A finalidade desta admoestação é a caridade, que procede de coração
puro, de boa consciência e de fé sem hipocrisia. (1Tm 1 ,5)
São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII) |
Vamos iniciar pela fé, que é a primeira das
virtudes que existem no coração do homem justificado pela fé. Não sem razão, o
apóstolo acrescenta "sem hipocrisia" a fé. Pela fé vêm a
justificação, desde que seja verdadeira e sincera, não falsa e afetada. A fé
dos heréticos não conduz à justificação, pois não é verdadeira, é falsa; a fé
dos maus católicos não conduz à justificação por que não é sincera, mas
afetada. É afetada de duas maneiras: quando nós não acreditamos realmente, mas
somente fingimos acreditar; ou quando, apesar de acreditar, não é vivida, como
acreditamos que deve ser. Nestas duas situações é que as palavras de São Paulo
na epístola a Tito devem ser compreendidas: "Afirmam conhecer a Deus,
mas negam-no com seus atos". (Tt 1,16a) Desta maneira os santos padres
Jerônimo e Agostinho interpretam estas palavras do apóstolo.
Agora, desta primeira virtude de um homem justo,
nós podemos facilmente entender quão grande deve se a multidão daqueles que não
vivem bem, e, da mesma maneira, morrem no pecado. Eu vejo infiéis, pagãos,
heréticos e ateístas que são completamente ignorantes da arte de morrer bem. E
entre católicos, quantos existem que "afirmam conhecer a Deus, mas
negam-no com seus atos". Quem reconhece ser virgem a mãe de Nosso
Senhor, mas não teme blasfemar contra ela? Quem preza orar, jejuar, ser
caridoso e outras boas obras, mas ainda se permite vícios opostos? Eu omito
outras coisas que são conhecidas de todos. Aqueles dizem possuir fé "sem
hipocrisia", que não acreditam naquilo que dizem crer, ou não vivem de
acordo com os mandamentos da Igreja Católica; e, por isso, demonstram pela sua
conduta que ainda não começaram a viver bem, nem podem ter esperança de uma
morte feliz, exceto se por uma graça de Deus aprenderam a arte de morrer bem.
Jacques Du Broeucq, Estátua da Esperança (entre 1541-1545), Igreja Sainte-Waudru de Mons, Bélgica |
Outra virtude de um homem justo é a esperança, ou
uma "boa consciência", como São Paulo no ensina. Esta virtude vem da
fé, pois não há como ter esperança em Deus sem conhecer o Deus verdadeiro ou
não acreditar Nele como todo-poderoso e misericordioso. Mas, para exercitar e
fortalecer nossa fé, para que possa ser chamada não apenas esperança, mas
também confiança, uma boa consciência é necessária. Como se aproximar de Deus e
pedir seus favores, quando sabe ter cometido pecados e não tê-los expiados por
uma correta penitência? Quem pede um benefício ao inimigo? Quem pode esperar
ser perdoado por ele, se reconhece ter estado contra ele?
Escute o que um homem sábio pensa da esperança dos
ímpios: "A esperança do ímpio é como a palha levada pelo vento, como
espuma miúda que a tempestade espalha; é dispersa como fumaça pelo vento, fugaz
como a lembrança do hóspede de um dia" (Sb 5, 14). Assim o sábio
admoesta o ímpio, que sua esperança é fraca, não forte; fugaz, não persistente;
eles, enquanto estão vivos, ainda tem alguma esperança, em algum momento devem
se arrepender e reconciliar-se com Deus; mas quando a morte lhes chegar, a
menos que o Todo Poderoso por alguma graça especial mover seus corações e
inspirá-los verdadeiro arrependimento, sua esperança será transformada em
desespero, e eles dirão junto aos demais ímpios: "Sim, extraviamo-nos
do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou sobre nós, para nós nasceu
o Sol. Cansamo-nos nas veredas da iniquidade e perdição, percorremos desertos
intransitáveis, mas não conhecemos o caminho do Senhor! Que proveito nos trouxe
o orgulho? De que nos serviram riqueza e arrogância? Tudo isso se passou como
uma sombra" (Sb 5, 6-9a).
Portanto, deixemos o sábio nos corrigir, se
queremos viver e morrer bem, nós não devemos permanecer no pecado, mesmo que
por um momento, nem nos permitir enganar por uma vã confiança, que ainda
teremos muitos anos para viver e poderemos utilizar estes anos para ganhar
nosso perdão. >(via Tesouros da Igreja Católica).
-- Do Livro A Arte de
Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)
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