Tendo em vista o que já aconteceu ou o que a perspectiva histórica de determinados fatos nos oferece, pouco importando se declaradamente política ou religiosa, pode-se concluir que a manipulação das carências humanas quase sempre dá certo porque o manipulado ajuda muito, seu espírito de colaboração é notável. Ele só precisa de um empurrãozinho, de alguém que diga o que ele quer ouvir, fazendo dele o maior interessado e agente prioritário de um ideal. Parece não adiantar preveni-lo, pois ele ainda é capaz de se rebelar contra quem ousar mostrar-lhe a possibilidade de estar envolvido por uma grande farsa. A atitude do crente político ou religioso não é aceitável, mas é compreensível. Repetirei o resumo de um exemplo clássico, que mostrou na prática suas habilidades de grande líder:
“[...] Nunca ocorreria às suas cabeças fabricar mentiras tão colossais e eles não podem acreditar que outros possam ter a imprudência de distorcer a verdade tão infamemente. Mesmo que os fatos que provem que tal foi o que ocorreu possam ser apresentados claramente às suas mentes, eles, mesmo assim, duvidarão, hesitarão e continuarão pensando que deve haver outra explicação.” (Adolf Hitler, Mein Kampft. Vol I, ch X)
As grandes mentiras têm força de credibilidade, como Hitler afirmou, porque são concebidas a partir do conhecimento acumulado. São elas cientificamente elaboradas, portanto. Ciência significa conhecimento, seja ele qual for. Friedrich Engels concluiu o seguinte:
[...] A religião que subjugou o Império Romano e dominou sem dúvida a maior parte da humanidade civilizada por 1.800 anos, não pode ser explicada apenas declarando ser ela uma tolice resultante de fraudes. Não se pode elucidar esta questão e ter sucesso na explicação da sua origem e do seu desenvolvimento sem partir das condições históricas sob as quais surgiu e alcançou o domínio da situação.
http://www.marxists.org/portugues/marx/1882/05/11.htm
A minha concordância com este parágrafo de Engels vai até aí, ainda que eu não discorde de que a antiga arte da ilusão se aprimora com a demanda das necessidades sob controle. Quanto mais artificial e organizada a vida se torna, e novas necessidades vão se juntando às de sempre, um aprimoramento nos meios de controle social se faz necessário às castas governantes. Do mesmo modo, a reação a esse sistema é um sintoma positivamente saudável no caminho do alargamento da consciência humana, até por dar consistência ao seu oposto. Não há por que vê-lo de maneira diferente. O cristianismo também foi uma reação ao sistema estabelecido na época. Diria mesmo: a mais revolucionária reação cultural da história da humanidade. Daí o meu interesse pelo seu estudo. Por sorte, a constituição humana não permite a nossa espécie a mentira absoluta. Daí o polígrafo, o famoso detector de mentiras. Assim está resguardada a possibilidade de aprimoramento para a espécie complicada que somos.
Engels reconhece a engenhosidade do cristianismo. Gibbon igualmente havia se perguntado sobre ela e Hitler, na sua abordagem genérica, explicou-a em parte. Porém saber tirar proveito da tendência ao auto-engano é uma estratégia, não a explicação para essa carência aparentemente congênita. Ludwig Feuerbach conclui algo interessante a esse respeito, enfocando o homem religioso, por entender que o homem retira de si a sua essência mais elevada e mais nobre para adorá-la fora de si como Deus. O ser absoluto, o Deus do homem é a sua própria essência. Visivelmente, Feuerbach identifica algo no homem que é ele mesmo, mas está acima dele, e não se encaixa na realidade a sua volta. É como se o homem só conseguisse a melhor relação consigo mesmo de forma indireta, ritualizada e “purificada” da natureza a sua volta. Por isso, no cristianismo, Deus seria superior a natureza, na qual a regra imposta pela cadeia alimentar expõe a realidade cruel do utilitarismo da morte e da sua indiferença ao sofrimento. Não obstante, chego a lembrar da kipah (gorro em forma de cúpula) dos judeus, usada em ocasiões religiosas para lembrá-los de que há alguém acima deles, o que seria um modo de protegê-los ritualisticamente das armadilhas do próprio orgulho. A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo; mas, como o homem ainda se conhece pouco, Deus ainda é em grande parte um mistério acima da sua própria compreensão. Essa margem de desconhecimento é a porta aberta para o playground da esperteza e do abuso que muitos não querem ver fechada de modo algum.
*Ivani de Araújo Medina é carioca, nascido na Ilha do Governador em 1947. Formado em Artes Plásticas pela antiga Escola Nacional de Belas Artes na década de 1960, e autodidata e pesquisador em História do Cristianismo.
Imagens do Google - fotoformatação PVeiga.
Um comentário:
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