quarta-feira, 7 de novembro de 2012

CONFLITO INEVITÁVEL

Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 07 de novembro de 2012.

Euclides da Cunha na sua obra “Contrastes e Confrontos” denuncia as incursões peruanas que buscavam avidamente as ricas plagas onde a hevea abundava e caracteriza as hordas peruanas como uma “aglomeração irrequieta em que há todas as raças e não há um povo” que invade a floresta tumultuariamente dedicando-se mais à pilhagem do que a um trabalho produtivo. Uma massa humana que se liberta e rompe os Bastiões da Cordilheira em busca da terra exuberante e da hiléia magnífica já ocupada, sobretudo, pelos arrojados irmãos nordestinos.
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A salvação está no vingar e transpor a Cordilheira. Ali ao menos há a sugestão dominadora da civilização surpreendente dos Incas: a estrada de duas mil milhas distendida de Quito às extremas do Chile, lastrada pelas neves eternas, contorneando encostas abruptas em releixos (caminhos estreitos na borda de um abismo) de rocha viva, alcandorada (encarrapitada) em pontes pênseis sobre abismos, e estirando nas planuras as calçadas eternas de silhares (pedras lavradas em quadrado) unidos com cimento betuminoso; e os velhíssimos baluartes pré-incásicos feitos de montanhas inteiras arremessando-se nas alturas em sucessivos patamares ameados; e a ruinaria dos santuários do Sol com os seus aparelhos ciclópicos de blocos poligonais de pórfiro (rocha siliciosa muito dura) brunido (polido); e os longos aquedutos do monte Siva, em cujos canais subterrâneos, perfurando as serras, se espelham esforços de uma engenharia titânica...
Depois, descidas as vertentes Orientais da primeira cadeia dos Andes, transposta a “montaña” e a segunda Cordilheira — a terra exuberante é desmedida, prefigurando nas grandes matas a mesma hiléia amazonense.
Nesta região, tão outra, está — pela implantação do trabalhador e pelo equilíbrio da existência agrícola — a redenção daquelas gentes que possuem os melhores fatores para um elevado tirocínio histórico.
Mas, ao mesmo passo que lhes despontam estas esperanças, extingue-lhas a mesma Cordilheira com o seu largo tumultuar de píncaros e de pendores impraticáveis num talude vivo de muralha, que lhes trancam quase por completo as comunicações com o litoral.
De fato, o Pacífico, ainda que se rasgue o canal de Nicarágua, parece que pouco influirá no progresso do Peru. O seu verdadeiro Mar é o Atlântico; a sua saída obrigatória o Purus. Sabem-no há muito os seus melhores estadistas: a expansão para o Levante traduz-se-lhes como um dever elementar de luta pela vida. Revelam-no todos os insucessos de numerosas tentativas buscando libertá-lo das anomalias físicas que o deprimem. Revelou-as, desde 1879, C. Wiener:
Os peruanos aquilatam bem a importância enorme que teriam as estradas, ligando os afluentes navegáveis do Amazonas e do Ucaiali às cidades do litoral; fizeram todos os esforços para executá-las porque lhas impõem a lógica e o interesse; mas parece que a sua força de vontade é menor que a constituição física dos autóctones. (Wiener)
De feito, contemplando-se diante de um mapa a faixa costeira entre Pachacamas e Tumbez, nota-se um como diagrama daquelas tentativas desesperadas e perdidas. Foi a princípio, no Extremo Norte, a linha férrea de Paita a Piura, procurando os tributários Setentrionais do Solimões; depois, próxima e ao Sul, uma outra, de Lambayaque a Ferenafe: ambas estacionaram, trilhos imersos nos areais da costa. A terceira, lançada de Pascamayo à estação terminus de Cajamarca, e a quarta partindo de Salavery, pouco ao Sul de Trujillo — buscavam as linhas de derivação do Ucaiali: embateram ambas de encontro às fílades espessas e aos doleritos e quartzos duríssimos das Cordilheiras. A quinta, a admirável estrada de Oroya, dominou parte da serrania, mas ficou bem longe do seu objetivo essencial no transmontar as últimas cordas de serras, varar pelas planícies do Sacramento e alcançar o Purus.
Esta é expressiva: mostra como o traçado do grande tributário do Amazonas, em cujas margens contendem agora os flibusteiros, norteia de há muito a administração daquela República.
Por outro lado, desde 1859, com Faustino Maldonado e dez anos depois com o Coronel Latorre, sucessivas expedições se lançam para o Oriente impelidas por alguns abnegados caídos todos naqueles lugares remotos, numa extraordinária intuição dos interesses reais do seu país.
Estes antecedentes delatam nas perturbações que lavram em toda aquela zona um significado bem diverso do que lhe podem dar algumas correrias de seringueiros. A guerra iminente tem uma feição gravíssima.
Se contra o Paraguai, num Teatro de Operações, mais próximo e acessível, aliados às repúblicas platinas, levamos cinco anos para destruir os caprichos de um homem — certo não se podem individuar e prever os sacrifícios que nos imporá a luta com a expansão vigorosa de um povo. (CUNHA, 1975)
-   A Conquista do Alto-Purus e Alto-Juruá
Segundo Craveiro Costa em “A Conquista Ocidental do Deserto Ocidental”:
Já em 1870, os brasileiros, no Juruá, se haviam aventurado, pouco a pouco, avançando bravamente na direção das cabeceiras do grande curso fluvial, à cata das héveas, chegando às margens do Amônea e do Tejo, e, anos depois, em 1891, levaram as explorações ao Rio Breu, por lá, muitos deles, se fixando. Por toda parte, no Alto-Juruá, não havia uma só propriedade peruana. Tudo aquilo era tido pela população como terra brasileira, pertencente ao município amazonense de São Felipe (Eirunepé).
No Purus a ocupação das margens do grande Rio, na sua parte mais alta, em demanda das nascentes, data de 1892, a que remontam os primeiros estabelecimentos do Rio Chandless, daí subindo sempre nos anos posteriores.
O Rio Béo, pouco acima do Breu, marcava, em 1891, o Limite Meridional da ocupação efetiva brasileira no Juruá, que nesse ano alguns compatriotas nossos, dirigidos por João Dourado e Balduino de Oliveira, exploraram até à Boca do Rio que chamavam Dourado e é o mesmo a que os peruanos, posteriormente, deram o nome de Uacapista ou Vacapista, mudando o primitivo nome para outro afluente próximo. O Santa Rosa, em Curinahá, ficara sendo, desde 1898, o limite da ocupação brasileira no Purus, já em 1861 explorado pelo nosso intrépido sertanejo Manoel Urbano da Encarnação, até perto de Curanja, e em 1867, com o auxílio do Governo brasileiro, por William Chandless, em companhia do mesmo Manoel Urbano, até pouco além da confluência do Cavaljane, isto e, até as vizinhanças da nascente principal.
Anteriormente a 1896, esses territórios estavam livres de peruanos. Nada por ali havia que atestasse a sua passagem e fosse um padrão de posse da nação peruana sobre aquelas águas e aquelas terras. Somente em 1896 começaram aparecer peruanos, devastando as florestas em busca do caucho. Eram negociantes endinheirados, à frente de numerosas hordas de “cholas” broncos, que percorriam os Rios navegáveis mais facilmente, introduzindo mercadorias contrabandeadas e espalhando soles (padrão monetário peruano) e libras. Demoravam-se em alguns pontos, vivendo à larga, o tempo em que os caucheiros, destruindo as castiloas (árvores do caucho) no seio da floresta, faziam o caucho, que os negociantes recebiam e logo abalavam. Os vestígios que deixavam ficavam na mata bruta, na destruição das árvores da borracha e nos barracões senhoriais, ou nas barracas humildes, de paxiúba e caranaí, nos soles de prata que os seringueiros, em permutas comerciais, recebiam e entesouravam no mealheiro. Aquilo era do Brasil. (COSTA)
Leandro Tocantins, no capítulo LXV de seu livro “Formação Histórica do Acre – Volume II” faz um pequeno histórico da penetração peruana do Alto-Purus e no Alto-Juruá, a partir de 1896.
Atribui-se a Vicente Mayna o primeiro estabelecimento peruano (1896) a fundar-se no Juruá. “Um arraial no local em que atualmente se encontra a Vila de Porto Walter, não com o fim de negociar e tão-somente de explorar os cauchais vizinhos”. Na pista de Vicente Mayna vieram outros caucheiros patrícios. A firma Hidalgo Ruiz montou casa a jusante do Rio Moa, no lugar Centro Brasileiro, nome substituído pelos chefes da empresa arrendatário do seringal para Centro Peruano.
O seringal foi arrendado pelo brasileiro Antonio Marques de Meneses. Hoje, nesse lugar, ergue-se a cidade de Cruzeiro do Sul.
Em apoio a essa Fundação Comercial que tinha um fundamento político, veio do Peru um Destacamento Militar pelo varadouro Ucaiali-Juruá-Mirim, não logrando alcançar o Juruá porque alguns brasileiros interceptaram-lhe o caminho.
No ano de 1897, um oficial da Marinha de Guerra do Peru, D. Henrique Espinar, procedente de Iquitos, chegou ao Juruá, no vapor Brasil, cuja denominação, evidentemente intencional, servia para ganhar simpatias dos ribeirinhos. Porque, em caráter secreto, Espinar tinha a missão de fazer um levantamento social e hidrográfico do Rio, o que realizou “desde a Foz até a boca do Tejo, a que dá a extensão de 1.505 milhas, retirando-se depois ao Ucaiali pelo varadouro que liga o Tamaia ao Amônea”.
É interessante destacar do relatório que o emissário peruano apresentou ao seu Governo a circunstância de estar o Juruá ocupado pelos brasileiros, até o alto curso. Apenas cinco habitações peruanas ele registrou, perdidas no meio de tantas “fincas” a cujos proprietários Espinar chama de estrangeiros. Entre os compatriotas de Espinar encontrava-se o famoso Carlos Sharff, no Rio Gregório (afluente da margem direita), com 360 caucheiros.
Toda essa gente vinha atraída pelos novos cauchais, nas cabeceiras do Juruá ou nos cursos altos de seus afluentes Meridionais. A riqueza vegetal atiçou a cobiça dos loretanos vizinhos que açodadamente “atiravam-se ao objeto de sua avidez”.
O primeiro estabelecimento administrativo do Peru, no Juruá, ocorreu em 1898. D. Justo Balarezo surgiu no Rio Amônea na qualidade de Governador-comissário, por nomeação do “Comisionado Especial del Supremo Gobierno en el Departamento (Loreto)”. Participando em circular, de 8 de julho de 1898, esse fato e a sua posse no cargo, Balarezo garantiu o propósito de emprestar todas as “facilidades necesarias al Comercio y a la Industria para un amplio desarrollo en la circumscrición de mi juridición”. E acrescentava: “siendo mi autoridad la primera que ha sido nombrada para esta región”. (Circular de 08.07.1898, dirigida a Urbano Müller - Arquivo Ramalho Junior).
Um mês depois, Justo Balarezo, da Boca do Amônea, onde assentara a sua Gobernación, dirigiu um ofício ao brasileiro Urbano Müller, nos seguintes termos:
Ha llegado a mi conocimiento que ha solicitado U. de autoridades brasileras la adjucación de diversos lotes de terrenos comprendidos entre el Río Gregorio y la Boca del Río Breo. Como dichas adjucaciones deben pedirse a nuestro Gobierno por medio de sus autoridades, pues es el único que tiene legitimo derecho a expedirlos, me encuentro en el deber de velar por los intereses del país como también por los de los particulares, sean peruanos ó extranjeros, que se encuentren bajo mi jurisdicción. Por lo tanto prohíbo a U. que continúe practicando tal irregularidad y desearía se acerque U. a esta Gobernación para hablar con mas extensión sobre el asunto. (Ofício de 13.08.1898 - Arquivo Ramalho Júnior)
Urbano Müller, em resposta, acusou a circular de comunicação de posse e o novo expediente de Balarezo, frisando que deixaria de parte qualquer contestação:
pois ao Governo de meu País compete oferecer ao vosso os direitos que tenha sobre este território.
Entretanto, era:
forçado a desconhecer a vossa autoridade, diante dos inúmeros atos oficiais emanados da Intendência de São Filipe e do Governo do Estado do Amazonas, os quais traduzem categoricamente a posse em que se acham da região em que atualmente nos achamos. Vou, portanto, levar ao conhecimento das referidas autoridades de meu País não só a circular como, também, o vosso ofício, para que seja tomado em consideração assunto tão grave. (Ofício de 13.08.1898 - Arquivo Ramalho Junior)
Na entrada do século, os peruanos possuíam centros de relativa atividade comercial no Juruá. Ricardo Hidalgo, na Boca do Moa, Asumpción Ruiz e Samuel Aspiasse, no Juruá-Mirim, Carlos Sharff, Menacho y Hermanos, Vigel & Co., Efrain Ruiz, Lecca y Hermanos, “negociantes e potentados”. Quase todos mantinham intercâmbio direto com o Peru, através dos varadouros do Ucaiali. O Governo do Amazonas, prevenido pelos funcionários da Intendência de São Filipe acerca dos planos do Peru e das atividades suspeitas de seus nacionais no Juruá, animou-se a criar uma Coletoria na Boca do Breu. Em fevereiro de 1902, a repartição foi instalada mais abaixo, entre os Rios Arara e Amônea, porém, logo nos três primeiros meses do ano seguinte o Executivo Estadual suprimiu-a, a pedido do Chanceler Olinto de Magalhães, por interferência do Ministro do Peru, sem que isso importasse em reconhecer o território como peruano, segundo a decisão da Chancelaria brasileira.
E haviam bem fundadas razões para o Amazonas tomar essa providência. Os peruanos, a princípio, querendo ganhar simpatia e confiança, submeteram-se as leis e as autoridades nacionais. Quando consideraram o seu comércio suficientemente forte, a atitude mudou. A sombra do interesse econômico ocultava-se o objetivo político, e este veio a tona em manifestações positivas de domínio na região, onde:
reside grande número de peruanos aos quais o nosso Governo cerca de ampla liberdade, de todas as garantias, sem que eles as reconheçam e correspondam. (Relatório apresentado pelo Comissário Raimundo Augusto Borges, da Intendência de São Filipe, ao Governo do Amazonas)
A Independência de São Filipe salientava ao Governo do Amazonas o “grande e ativo comércio” que o Juruá “entretêm com as praças do Pará e Manaus, fornecedoras de todos os gêneros nacionais e estrangeiros que recebem os produtos naturais desta Comarca” , comércio “exercido em alta escala por milhares de brasileiros disseminados nas frondosas margens dos Rios Juruá e seus afluentes”. Havia, porém, “a concorrência criminosa e vantajosamente exercida pelos cidadãos peruanos, contrabandistas, que povoam diversos Rios, devastam suas matas e sugam sua riqueza, sem concorrerem com um ceitil (moeda portuguesa criada no reinado de D. Afonso V) para o aumento das rendas do Município e do Estado”.
A esse tempo, lanchas e pequenos vapores peruanos, viajando com bandeira do Brasil, trafegavam pelo Juruá, o Tarauacá, o Envira, o Muru. Partiam de Iquitos, base principal das operações, num misto de comércio e de conquista política, e fonte de contrabando que também se fazia através dos varadouros do Ucaiali. Caucho e borracha escapavam-se por caminhos escusos, sem pagar nenhum imposto ao fisco brasileiro. Daí um dos motivos da criação da coletoria amazonense, retirada logo mais para atender as conveniências diplomáticas do Itamarati.
Ainda em 1902, utilizando a rota do varadouro Tamaia-Amônea, veio do Ucaiali o já conhecido Manuel Pablo Villanueva, aparentemente com o objetivo de negociar caucho. O Governo de Lima precisava completar os dados e observações que o Capitão Enrique Espinar coletara, em 1897, visando a emprestar maior ênfase na ocupação do território, mediante um plano melhor elaborado, que se basearia nos elementos a serem recolhidos por Villanueva.
No seu regresso a Lima, Manuel Pablo teve ocasião de pronunciar uma conferência na “Sociedad de Geografia”, durante a qual instou pela urgente necessidade de fomentar o desenvolvimento de Nuevo lquitos, um “pueblo de caucheros”, na Foz do Breu, que na realidade não passava de umas tantas palhoças onde vivia o intitulado Comissário Efrain Ruiz. O conferencista expôs, com alarme, a influência brasileira “exercida em danos aos peruanos, em quase todo o Rio”, e asseverava: “de fato, o Brasil estende sua autoridade nos territórios situados ao Sul do 7° grau de Latitude, como se formassem parte de sua nacionalidade”.
Manuel Pablo Villanueva, Fronteras de Loreto, apud Belarmino de Mendonça. As palhoças de Nuevo Iquitos foram abandonadas em 1902, ao retirar-se o seu fundador Efrain Ruiz.
Em seguida à viagem de Villanueva, ocupou a Foz do Amônea um destacamento composto de 20 praças e numerosos (40) caucheiros armados. Carlos Vasques Quadros, à frente deles, vinha exercer as funções de Comissário. As terras da Foz do Amônea pertenciam ao Seringal Minas Gerais, propriedade do brasileiro Luís Francisco de Melo.
Os exploradores brasileiros do Juruá chegaram à Foz do Amônea em 1890, chefiados pelo cearense Francisco Xavier Palhano. Nessa época só havia índios na região.
Os habitantes, à vista da arrogância dos estrangeiros, forçaram-lhes a retirada para o Alto-Amônea, onde se julgava estar a fronteira do Peru. Luís Francisco de Melo cometeu a imprudência de aconselhar aos seus compatriotas a não se oporem à invasão, porque, ele acreditava, ao Governo do Brasil caberia resolver o caso. Serenados os ânimos, Luís Francisco de Melo deu assentimento aos peruanos para que se instalassem na Foz do Amônea. A 15 de novembro (1902), Carlos Vasques Quadros e seu Troço estabeleceram-se no lugar, pondo logo em funcionamento uma repartição arrecadadora de impostos. O nome de Nuevo Iquitos das antigas palhoças de Efrain Ruiz, na Boca do Breu, passou a ser o do “Puesto” fundado, em 1898, por Justo Balarezo.
Dentro em pouco, a mediação insensata de Luís Francisco de Melo produzia os seus efeitos negativos. A “Comisaría do Amônea” iniciava a cobrança de taxas aos produtos brasileiros e aos navios de passagem pelo Rio. Comerciantes e proprietários eram atingidos por violências morais e até por depredações. Quadros baixou ato estabelecendo o imposto de dois décimos por estrada de seringa, “além do pagamento de 15% ‘ad valorem’ sobre a exportação da borracha”. (segundo José Moreira Brandão Castelo Branco).
Os habitantes do Alto-Juruá e do Rio Tejo endereçaram ao Governo do Amazonas um longo memorial explicativo das ocorrências provocadas pela “Comisaría do Amônea”. Pediam a atenção das autoridades para essa anomalia em território reconhecidamente brasileiro. Negavam-se a obedecer à nova ordem peruana, estando dispostos a repelir os alienígenas pela força das armas. Em desdobramento do plano de domínio político do Alto-Juruá (e também do Alto-Purus), o Governo de Lima deu instruções ao seu Consulado em Belém para que estabelecesse normas de despacho das mercadorias conduzidas pelos navios ao Alto-Juruá e Alto-Purus, onde, nos Portos do Amônea e do Chandless, deveriam apresentar documentação expedida por aquele Consulado.
Um aviso, a esse respeito, saiu nos jornais do Pará. O fato provocou um movimento de protesto dos comerciantes paraenses ao Governador Augusto Montenegro, a quem relataram a situação anômala surgida com a exigência do cônsul peruano. O Governador transmitiu as reclamações do comércio ao Ministro do Exterior, que veio esclarecer o ponto de vista do Governo Federal: o Brasil não reconhecia os Postos do Amônea e do Chandless, e, portanto, os carregadores de mercadorias que se destinassem ao Alto-Juruá e Alto-Purus nenhum dever tinham de legalizar papéis no Consulado do Peru. Embora o Chanceler Rio Branco estivesse, a essa época, absorvido nas conversações com os plenipotenciários da Bolívia, acompanhava, “pari passu”, as ocorrências políticas naqueles longínquos afluentes do Amazonas.
Nos volumes Recortes de Jornais, organizados por ordem de Rio Branco, encontra-se todo o noticiário da época a respeito dos sucessos no Alto Purus e no Alto-Juruá. De vez em vez o Barão anotava observações à margem desse documentário.
Respondendo ao Ministro do Peru, o qual lhe havia dirigido Nota sobre a ordem do Cônsul de seu país em Belém, Rio Branco disse que:
certamente o Peru tem o direito de criar em território que seja incontestavelmente seu as estações fluviais que lhe aprouver, mas não pode estabelecê-los, como ultimamente fez, em territórios sobre que o Brasil entende ter direito. Neste caso se acham os que formam as Bacias do Alto-Juruá e Alto-Purus, onde, ao contrário do que afirma o Sr. Ministro, por mal informado, o Governo do Peru nunca havia exercido atos de jurisdição, e cuja população, em sua quase totalidade, é notoriamente brasileira.
E termina, categórico:
Mantenho a declaração: o Governo Brasileiro não reconhece os Postos Aduaneiros peruanos do Amônea e do Chandless. Este último já não existe, o outro, no interesse das boas relações entre os dois países, deve ser retirado, como o foi, a pedido do Governo peruano, a Coletoria Amazonense que ali existia. (Nota de Rio Branco ao Ministro Amador del Solar, 24.12.1903 - Arquivo Histórico do Itamarati)
A situação no Juruá era tumultuosa. No exercício de práticas aduaneiras, a “Comisaría” coarctava (reduzia a limites mais estritos) a liberdade dos brasileiros, exigindo pela força o pagamento de tributos. Para causar efeito psicológico solenizavam, diariamente, o ato de içar e arriar a bandeira peruana, diante do pelotão em armas. Os navios tinham de trazer o pavilhão no Peru içado no mastro de popa. Assumira o comando do Destacamento Militar o Tenente Dagoberto Arriaran, após uma viagem aventurosa, desde Manaus, sob o disfarce de caixeiro-viajante.
O oficial, vindo de Iquitos, tomara o vapor na capital amazonense, mas durante a viagem foi reconhecido como agente peruano e quase é desembarcado num barranco qualquer, por instâncias dos passageiros. Salvou-o de tal sorte os seus rogos e protestos de inocência. O Tenente Arriaran tornou-se o responsável por uma série de coações praticadas na Foz do Amônea: os navios tinham de parar no Posto peruano, a fim de se submeter a cobrança fiscal, ao exame da carga, dos documentos, e muitas vezes os recalcitrantes eram chamados a fala com tiros de rifle.
A “Comisaría”, no intuito de alargar por todos os meios a tardia influência do Peru naqueles sítios, decretou novos tributos que incidiram no consumo, no trânsito fluvial, na exportação de produtos e na importação de gêneros e mercadorias. Aos moradores do Alto-Juruá o Comissário dirigiu circulares comunicando a obrigatoriedade de registro de nomes dos seringais, sob ameaça de penas severas caso as determinações da “Comisaría” não fossem cumpridas. Denúncias chegaram a Manaus de que aportariam ao Amônea, pelo varadouro do Ucaiali, mais duzentos homens do exército regular. Isto seria o preparo de uma ofensiva com maior raio de ação: a cidade de São Filipe.
As “Comisarías” peruanas no Alto-Juruá e no Alto-Purus foram criadas por lei, em setembro de 1901, segundo informou o Encarregado de Negócios do Brasil em Lima, Alfredo Carlos Alcoforado, quem primeiro transmitiu a Rio Branco a notícia de serem essas repartições instituídas pelo Prefeito de Iquitos, autorizado pelo Ministro do Exterior. Havia um projeto (continua o informe de Alcoforado) a ser submetido ao Congresso, legalizando-as como “Capitanías de Puerto y Comisarías fluviales en el Río Alto Yuruá y Purus, con residencia en Puerto Iquitos y Boca del Chandless (Ofício de 26.07.1903). Finalmente, Alcoforado comunicou a aprovação legislativa da medida, logo sancionada pelo Executivo (Ofício e telegrama de 11.09.1903 - Arquivo Histórico do Itamarati).
Reinava este estado de coisas no Alto-Juruá e no Alto-Purus, em fins de 1903, quando Rio Branco, após concluir o ajuste, de 17 de novembro, com a Bolívia, passou a tratar exclusivamente o caso do Peru. O Chanceler brasileiro iniciava a fase dinâmica das negociações para obter um arranjo que viesse pôr cobro (termo) aos desentendimentos entre os dois países. (TOCANTINS, 1989)
Fontes:
COSTA, Craveiro. A Conquista Ocidental do Deserto Ocidental – Brasil – São Paulo – Companhia Editora Nacional, 1940.
CUNHA, Euclides. Contrastes e Confontos – Brasil – Rio de Janeiro – Editora Record, 1975.
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre, Volume II – Brasil – Brasília – Conselho Federal de Cultura e Governo do Estado do Acre, 1989.
Livro do Autor
O livro “Desafiando o Rio-Mar – Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS, na rede da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura.com.br) e na Associação dos Amigos do Casarão da Várzea (AACV) – Colégio Militar de Porto Alegre.
Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link:

Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA); Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS); Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil - RS (AHIMTB - RS); Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.

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