Podem ter alma e paixão as sentenças que os juízes proferem? Sentenças e despachos devem ser frios, eqüidistantes dos dramas tantas vezes presentes nas questões judiciais? Pode a condição de mãe fundamentar um despacho de soltura de uma acusada? Essas perguntas, pelo que sinto, despertam a curiosidade de muitas pessoas, não apenas daquelas ligadas ao mundo do direito. A meu ver, o esquema legal da sentença não proíbe que ela tenha alma, que nela pulse a vida, e valores, e emoção, conforme o caso. Em várias oportunidades, os jornais têm registrado sentenças marcadas pelo sentimento, pela empatia, sem desdouro para os magistrados que as subscrevem. Na minha própria vida de juiz, senti muitas vezes que era preciso dar sangue e alma às sentenças. Para que justiça se fizesse, não bastava a construção racional de um frio silogismo. Este artigo contém, no seu bojo, o despacho que libertou Edna, a que ia ser mãe. Esta peça judicial resume minha concepção do direito. Como devolver a Edna, protagonista do caso, à liberdade, sem penetrar fundo na sua sensibilidade, na sua condição de pessoa humana? Foi o que tentei fazer. Edna, uma pobre mulher, estava presa há 8 meses, prestes a dar à luz, porque fora apanhada portando alguns gramas de maconha. Dei um despacho fulminante, carregado de emoção e da ira santa que a injustiça provoca. Este despacho, quando a ele me refiro em palestras e cursos, encontra uma resposta tão forte junto aos ouvintes que cedo à tentação de transcrevê-lo. Talvez a transcrição ajude a responder as indagações que colocamos no início deste artigo. Eis, pois, o despacho:
"A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia. É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver. Quando tanta gente foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este fórum, com o feto que traz dentro de si. Este juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua mãe, se permitisse sair Edna deste fórum sob prisão. Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão. Expeça-se incontinenti o alvará de soltura". Edna encontrou um companheiro e com ele constituiu família. Mudou inteiramente o rumo de sua vida. A criança, se fosse homem, teria o nome do juiz, conforme declarou na audiência. Mas nasceu-lhe uma menina que se chamou Elke, em homenagem a Elke Maravilha. Onde estará Edna com sua filha? Distante que esteja, eu a homenageio. Pela tarde em que a libertei, por essa simples tarde, valeu a pena ter sido juiz. João Baptista Herkenhoff é livre-docente da Universidade Federal do Espírito Santo, professor do mestrado em direito e escritor. Autor, dentre outros livros, de "Direito e Utopia", Livraria do Advogado Editora (Porto Alegre, RS).
Extraído do: www.correiocidadania.com.br
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