terça-feira, 29 de dezembro de 2009

ENTREVISTA - MURILO MELLO FILHO

Testemunha da história política do Brasil

José Reinaldo Marques - 27/05/2000

Repórter obstinado, Murilo Mello Filho entrevistou algumas das mais importantes personalidades mundiais, como Eisenhower, Kennedy, Nixon, Reagan — quando presidentes dos Estados Unidos —, De Gaulle e Giscard d´Estaing. Também fez reportagens com Fidel Castro, Che Guevara, Perón e Evita, o cientista Albert Sabin e, em meio à cobertura da guerra do Vietnã, Ho-Chi-Min.

O jornalista gosta de lembrar que foi testemunha de grandes e decisivos momentos da nossa história política, tendo participado da cobertura de muitos episódios que transformaram a vida nacional, como a deposição de Getúlio Vargas, a construção de Brasília, a renúncia de Jânio Quadros e o calvário de Juscelino Kubitschek.

Nesta entrevista, Murilo Mello Filho fala de sua carreira desde o início em Natal, Rio Grande do Norte, aos 12 anos de idade, até seu ingresso na Academia Brasileira de Letras, mais de meio século depois. Suas palavras são um testemunho precioso de um período complexo da História do País.

ABI OnlineFale sobre sua infância e sua família.
Murilo Mello Filho — Nasci em Natal, no Rio Grande de Norte, filho de Hermínia e Murilo Mello, telegrafista de quem herdei não apenas o nome, mas também um legado de muito trabalho e honradez. Minha infância foi pobre, ao lado de seis irmãos mais moços. Estudei no Colégio Marista de Natal, com a implantação em minha pessoa de um sentimento de dignidade e gratidão que tem norteado toda a minha vida.
ABI OnlineQue lembranças o senhor tem desse período?
Murilo — Lembro-me bem da revolução em Natal, em 23 de novembro de 1935, quando pela primeira vez uma república comunista se instalou na América Latina. Os revolucionários, liderados por um sargento, um músico e um sapateiro, dominaram a cidade durante quatro dias e chegaram a imprimir uma única edição do jornal A Liberdade, antes de serem sufocados pelas tropas do Exército que acorreram do Ceará e da Paraíba.
ABI OnlineO senhor estreou cedo no jornalismo, aos 12 anos de idade. Como isso aconteceu?
Murilo — Comecei no Diário de Natal, quando ainda usava calças curtas, com Djalma Maranhão, escrevendo um comentário esportivo e ganhando um salário de 50 mil réis por mês. Depois, fui trabalhar no jornal A Ordem, com Otto Guerra, Ulysses de Góes e José Nazareno de Aguiar, e em A República, com Luís da Câmara Cascudo. Ainda na minha cidade, trabalhei também nas rádios Educadora e Poti.
ABI OnlineQuando completou 18 anos, o senhor se mudou para o Rio de Janeiro. Por quê?
Murilo — Vim para o Rio convicto de que em Natal, onde não havia então uma só faculdade, não existiam maiores horizontes para um jovem disposto a enfrentar os perigosos desafios da vida.
ABI OnlineChegando ao Rio, o senhor foi logo trabalhar como jornalista?
Murilo — Não, comecei a trabalhar num escritório de advocacia e me inscrevi na Faculdade de Direito que ficava na Rua do Catete. Achava que advocacia e jornalismo eram duas profissões que se completavam, porque ambas eram faladas e dependiam muito das relações humanas. Mas, depois de formado, percebi que não seria nem um bom advogado e nem um bom jornalista se quisesse ser as duas coisas ao mesmo tempo.
ABI Online E depois?
Murilo — Assim que cheguei ao Rio, eu me inscrevi no Dasp, para fazer um concurso de datilógrafo do Ministério da Marinha; fui aprovado e em seguida passei também para um concurso do IBGE. Ao mesmo tempo, comecei a me oferecer em todos os jornais cariocas para que me testassem e soubessem se eu prestava ou não. Apesar de existirem então mais de 30 periódicos, somente o Correio da Noite me deu uma oportunidade na reportagem marítima.
ABI OnlineO senhor sentiu muita diferença entre o trabalho no Rio e o que havia feito em Natal?
Murilo — Sim, claro, o impacto foi muito grande. Eu vinha de uma província com muitas limitações e poucos recursos para enfrentar um jornalismo moderno e adiantado no Rio, que naquela época tinha 33 jornais. Tive que fazer um esforço enorme para me readaptar e enfrentar a rivalidade e a concorrência, que era feroz.
ABI OnlineDo Correio da Noite o senhor foi parar na Tribuna da Imprensa, com Carlos Lacerda.
Murilo — O Lacerda ligou para mim, dizendo que havia lido minhas reportagens e que gostaria que eu fosse trabalhar com ele. Estive na Tribuna de 1952 a 1959 e me envolvi naquelas campanhas todas dele: contra o Mendes de Morais, contra o lenocínio no Mangue, contra o jogo do bicho e até contra o jornal Última Hora e Getúlio Vargas.
ABI OnlineO senhor trabalhou no Jornal do Commercio, com Santiago Dantas e Assis Chateaubriand; e no Estadão, com Julio de Mesquita Filho e Prudente de Moraes, neto. Quais foram os seus melhores momentos nesses periódicos?
Murilo — Houve momentos gratificantes, mas também vivi outros traumatizantes, como o suicídio de Vargas, após longo processo de crise política e militar. Às oito da manhã daquele dia, aqueles que lutavam contra ele se consideravam vitoriosos com o seu pedido de licença. Meia hora depois, porém, passaram de vitoriosos a grandes derrotados.
ABI OnlineEm que ano o senhor foi para a revista Manchete?
Murilo — Trabalhei lá durante 47 anos, desde a fundação, em abril de 1952, até o seu fechamento em 1999, quando faliu. Foi uma grande escola de jornalismo e cultura. Dez membros da ABL passaram pelos quadros profissionais da Manchete: Josué Montello, Raimundo Magalhães Júnior, Antônio Houaiss, Lêdo Ivo, Otto Lara Resende, Arnaldo Niskier, Carlos Heitor Cony, Afonso Arinos, filho, Cícero Sandroni e eu, além de outros quatro que não foram acadêmicos simplesmente porque não quiseram: Fernando Sabino, Rubem Braga, Henrique Pongetti e Paulo Mendes Campos.
ABI OnlineO senhor também dirigiu a sucursal da revista em Brasília.
Murilo — Como diretor da sucursal de Manchete, fui para Brasília no início de sua construção, em 1957, com minha mulher Norma e um filhinho de três meses. Não havia praticamente nada lá, comemos o pão que o diabo amassou, não gosto nem de me lembrar. Sou membro do Clube do Candango, que até hoje reúne os fundadores da cidade.
ABI OnlineMas nessa época o senhor ainda trabalhava na Tribuna da Imprensa.
Murilo — Eu já era repórter político da Manchete e chefe da seção política da Tribuna da Imprensa quando o Juscelino foi pela segunda vez a Brasília e me convidou para ir também. Apesar da posição do jornal e do Lacerda, que lhe moviam uma guerra implacável, ele sempre me tratou com muita deferência.
ABI OnlineEntão o senhor acompanhou de perto o sonho de JK de instalar a Capital Federal no Planalto Central?
Murilo — Sim. Eu via o entusiasmo dele. No dia seguinte à nossa chegada, às quatro da manhã ele já estava batendo na porta dos nossos quartos para irmos ver as obras. Apontava e dizia: “Aqui vai ser a Câmara, ali vai ser o prédio do Supremo Tribunal Federal...”
ABI OnlineQual foi a sua reação?
Murilo — Voltei para o Rio, reuni os Bloch — o Adolpho, os sobrinhos todos — e disse: “Vamos entrar nessa, porque o homem é doido e vai construir Brasília.” Dois meses depois, comecei a viajar para acompanhar a construção da Capital e a publicar na Manchete, toda semana, uma reportagem sobre as obras. O Adolpho comprou máquinas novas e a revista começou a crescer, aumentando a tiragem.
ABI OnlineO senhor era amigo pessoal do Presidente Juscelino?
Murilo — Guardo desse homem ótimas recordações. Ele fez um Governo de liberdade e de respeito. Não gostava do Lacerda porque este queria derrubá-lo, mas respeitava o seu direito de escrever contra ele o que bem quisesse. JK dizia sempre: “Deus poupou-me o sentimento do medo. Mas poupou-me também o sentimento da vingança.”
ABI Online O senhor também deu aulas de Jornalismo na UnB.
Murilo — Foram cinco anos muito instigantes, durante os quais, a convite de Oscar Niemeyer, lecionei Técnica de Jornalismo, com Pompeu de Souza, na minha primeira e última experiência como professor. Até recebi um manifesto dos estudantes para ficar.
ABI OnlineO senhor trabalhou na extinta TV Rio, no programa “Congresso em revista”. Foi uma boa experiência trabalhar em televisão?
Murilo — Comecei a trabalhar no canal 13 uma semana depois de ele entrar no ar. Dos três blocos do programa de meia hora, um chamava-se “O assunto da semana” e o outro, “Os ausentes da semana”, com base na freqüência dos deputados publicada no Diário Oficial. Havia ainda um terceiro bloco, “O parlamentar da semana”, com entrevistas com deputados e senadores que tivessem se destacado.
ABI OnlineFalando de sua intimidade com políticos, o senhor escreveu no Jornal do Commercio sobre uma viagem a Cuba, acompanhando Jânio Quadros, que renunciou pouco depois. Que história foi essa?
Murilo — Quando Jânio ainda era candidato, Vasco Leitão da Cunha ofereceu-lhe uma recepção na embaixada brasileira em Havana, repleta de refugiados políticos. Fidel Castro chegou de Sierra Maestra com Guevara e os dois começaram a contar para o Jânio várias histórias. Presenciei toda a conversa do princípio ao fim e ouvi o Fidel dizer o seguinte: “Imagine, Dr. Jânio, que quando nós entramos aqui na cidade, há seis meses, queríamos nacionalizar uma empresa norte-americana e o Dr. Manuel Urritia, que nós havíamos designado para Presidente da República, era contra; queríamos encampar um banco estrangeiro, e ele se opunha. O senhor sabe o que eu fiz, Dr. Jânio? Renunciei ao meu posto de Primeiro-ministro. No que renunciei, o povo veio para esta praça, na frente desta embaixada, acampando aqui três dias e três noites, exigindo a minha volta.”
ABI OnlineE qual foi a reação de Jânio?
Murilo — Na viagem de volta ele era outro Jânio. Chamou-me no último banco do avião, com um copo de uísque sem gelo entre as duas mãos, e falou: “Murilo, você viu o que o primeiro-ministro fez? Ele renunciou e o povo foi para a rua exigir a sua volta.”
ABI OnlineO senhor acha que isso teve alguma influência no episódio da renúncia dele?
Murilo — Olha, hoje eu tenho absoluta certeza que aquilo ficou martelando na cabeça do Jânio e influenciou a sua decisão, pois, quando renunciou, ele vinha de Brasília e, ao chegar no aeroporto de Cumbica, indagava aos berros dentro do avião: “E o povo? Onde é que está o povo que não veio me buscar?”
ABI OnlineComo jornalista político, o senhor privou da intimidade de muitos presidentes brasileiros. Como foi sua relação com os militares?
Murilo — Com muito afastamento, neutralidade e alguma desconfiança. Eu os julgava com muita severidade, considerando as perseguições injustas e as cassações que eles promoveram — sobretudo Juscelino e outros tantos líderes que não mereciam ser cassados.
ABI OnlineMesmo estando em Brasília no primeiro ano do golpe, o senhor conseguia manter distância dos governantes militares?
Murilo — Eu tinha um princípio: eles passam e eu fico como jornalista. Por que é que eu vou fazer o jogo deles?
ABI OnlineNa sua opinião, qual Presidente brasileiro soube usar melhor a mídia e foi hábil no trato com os repórteres?
Murilo — Sem dúvida o Juscelino, não só pela sua obra, que fez o Brasil progredir 50 anos em cinco, mas também pela empatia pessoal. JK era um homem jovial e dinâmico, que deu ao País novos padrões de desenvolvimento.
ABI OnlineSomente há pouco, com dois anos e meio de Governo, o Presidente Lula concedeu sua primeira coletiva. Como o senhor analisa a relação dele com os veículos de comunicação?
Murilo — Eu nem sei por que ele adiou tanto esse primeiro contato. Por sua longa trajetória no movimento sindical, Lula sabia de sua habilidade para tratar os jornalistas. Não perdeu nada e saiu-se bem na primeira coletiva. Só espero que este êxito estimule maior freqüência.
ABI OnlineO senhor pertence a uma geração de jornalistas — da qual também fazem parte Carlos Castello Branco e Villas-Bôas Corrêa, entre outros — que é considerada uma das mais importantes do jornalismo político brasileiro. Por quê?
Murilo — Porque fomos testemunhas presentes e atuantes do período de 1950 a 1960, quando a Câmara dos Deputados se reunia no Palácio Tiradentes. Com a construção de Brasília, tudo se transformou.
ABI OnlineQue fato marcante o senhor poderia destacar daquela época?
Murilo — Nós que fazíamos a cobertura da Câmara presenciamos os virulentos discursos de Vieira de Melo contra Carlos Lacerda e os ataques de Afonso Arinos contra Getúlio. Foi um período de grande talento oratório. Depois aconteceram o suicídio de Getúlio Vargas, a eleição de Juscelino e sua trepidante atuação na Presidência. Havia também a violenta oposição da UDN, que radicalizava e não perdoava falhas do Governo.
ABI OnlineQual o discurso que mais lhe chamou a atenção?
Murilo — O de Afonso Arinos, em que ele dizia: “Como homem, falo ao homem Getúlio Vargas. Falo ao cidadão para que não hesite um só momento em deixar o Governo que ele não soube honrar.” Mais tarde o Afonso Arinos fez questão de que o seu discurso nunca mais fosse lembrado. Dez dias depois o Getúlio se suicidou e ele achava que a sua fala contribuíra com o gesto desesperado do Presidente.
ABI OnlineO senhor também foi correspondente de guerra, no Vietnã e no Camboja. Qual a imagem mais o marcou nesse período?
Murilo — O que vi foi a mais estúpida das situações. Homens miúdos levando pesados morteiros nas costas, caminhando grandes distâncias debaixo da terra e respirando por canudos de bambu. De repente, lançavam os seus morteiros contra os tanques norte-americanos e assim destruíram a maior máquina de guerra do mundo.
ABI OnlineEm 1999, o senhor se elegeu para a cadeira nº 20 da ABL. Foi o jornalismo que lhe abriu as portas da Academia?
Murilo — Entre as benesses que o Jornalismo me proporcionou está o ingresso na Academia Brasileira de Letras. Eu costumava freqüentar as reuniões dos acadêmicos com seus fardões, juntamente com os companheiros Diolindo do Couto e o Gilberto Amado. Um dia eu disse para o Mauritônio Meira, também jornalista e recém-chegado do Maranhão: “Quem sabe se algum dia eu não vou chegar aqui?” Cinqüenta anos depois, aqui estou eu.
ABI Online Qual a sua relação com a Associação Brasileira de Imprensa?
Murilo — Eu pertencia ao Conselho Deliberativo, no qual eu tive a alegria de conviver com muitos colegas jornalistas com os quais fiz amizade. Eram ótimas companhias.
ABI OnlineEm que estágio se encontra o jornalismo brasileiro?
Murilo — Está ingressando numa era inteiramente nova, mais investigativa. Há um material vastíssimo a explorar e as revistas estão investindo mais nessa vertente, a exemplo da IstoÉ e da Carta Capital.
ABI Online O senhor considera que a nova geração está dando conta do recado?
Murilo — Não há dúvida de que os jovens repórteres estão empenhados em se afirmar e têm pela frente ambientes propícios para isso. O fato de as próprias empresas de comunicação criarem cursos de capacitação de pessoal recém-formado mostra que elas estão se consolidando e aponta na direção do sucesso.
Fonte: ABI- Associação Brasileira de Imprensa.

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