segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Getúlio Vargas: Temido ou amado?

A notável trajetória política de Getúlio Vargas que governou o Brasil durante duas décadas do século XX. Chegando ao poder numa revolução, mantendo-se através de um golpe, e retornando nos “braços do povo”, esse conjunto de circunstâncias singulares na história contemporânea mundial fazem de Getúlio Vargas uma das mais importantes, senão a mais destacada personalidade da história brasileira do período.
A Construção de um mito político
A ascensão de Getúlio Vargas ao poder no Brasil transformou-se no marco da renovação da cultura política das massas populares e foi responsável pela constituição de um mito histórico nacional cujas referências continuam presentes até hoje.

Deputado estadual em três mandatos; Deputado Federal entre 1923 e 1926; líder da bancada gaúcha na Assembléia Nacional; Ministro da Fazenda de Washington Luís; Governador do Rio Grande do Sul entre 1928 e 1929; Chefe do Governo Provisório entre 1930 e 1934; Presidente eleito pela Assembléia Nacional Constituinte em 1934; Ditador entre 1937 e 1945; e Presidente eleito pelo voto direto em 1950, Vargas terminou sua carreira política de modo violento e inusitado, através do suicídio em 24 de agosto de 1954.
Getúlio Vargas tornou-se referência no cenário político brasileiro não apenas em função da longa duração de seu poder à frente do executivo nacional, mas sobretudo pelas suas ações inéditas, originais e incomuns que marcaram a sua vida pública e transformaram o país. A exemplo do Príncipe, de Nicolau Maquiavel, Getúlio Vargas foi amado e temido. Sua biografia teve a marca do paradoxal e do contraditório.
Getúlio Vargas, o político gaúcho escolhido para representar a Aliança Liberal nas eleições presidenciais de 1930, nasceu em 19 de abril de 1883, em São Borja. Filho de uma família muito próspera, aos 15 anos Getúlio ingressou no serviço militar. Em 1904 iniciou a Faculdade de Direito em Porto Alegre, onde conheceu João Neves da Fontoura, Maurício Cardoso, Góes Monteiro, Eurico Gaspar Dutra e Firmino Paim Filho, com os quais fundou o Bloco Acadêmico Castilhista.
Exímio orador e colaborador do jornal O Debate, órgão da juventude castilhista, Getúlio Vargas destacou-se como herdeiro da boa tradição positivista local. Transformou-se em líder do Partido Republicano Riograndense na Assembléia Legislativa e revelou-se hábil negociador. Em meio à guerra civil de 1923, elegeu-se deputado federal e, três anos mais tarde, seu trabalho na Comissão de Economia e Finanças da Câmara Federal foi reconhecido pelo presidente Washington Luís, que o convidou para o Ministério da Fazenda. Logo veio sua indicação para representar o PRR nas eleições estaduais como candidato a governador. Em 25 de janeiro de 1928, Getúlio Vargas ocuparia o cargo de governador do Rio Grande do Sul.
O governador do Partido Republicano Riograndense, agremiação política que estava no poder desde a proclamação da República, não se contentava em ser apreciado apenas pelos seus correligionários. Getúlio convidou opositores do Partido Libertador para fazerem parte do governo e cuidava pessoalmente para que os articulistas do órgão oficial do PRR, o jornal A Federação, não insultassem a oposição. Fomentou o desenvolvimento da agricultura, da pecuária e do comércio estadual, amparou o charque e o arroz e apoiou o desenvolvimento tecnológico do trigo; fundou o Banco do Estado do Rio Grande do Sul e estimulou a criação da primeira empresa de aviação comercial do país, a Varig; buscou investimentos federais e estrangeiros e auxiliou no incremento da extração de carvão, na diminuição dos preços dos fretes, na criação de sindicatos de produtores; e foi implacável com a corrupção política, demovendo dos cargos àqueles que praticassem fraude eleitoral. Paradoxalmente, o próprio Getúlio cometera fraudes no tempo em que era assessor de Borges de Medeiros e presidente da Comissão de Verificação, responsável pelas listas eleitorais e contagem de votos.
Depois de governar o estado por um ano e meio, ele aceitaria, após alguma relutância, a tarefa de representar a Aliança Liberal nas eleições presidenciais de 1930. Uma inusitada disposição para a participação política percorreu o Brasil entre os anos de 1929 e 1930. A Aliança Liberal constituiu-se num forte indicativo da decadência do sistema oligárquico fechado e tradicional, onde persistiam práticas políticas excludentes: voto a cabresto, fraude e corrupção no processo eleitoral, poder dos coronéis e persistência de clientelismo político durante toda a Primeira República e predomínio político de setores ligados ao setor primário-exportador da economia.
Os grupos que se sentiram atraídos pelo discurso da Aliança Liberal eram muito heterogêneos; velhos oligarcas, quadros civis mais jovens, tenentes, operários e classes médias eram aqueles que se sentiam prejudicados pelo sistema oligárquico.
E embora Vargas pertencesse à mesma elite oligárquica encastelada no poder desde a proclamação da República, seu governo provisório foi marcado pela criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e do Ministério da Educação e Saúde Pública; pela promulgação de um novo Código Eleitoral, que dava direito de voto às mulheres; pela lei de sindicalização; a instituição de uma jornada de trabalho de 48 horas e outros temas onde se destacava o inédito encaminhamento dos problemas sociais do Brasil.
Depois de eleito presidente pela Assembléia Nacional Constituinte de 1934, perto do final desse mandato, Vargas não admitia deixar o poder, especialmente para seus mais ferozes adversários. Quando o país oscilava entre as propostas de socialismo do PCB de Luis Carlos Prestes e o integralismo da AIB de Plínio Salgado, Getúlio encomendou a Francisco Campos uma constituição fascista e deu um golpe de Estado em novembro de 1937, instaurando o Estado Novo. Uma ditadura que criou mecanismos originais de controle da oposição, através da censura e prisão, e promoveu a propaganda do regime. Ao mesmo tempo, criou a Lei do Salário Mínimo, organizou a Força Aérea Brasileira, o Correio Aéreo Nacional e negociou empréstimo norte-americano para construção da Usina de Volta Redonda. Titubeou em apoiar a democracia representada pelos Aliados na Segunda Guerra Mundial e deu motivos aos adversários políticos para derrubá-lo em 1945. Antes disso, criou os partidos que o trariam de volta ao poder, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrático (PSD). Entre a renúncia em 1945 e a eleição presidencial de 1950, o movimento brasileiro mais contundente era o “queremismo” ou “queremos Getúlio”.
Eleito no final de 1950, com 48, 7% dos votos, Getúlio tomou posse em janeiro de 1951 e esse último mandato foi caracterizado por uma política marcadamente populista. Sua perspectiva nacionalista no que dizia respeito à lei de inversões estrangeiras desagradava os militares, os investidores internacionais e as elites brasileiras. A nomeação de João Goulart para o Ministério do Trabalho em 1953, sua proposição de aumento de 100% do salário mínimo e a execução dessa promessa em 1954, foram o estopim de uma crise anunciada. Desde o começo do mandato, assessores e familiares de Vargas eram acusados de tráfico de influência. A pressão da oposição e a ameaça de golpe militar somaram-se aos episódios que envolviam amigos e partidários de Vargas em atos ilícitos e resultaram no seu suicídio no dia 24 de agosto de 1954. As manifestações populares que se seguiram ao suicídio deram a dimensão exata do mito político no qual se transformaria o presidente Getúlio Vargas.


(Claudia Wassermann)
-Professora de História Contemporânea da América Latina na UFRGS e Doutora em História Social pela UFRJ-

A Carta-Testamento de Getúlio Vargas, na íntegra:

Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.

(Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)
Carta de despedida (suposta versão verdadeira)

"Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte. Levo o pesar de não haver podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia. A mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices foram geradas pela malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa. Acrescente-se a fraqueza de amigos que não me defenderam nas posições que ocupavam, a felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei com honras e mercês e a insensibilidade moral de sicários que entreguei à justiça, contribuindo todos para criar um falso ambiente na opinião pública do país, contra a minha pessoa. Se a simples renúncia ao posto a que fui elevado pelo sufrágio do povo me permitisse viver esquecido e tranqüilo no chão da pátria, de bom grado renunciaria. Mas tal renúncia daria ensejo para com fúria, perseguirem-me e humilharem. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado, preferi ir prestar contas ao senhor, não de crimes que contrariei ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes. Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue de um inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus. Agradeço aos que de perto ou de longe trouxeram-me o conforto de sua amizade. A resposta do povo virá mais tarde....
Getúlio Vargas "

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