domingo, 23 de dezembro de 2012

O NATAL DO MENINO JOSUÉ

Paulo Barretto


            Josué era um menino de rua que circulava pela cidade esmolando migalhas de comida. Era órfão aos sete anos. Sua memória não tinha registros da figura da mãe, do pai ou de parentes.
          Era visto com frequência nas feiras livres vasculhando o lixo para achar pedaços e fragmentos de comida.    Estava sempre acompanhado por outros dois garotos de rua, que aparentavam ter mais idade.
            Tinha poucas recordações do seu passado. Trazia na memória apenas a figura de uma mulher com quem morou em um barraco na periferia da cidade. Não era sua mãe, porque ela própria fazia questão de repetir isso a cada momento. Dela, nunca recebeu uma palavra ou gesto de carinho, mas sofria maus tratos e espancamentos constantes.
                Certo dia acordou e deu por sua falta. Os dias se passaram e ela não voltou. Estava só no mundo. À noite sentia medo e frio e de dia muita fome. Abandonado como um cãozinho sem dono ficou doente, com febre alta e tosse convulsiva. Depois de um período de muito sofrimento, a doença deu a impressão de estar cedendo.
             Fraco, esquálido e faminto, guiado apenas por instintos, aventurou-se pelas ruas da cidade em busca da sobrevivência.  
              Apesar de seu aspecto doentio, seu sorriso meigo cativava e seus olhos vivos, embora tristes e súplices, irradiavam simpatia. Sensível, se encantava com músicas e com coisas belas. Era comum vê-lo nas vitrines das lojas olhando os brinquedos expostos e a figura encantada de Papai Noel. Lembra-se de ter visto, extasiado, atrás de uma grande vidraça um pinheiro que subia até o teto, formando uma árvore de Natal, com muitas luzes e objetos pequenos, frutas douradas em torno de bonecas e cavalinhos. Chegou a entrar para ver de mais  perto, mas logo foi expulso como cão vadio, pois moleques de rua não podiam perturbar a freguesia e manchar a imagem da loja.
            Não demorou muito para que seus males e sequelas retornassem. A tosse se tornou permanente, a coriza, a dor de cabeça e a febre eram intermitentes e variavam na intensidade.                     
                Na semana do Natal sua saúde se agravou. Ficava o dia inteiro recolhido em seu canto, sem disposição e força para acompanhar seus pequenos amigos nas peregrinações pela cidade iluminada e enfeitada para as festas natalinas. Dormia sobre jornais velhos e papelões que eram um arremedo de cama em um cômodo úmido e imundo de uma construção abandonada.
               Na véspera do Natal seu quadro clínico piorou. Febre muito alta, calafrios e dores pelo corpo inteiro, suores abundantes, dor na caixa torácica ao respirar e tosse intensa o que indicava pleura inflamada e infeccionada. 
               Durante uma crise muito forte começou a ter sensações estranhas. Por momentos passou pela sua retina toda sua vida de sofrimentos.  Reviu os espancamentos que sofreu da megera que esteve em lugar de sua mãe, as noites passadas em prédios abandonados, debaixo de pontes e até em céu aberto, as doenças e as dores que eram frequentes.          Lembrou-se da fome crônica que padeceu em toda sua vida, dos maus tratos recebidos de todos por ser menino de rua, sem ninguém para protegê-lo.
            Recordou-se também das crianças saudáveis, alegres, bem vestidas, limpas, bonitas e felizes acompanhadas pelos pais, portando lindos brinquedos, sobretudo no período natalino.
            Não entendia porque não tinha mãe e nem pai, ao contrário de outras crianças. Em toda sua vida não se lembrava de ter recebido um carinho, um abraço, um afago sequer. Apesar de todas essas mazelas, seu coração não abrigava revolta, apenas tristeza e perplexidade.
            Josué agonizava. Seu mal estar e sofrimento foram crescendo até que, em dado momento, um leve torpor invadiu todo seu ser. A febre cedeu, a tosse cessou, a dor aquietou-se e desapareceram todos os demais sintomas que o afligiam. Sentiu uma imensa paz e  adormeceu.
            Imaginou estar sonhando porque repentinamente se sentiu leve e se viu flutuando sobre o próprio corpo que lhe pareceu adormecido. Momentos após estava atravessando um túnel no sentido de uma luz tênue que vinha da extremidade oposta. Sentiu inefáveis sensações de bem estar e um sentimento de paz e quietude. Instantaneamente, como em um salto quântico, transpôs dimensões vibratórias e chegou a um lugar deslumbrante onde havia muita luz e música encantadora. Seres espirituais que irradiavam luz brilhante como se fosse uma auréola ou aura estavam à sua espera.
            O grupo se aproximou e uma bela e jovem senhora acercou-se e com ternura o abraçou e o beijou na face, quando balbuciou em seus ouvidos: - Sou sua mãe, sua prova terminou e suas dores chegaram ao fim.
            Indizíveis sensações de alegria e paz inundaram sua alma. Suas emoções foram tão fortes que não conseguiu pronunciar uma única palavra. Lágrimas copiosas caíram de seus olhos e escorreram pela face. Pela primeira vez na vida se sentiu feliz. Mãe e filho permaneceram juntos por algum tempo, usufruindo as alegrias e os fluídos suaves proporcionados pelo reencontro.
            Ao final desses momentos de comunhão espiritual sua mãe o levou a uma festa natalina. Era grande o número de crianças presentes. Todas o saudaram efusivamente e o presentearam com muitos brinquedos. Josué ficou surpreso e maravilhado com a atenção e o carinho que recebeu que contrastava com sua vida de provação e expiação, onde sempre foi rejeitado e abandonado à própria sorte. Agora não. Foi o centro das atenções e o trataram como um herói que tivesse retornado de uma jornada de conquistas.
            Emocionado e em lágrimas, disse a sua mãe que queria permanecer ao seu lado e não voltar para o lugar de sofrimentos onde vivia. Não voltou.
Seu corpo sofrido, cansado e vencido foi achado pelos seus jovens companheiros que comunicaram o fato às autoridades. Foi sepultado como indigente em uma cova rasa.   
Depois de uma trajetória aqui na Terra, onde travou e venceu duras batalhas que exercitaram e incorporaram ao seu “eu” as virtudes da resignação, da renúncia e da humildade, Josué, vitorioso, está agora em outra dimensão em repouso merecido.

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