quarta-feira, 7 de novembro de 2012

DOM QUIXOTE E A CANALHA GATESCA

Aqui chegou D. Quixote com o seu canto, que estavam escutando o duque e a duquesa, Altisidora e quase toda a gente do castelo, quando de repente, duma varanda, que corria por cima da janela de D. Quixote, deixaram cair um cordel, a que vinham presas mais de cem campainhas, e logo em seguida despejaram um grande saco de gatos, que traziam também campainhas mais pequenas, presas aos rabos. Foi tal o barulho das campainhas e o miar dos gatos que, ainda que os duques tinham sido os inventores da caçoada, sobressaltaram-se e D. Quixote ficou temeroso e pasmado; e quis a sorte que dois ou três gatos entrassem no seu quarto e, correndo dum lado para o outro, parecia uma legião de diabos que por ali andava.
Apagaram as velas que ardiam no aposento e saltavam procurando sítio por onde se escapassem.
O descer e subir do cordel com as campainhas grandes não cessava; a maior parte da gente do castelo, que não sabia da verdade do caso, estava verdadeiramente suspensa e admirada.
Pôs-se D. Quixote em pé e, levando a mão à espada, começou a atirar estocadas pelas reixas e a dizer com grandes brados:
— Fora, malignos nigromantes, fora, canalha feiticeiresca; eu sou D. Quixote de la Mancha, contra quem não valem nem têm força as vossas más intenções.
E voltando-se para os gatos que andavam pelo aposento, atirou-lhes muitas cutiladas; acudiram à reixa, e por ali saíram; mas um, vendo-se tão acossado pelas cutiladas de D. Quixote, saltou-lhe à cara, agarrou-se-lhe ao nariz com unhas e dentes, e a dor obrigou D. Quixote a soltar grandes gritos.
Ouvindo isto o duque e a duquesa, e considerando o que podia ser, acudiram muito depressa ao seu quarto e, abrindo a porta, deram com o pobre cavaleiro procurando com todas as suas forças arrancar o gato da cara. Entraram com luzes e viram a desigual peleja; acudiu o duque a separar os contendores, e D. Quixote bradou:
— Ninguém mo tire, deixem-me com este demônio, com este nigromante, com este feiticeiro, que eu lhe mostrarei quem é D. Quixote de la Mancha.
Mas o gato, não se importando com essas ameaças, cada vez mais berrava e o arranhava; afinal, o duque arrancou-o e atirou-o pela janela. Ficou D. Quixote de cara escalavrada e com o nariz pouco são, mas muito despeitado por lhe não terem deixado pôr termo à batalha que travara com aquele malandrino nigromante.
Mandaram buscar óleo de amêndoas doces, e a própria Altisidora lhe pôs com as suas branquíssimas mãos uns panos em todos os sítios feridos e, ao pôr-lhos, disse-lhe em voz baixa:
— Todas estas desgraças te sucedem, empedernido cavaleiro, pelo pecado da tua dureza e pertinácia; e pede a Deus que Sancho, teu escudeiro, se esqueça de se açoitar, para que nunca saia do seu encantamento essa
Dulcinéia tão tua amada, nem a gozes, nem vás para o tálamo com ela, pelo menos vivendo eu, que te adoro.
A tudo isto só respondeu D. Quixote com um profundo suspiro, e logo se estendeu no leito, agradecendo aos duques a mercê, não porque tivesse medo daquela canalha gatesca, nigromântica e campainhadora, mas porque conhecera as boas intenções com que tinham vindo socorrê-lo.
Os duques deixaram-no sossegar e foram-se ambos pesarosos do mau resultado da burla, porque não tinham suposto que saísse tão pesada e tão custosa a D. Quixote aquela aventura, que lhe rendeu cinco dias de cama e de encerramento, sucedendo-lhe então outra mais agradável que a anterior, que não se conta agora para se acudir a Sancho Pança, que andava muito solícito e muito gracioso no seu governo./
(*Dom Quixote de La Mancha*. Miguel de Cervantes Saavedra).
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Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares, a 29 de setembro de 1547 e faleceu em Madrid, a 22 de abril de 1616, foi romancista, dramaturgo e poeta castelhano. A sua obra-prima, Dom Quixote, muitas vezes considerado o primeiro romance moderno, é um clássico da literatura ocidental e é regularmente considerado um dos melhores romances já escritos. Seu trabalho é considerado entre os mais importantes em toda a literatura. A sua influência sobre a língua castelhana tem sido tão grande que o castelhano é frequentemente chamado de La lengua de Cervantes (A língua de Cervantes).
Filho de um cirurgião cujo nome era Rodrigo Cervantes e de Leonor de Cortinas, supõe-se que Miguel de Cervantes tenha nascido em Alcalá de Henares. O dia exato do seu nascimento é desconhecido, ainda que seja provável que tenha nascido no dia 29 de Setembro, data em que se celebra a festa do arcanjo San Miguel, pela tradição de receber o nome do santoral. Miguel de Cervantes foi batizado na Castela no dia 9 de Outubro de 1547 na paróquia de Santa María la Mayor.
É bem conhecida a coincidência das datas de morte de dois dos grandes escritores da humanidade, Cervantes e William Shakespeare, ambos com data de falecimento em 23 de Abril de 1616. Porém, é importante notar que o Calendário gregoriano já era utilizado na Castela desde o século XVI, enquanto que na Inglaterra sua adoção somente ocorreu em 1751. Daí, em realidade, William Shakespeare faleceu dez dias depois de Miguel de Cervantes.

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