prospera vertiginosamente no ramo das autopeças,
sinal de que a indústria automobilística girava a economia paulista naquele
momento de grande euforia. Carlos larga o emprego na Volkswagen e vai trabalhar
como gerente de Arturo, na loja de autopeças. Só que Arturo é um tremendo
sonegador de impostos e muito da sua prosperidade acintosa vem dessa falcatrua
contábil...
Luciana é ambiciosa e ingênua ao mesmo tempo. Acha
Arturo um exemplo de homem bem sucedido a quem Carlos deveria imitar, o que o
deixa ainda mais deprimido. Carlos entra numa crise e nada mais lhe dá
esperanças. O massacre da grande cidade, via sociedade de consumo desenfreado o
atormenta.
São incríveis as cenas dele andando atordoadamente
por ruas do centro de São Paulo, extravasando essa angústia indissolúvel. Sim,
Person estudou cinema na Itália (Centro Sperimentale de Cinematografia de Roma)
e é claro que absorveu muito do neorrealismo italiano e do estilo introspectivo
de cineastas do pós-realismo. Visconti, Antonioni e Zurlini, sem dúvida o
impressionavam.
Em São Paulo S/A, Person soube trabalhar essas
influências múltiplas de uma forma muito convincente. A dor existencial do
personagem Carlos se refletia no estômago, consumindo-o. A força motriz do
filme se baseou nessa emoção angustiante e convenhamos, Walmor Chagas
contribuiu muito com o sucesso do filme, através de sua interpretação notável.
Acho São Paulo S/A, um filme extraordinário, por
todos esses elementos que descrevi, no campo da estética cinematográfica, mas é
também um filme de virtudes técnicas. A fotografia PB é muito bonita (assinada
por Ricardo Aronovitch), trilha sonora muito boa de Cláudio Petráglia e edição
de Glauco Mirko Laurelli.
Uma curiosidade anacrônica merece ser mencionada :
Há uma cena onde o casal Carlos e Luciana vai ao cinema e vê-se um pôster do
filme "Seven Days in May", do diretor norte-americano, John
Frankenheimer. Ora, se o filme de Person dizia estar situado nos anos JK, entre
1957 e 1961, como poderiam estar indo ver um filme que só seria lançado em 1964?
Certamente a moça da continuidade distraiu-se e esqueceu de anotar esse
"pequeno detalhe" no seu caderninho...
Contei isso apenas como um fato engraçado, sem a
menor intenção de desabonar a obra, deixo bem claro. Mesmo porque, eu o
recomendo, sem reservas. Se não o viu, procure assisti-lo; se já o viu, cabe
revê-lo!
Para nossa sorte, Luiz Sérgio Person não parou por
aí e realizou mais filmes de grande qualidade. Todavia, para o nosso azar,
Person faleceu num acidente automobilístico nos anos setenta, com apenas 40
anos de idade e deixando a certeza de que nos brindaria com muitos outros
filmes de intensidade, como São Paulo S/A. C'est La Vie, como dizia o Greg
Lake...
Abertura de São Paulo, Sociedade Anônima
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