quinta-feira, 8 de novembro de 2012
O SERMÃO DO DIABO
Por Machado de Assis
Nem sempre respondo por papéis velhos; mas aqui
está um que parece autêntico; e, se o não é, vale pelo texto, que é
substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo, justamente um sermão da
montanha, à maneira de S. Mateus. Não se apavorem as almas católicas. Já Santo
Agostinho dizia que "a igreja do Diabo imita a igreja de Deus". Daí a
semelhança entre os dois evangelhos. Lá vai o do Diabo:
1.° E vendo o Diabo a grande multidão de povo,
subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele
os seus discípulos
2.° E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as
palavras seguintes
3.° Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque
eles não serão embaçados.
4.°
Bem-aventurados os afoutos, porque eles possuirão a terra.
5.° Bem-aventurados os limpos das algibeiras,
porque eles andarão mais leves.
6.° Bem-aventurados os que nascem finos, porque
eles morrerão grossos
7.° Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e
disserem todo o mal, por meu respeito.
8.° Folgai e exultai, porque o vosso galardão é
copioso na terra.
9.° Vós sois o sal do money market. E se o sal
perder a força, com que outra cousa se há de salgar?
10.° Vós sois a luz do mundo. Não se põe uma vela
acesa debaixo de um chapéu, pois assim se perdem o chapéu e a vela.
11.° Não julgueis que vim destruir as obras
imperfeitas, mas refazer as desfeitas.
12.° Não acrediteis em sociedades arrebentadas. Em
verdade vos digo que todas se consertam, e se não for com remendo da mesma cor,
será com remendo de outra cor.
13.° Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-vos uns
aos outros. Pois eu digo-vos: Comei-vos uns aos outros, melhor é comer que ser
comido, o lombo alheio é muito mais nutritivo que o próprio.
14.° Também foi dito aos homens: Não matareis a
vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não sejais castigados. Eu digo-vos
que não é preciso matar a vosso irmão para ganhardes o reino da terra; basta
arrancar-lhe a última camisa.
15.° Assim, se estiveres fazendo as tuas contas, e
te lembrar que teu irmão anda meio desconfiado de ti, interrompe as contas, sai
de casa, vai ao encontro de teu irmão na rua, restitui-lhe a confiança, e
tira-lhe o que ele ainda levar consigo.
16.°
Igualmente ouvistes que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao
Senhor os teus juramentos.
17.° Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a
verdade, porque a verdade nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas
jurai sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer
antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada Se disseres que o sol
acabou, todos acenderão velas.
18.° Não façais as vossas obras diante de pessoas
que possam ir contá-lo à polícia.
19.° Quando, pois, quiserdes tapar um buraco,
entendei-vos com algum sujeito hábil, que faça treze de cinco e cinco.
20.° Não
queirais guardar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os
consomem, e donde os ladrões os tiram e levam.
21.° Mas remetei os vossos tesouros para algum banco
de Londres, onde a ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões os roubam,
e onde ireis vê-los no dia do juízo.
22.° Não vos fieis uns nos outros. Em verdade vos
digo, que cada um de vós é capaz de comer o seu vizinho, e boa cara não quer
dizer bom negócio
23.° Vendei gato por lebre, e concessões ordinárias
por excelentes, a fim de que a terra se não despovoe das lebres, nem as más
concessões pereçam nas vossas mãos.
24.° Não queirais julgar para que não sejais
julgados; não examineis os papéis do próximo para que ele não examine os
vossos, e não resulte irem os dous para a cadeia, quando é melhor não ir
nenhum.
25.° Não tenhais medo às assembléias de acionistas,
e afagai-as de preferência às simples comissões, porque as comissões amam a
vanglória e as assembléias as boas palavras.
26.° As porcentagens são as primeiras flores do
capital; cortai-as logo, para que as outras flores brotem mais viçosas e
lindas.
27.° Não deis conta das contas passadas, porque
passadas são as contas contadas e perpétuas as contas que se não contam.
28.° Deixai falar os acionistas prognósticos; uma
vez aliviados, assinam de boa vontade.
29.° Podeis excepcionalmente amar a um homem que vos
arranjou um bom negócio; mas não até o ponto de o não deixar com as cartas na
mão, se jogardes juntos.
30.° Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e
as observa, será comparado ao homem sábio, que edificou sobre a rocha e resistiu
aos ventos; ao contrário do homem sem consideração, que edificou sobre a areia,
e fica a ver navios...
Aqui acaba o manuscrito que me foi trazido pelo
próprio Diabo, ou alguém por ele; mas eu creio que era o próprio. Alto, magro,
barbícula ao queixo, ar de Mefistófeles. Fiz-lhe uma cruz com os dedos e ele
sumiu-se. Apesar de tudo, não respondo pelo papel, nem pelas doutrinas, nem
pelos erros de cópia.
Machado de Assis (1893, setembro).
zzz|||\\\>>><<<///|||zzz
JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS nasceu no Rio de
Janeiro, em 21 de junho de 1839 e faleceu, nesta mesma cidade, em 29 de agosto
de 1908.
Mestiço, de origem humilde —
filho de um pintor de paredes e de uma imigrante açoriana — autodidata,
sofrendo a inevitáveis restrições de sua descendência social, Machado de Assis,
tendo perdido cedo sua genitora, foi criado por uma madrasta, que o cuidou com
carinho. A despeito de tudo, Machado de Assis atingiu todas as glórias das
letras nacionais.
Sua produção abrange a poesia,
o conto, o ensaio, o teatro, o publicismo, a crônica, mas foi no romance,
sobretudo os cinco textos após 1881, que ele atingiu os maiores níveis de
criatividade e elaboração formal.
É o autor brasileiro de mais
vasta fortuna crítica, não apenas entre os críticos nacionais mas também entre
os estrangeiros que o consideram um caso raro de artista e intelectual.
As várias exegeses de sua obra
revelam sua genialidade e apontam para o moralista, irônico e refinado, e o
humorista, no sentido inglês do termo, com extraordinária agudeza de espírito.
Ao longo de sua vida, lutou
contra as dificuldades de sua saúde precária e contra os preconceitos sociais
por cultivar uma personalidade amena, cativante, sempre avesso às controvérsias
banais, preferindo decifrar a condição humana com sua literatura inigualável. Por
essa razão, conhecemo-lo como o bruxo do Cosme Velho, referindo ao bairro do
Rio de Janeiro onde morou desde a década de 1870 até sua morte.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário