sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A MÁSCARA DO AGNÓSTICO

Gilbert Keith Chesterton
Traduzido por Antonio Emilio Angueth de Araujo
Capítulo do livro The Thing (A Coisa), publicado em 1929
Sir Arthur Keith,[1] em suas recentes observações sobre a alma, “deixou o gato escapar da maleta”. Ele o deixou escapar daquela maleta elegante e profissional que é usada pelo “médico” a quem ele descreve como conscienciosamente compelido a afirmar que a vida da alma cessa com o último suspiro do corpo. Talvez a figura do gato não se adéque muito bem à maleta; o gato é um animal místico, cujas nove vidas podem muito bem representar a imortalidade, pelo menos na forma da reencarnação. De qualquer forma, ele “deixou o gato escapar da maleta”, no sentido de revelar um segredo que tais homens sábios deveriam sabiamente guardar. O segredo é que tais cientistas não falam como cientistas, mas simplesmente como materialistas.

Não faz muito tempo, em sua famosa conferência sobre antropóides no Congresso de Leeds, Sir Arthur Keith disse que falava simplesmente como o primeiro jurado de um júri. É verdade que ele aparentemente não consultou o júri; e rapidamente se tornou claro que o júri violentamente discordou; o que é pouco usual num júri, depois que o primeiro jurado entrega o veredito. Mesmo assim, usando essa imagem, ele quis alegar a completa imparcialidade de tipo jurídico. Ele quis dizer que um jurado está obrigado, por juramento, a considerar inteiramente os fatos e a evidência, sem medo ou favorecimento. E esse efeito seria centenas de vezes mais efetivo se tivéssemos a liberdade de imaginar que as simpatias pessoais do jurado estivessem do outro lado; ou, pelo menos, se não soubéssemos que elas estavam muito intensamente de um único lado. Sir Arthur deveria ser cuidadoso em preservar a impressão de que, falando estrita e unicamente como antropólogo, ele foi forçado a aceitar a seleção natural de antropóides. Ele deveria então deixar que se inferisse que, como um simples cidadão, ele estaria ansiando por visões seráficas e esperanças celestiais; estaria pesquisando as Escrituras e esperando pelo apocalipse. Ele, na vida privada, seria um mórmon multiplicando as estrelas em sua coroa celestial ou um carismático continuamente convulsionado pelo Espírito Santo. O problema foi que os fatos forçaram-no na direção da conclusão darwiniana. E um homem desse tipo, sendo forçado a aceitá-los, seria uma testemunha confiável, porque relutante. No julgamento de Darwin, o homem poderia ter simpatias para com o acusador, mas como jurado, seria forçado a apoiar o réu.

E agora, Sir Arthur Keith jogou fora toda aquela imparcialidade imperial. Ele fez um grande esforço para dogmatizar e estabelecer a lei sobre a alma; que não tem nada a ver com o assunto de sua especialidade, exceto na medida em que é assunto de todos. Mas mesmo não tendo relação com sua especialidade, serviu para mostrar a todos qual é o lado de Sir Arthur. Transformou o primeiro jurado num inequívoco advogado daquele lado. De fato, tal apoiador está mais para uma das partes da acusação do que de um advogado; pois toda a questão é que sendo um ser humano particular, ele, há muito tempo, tem um preconceito particular. De agora em diante, é óbvio que Keith decidir em favor de Darwin é simplesmente como Bradlaugh[2] decidir em favor de Darwin, ou Ingersoll[3] decidir em favor de Darwin, ou qualquer ateu, num banco no Hyde Park, decidir em favor de Darwin. Quando ELES escolhem o lado da seleção natural, podemos concordar que isso é uma seleção muito natural.

Quanto à conclusão em si, parece quase inacreditavelmente inconclusiva. A menos que as palavras de Sir Arthur Keith tenham sido muito distorcidas, ele afirmou especialmente que a existência espiritual acaba juntamente com as funções físicas; e que nenhum médico poderia conscienciosamente dizer nada diferente. Por mais que seja grave o ferimento chamado morte (que é, de fato, freqüentemente fatal), este é um caso em que, surpreendentemente, é desnecessário chamar um médico. Há sempre uma ironia, mesmo nas páginas simples de minhas histórias de detetive favoritas, no fato de que todo mundo corre para um médico tão logo estejam certos de que um homem está morto. Mas na história de detetive pode haver pelo menos algo a ser aprendido, pelo médico, a partir do cadáver. Na especulação doutrinal não há absolutamente nada; apenas a eterna história de detetive é confundida pelo doutor em medicina fingindo ser um doutor em divindade. A verdade é que toda essa história é mero blefe e mistagogia. O médico “vê” que a mente desapareceu com a morte. O que o médico vê é que o corpo não pode mais chutar, falar, espirrar, assobiar ou dançar. E um homem não precisa ser médico para perceber isso. Mas se o princípio de energia – aquele que o fez chutar, falar, espirrar, assobiar e dançar – existe ou não existe em algum outro plano de existência, disso o médico não sabe mais do que qualquer homem. E quando os médicos estão lúcidos, alguns deles (como um ex-cirurgião chamado Thomas Henry Huxley[4]) dizem não acreditar que médicos, ou quaisquer outros homens, sabem algo a respeito. Esta é uma posição inteligível; mas não parece ser a de Sir Arthur Keith. Ele se manifestou publicamente para NEGAR que a alma sobreviva ao corpo; e para fazer a extraordinária observação de que qualquer médico deve dizer o mesmo. É como se disséssemos que qualquer competente construtor ou sobrevivente devesse negar a possibilidade da Quarta Dimensão; porque ele aprendeu o segredo técnico de que um edifício é medido pela largura, profundidade e altura. A pergunta óbvia é: Por que mencionar um sobrevivente? Todo mundo sabe que tudo é, de fato, medido por três dimensões. Qualquer um que pense existir uma quarta dimensão o faz apesar de estar muito consciente que as coisas são medidas por três. Ou é como se um homem fosse responder a um metafísico berkeliano, que assegura que toda a matéria é uma ilusão da mente, dizendo: “Posso usar a evidência de um operário inteligente que realmente tenha de trabalhar com concreto sólido ou aço; e ele lhe dirá que eles são muito reais.” Devemos naturalmente responder que não precisamos de um operário para nos dizer que as coisas sólidas são sólidas; e é num outro sentido que o filósofo diz que elas não são sólidas. Igualmente, não há nada que possa fazer um médico materialista, exceto o que possa fazer qualquer homem materialista. E é quando um homem absorveu todo aquele materialismo óbvio que ele começa a usar sua mente. E, como alguns afirmam, ele não para mais.

Essa grande erupção anti-filosófica no campo filosófico foi, contudo, esclarecedora em certo sentido. Jogou alguma luz nas afirmações prévias do conferencista em áreas que ele tinha mais direito de fazê-las. Mesmo nestas coisas ele traiu uma curiosa simplicidade comum entre os cientistas oficiais. A verdade é que eles se tornam constantemente menos cientistas e mais oficiais. Eles desenvolvem aquele fino disfarce usado diariamente pelos políticos. Eles realizam diante de nós os mais habilidosos truques com a mais desastrada transparência. É como assistir a uma criança tentando esconder alguma coisa. Eles estão perpetuamente tentando nos enganar com grandes palavras e sábias alusões; na suposição de que nunca nos tornaremos sábios – nem mesmo da forma divertida e apequenada deles. Todo escritor famoso que nos troveja “Galileu” supõe que saibamos ainda menos que ele sobre Galileu. Todo pregador da ciência popular que nos atira uma longa palavra pensa que iremos consultar o dicionário e espera que não a estudemos seriamente, nem mesmo numa enciclopédia. O uso que eles fazem da ciência é assaz parecido com o uso que dela faz os heróis de certas histórias de aventura, em que o homem branco amedronta os selvagens com a previsão de um eclipse ou com a produção de um choque elétrico. Estas são, em certo sentido, verdadeiras demonstrações de ciência. Eles estão, em certo sentido, certos em dizer que são cientistas. Onde talvez estejam errados seja em supor que somos selvagens.

Mas é muito divertido para nós que assistimos a preparação que fazem para nos dar o choque elétrico, quando estamos seriamente esperando ser chocados pelo choque. É como uma piada, quando nós, os selvagens ignorantes, somos não só capazes de prever o eclipse, mas capazes de prever a previsão. Dentre os fatos que nos são familiares por um longo tempo está o de que os homens de ciência encenam e preparam seus efeitos como o fazem os políticos. Eles também o fazem muito mal – exatamente como os políticos. Nenhum desses modernos mistagogos percebeu quão transparentes se tornaram seus truques. Um dos mais familiares e transparentes deles é o que é chamado de uma “contradição oficial”. É uma estranha forma simbólica de declarar que algo ocorreu pela negação de que tenha ocorrido. Assim, reportagens sobre a ilibada reputação dos políticos são sempre publicadas depois de escândalos políticos de forma tão regular quanto à publicação dos “bluebooks”.[5] Assim, o “Right Honourable Gentleman”[6] espera que não lhe seja necessário contradizer o que o “Honourable Member”, com certeza, não poderia ter pretendido insinuar. Portanto, um membro do Gabinete do Primeiro Ministro nega publicamente que não há qualquer alteração na política do governo em relação a Damasco. E então, Sir Arthur Keith nega publicamente que não há nenhuma alteração na atitude científica em relação a Darwin.

E quando ouvimos isso, damos um suspiro de satisfação; pois todos sabemos o que ISSO significa. Significa mais ou menos o oposto. Significa que houve uma briga dos diabos dentro do partido sobre Damasco, ou, em outras palavras, que está começando a acontecer um escândalo dos diabos sobre os desacreditados darwinistas dentro da comunidade científica. A coisa curiosa é que no último caso, as autoridades não estão apenas solenemente expressando a contradição oficial, mas muito mais simplesmente supondo que ninguém perceberá que seja oficial. No caso da similar ficção política, os políticos não somente sabem a verdade, mas sabem que nós também sabemos. Todos sabem, pela fofoca que é repetida em todos os lugares, exatamente o que significa o acordo absoluto em tudo que se relaciona ao Primeiro Ministro e seus colegas. O Primeiro Ministro não espera realmente que acreditemos que ele é o sagrado e amado rei de uma irmandade de cavaleiros que lhe juraram fé e lhe entregaram seus corações, a ele somente. Mas Sir Arthur Keith realmente espera que acreditemos que ele é o primeiro jurado de um júri contendo todos os diferentes homens de ciência, todos em absoluta concordância que a opinião particular de Darwin seja “eterna”. Isto é o que chamei de segredo infantil e de truque desastradamente transparente. Esta é a razão de eu dizer que eles nem sequer sabem o quanto sabemos.

Pois o político é menos pomposamente absurdo que o antropólogo, mesmo que os testemos pelo que eles chamam de Progresso; que é apenas e principalmente uma outra palavra para Tempo. Todos conhecemos o otimismo oficial que sempre defende o governo atual. Mas isso é como uma defesa oficial de todos os governos passados. Se um homem dissesse que a política de Palmerston[7] é eterna, o acharíamos um pouco desatualizado. Ora, Darwin era figura proeminente no tempo de Palmerston; e está igualmente desatualizado. Se o Sr. Lloyd George[8] se levantasse e dissesse que o grande Partido Liberal não recuou de uma única posição assumida por Gobden e Bright,[9] os únicos Tribunos do Povo, concluiríamos relutantemente (se tal coisa fosse concebível) que ele falava asneiras a um povo ignorante em relação à história do partido. Se um reformador social afirmasse solenemente que toda filosofia social ainda procedesse estritamente dos princípios de Herbert Spencer, deveríamos saber que isto não é verdade e que somente uma autoridade absolutamente fossilizada poderia pretender que fosse. Ora, Darwin e Spencer não eram somente contemporâneos, mas camaradas e aliados; e a biologia darwiniana e a sociologia spenceriana foram consideradas como partes de um mesmo movimento, que nossos avós consideraram um movimento muito moderno. Mesmo considerada a priori como uma questão de probabilidade, parece portanto assaz improvável que a ciência daquela geração fosse algo mais infalível que sua ética ou política. Mesmo baseado nos princípios que Sir Arthur professa, parece muito estranho que não haja agora nada mais a ser dito sobre o darwinismo do que o que ele disse. Mas não precisamos apelar para aqueles princípios ou para aquelas probabilidades. Podemos apelar para os fatos. Por acaso, sabemos alguma coisa sobre os fatos; e Sir Arthur Keith não parece saber que sabemos.

Foi num jornal católico que certas afirmações foram feitas sobre o atual darwinismo; afirmações que o próprio Sir Arthur Keith se esforçou em contradizer; e sobre as quais o próprio Sir Arthur Keith se mostrou sensacional e desastrosamente errado. É provável que a história seja agora conhecida de todos os leitores do jornal; mas é provável que ela nunca chegue ao conhecimento da maioria dos jornalistas, e ela certamente não será comentada na maioria dos outros jornais. Ao tocar sobre essa controvérsia cômica, a maioria dos jornais são jornais de partido; e apoiam o líder do partido quando publicam a contradição oficial. Eles não deixam o público saber quão triunfantemente suas outras contradições foram contraditadas.

Quando o Sr. Belloc afirmou que esses darwinistas estavam desatualizados e desconheciam os avanços recentes da biologia, ele citou, dentre muitas autoridades recentes, o biólogo francês Vailleton, que nega a possibilidade da seleção natural num caso particular relacionado a répteis e aves. Sir Arthur Keith, vindo resgatar o Sr. H. G. Wells, e ansioso por provar que ele e o Sr. Wells não estavam desatualizados ou desconheciam a recente biologia, contraditou o Sr. Belloc categoricamente.[10] Disse que não havia tal afirmação no livro de Vialleton; em outras palavras, ele acusou o Sr. Belloc de ter citado erroneamente ou de ter mal-entendido o livro de Vialleton. Revelou-se assim, para a surpresa de todos, especialmente do Sr. Belloc, que Sir Arthur Keith não conhecia a existência do livro. Ele se referia a um trabalho anterior e preliminar do mesmo autor, publicado muito tempo atrás. Este foi o último trabalho de Vialleton que ele leu. A notícia do importante livro, do qual eu, um mero homem da rua, ignorante e não científico, tinha ouvido falar pelo menos alguma coisa, não tinha caído aos ouvido de Sir Arthur. Em resumo, a acusação geral, que os darwinistas estão desatualizados, foi provada tão completamente quanto teria sido possível a qualquer controvérsia existente no mundo.

Agora, quando uma coisa dessas acontece, sobretudo quando acontece a nós, nas páginas de um jornal em que escrevemos, com um de meus próprios amigos, como se pode esperar que pessoas em nossas posições levem seriamente em consideração o discurso na abertura da Associação Britânica em Leeds? Como podemos manter um rosto sério, quando o Presidente faz uma pose, apontando para as estrelas, e declara que o darwinismo é igualmente eterno? Essa coisa não é dirigida a nós; mas aos repórteres; da mesma forma que a verdadeira história de Wells e Belloc é geralmente mantida fora das reportagens.

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[1] Sir Arthur Keith (1866 – 1955) foi um eminente anatomista e antropólogo escocês. (N. do T.)
[2] Charles Bradlaugh (1833 – 1891) foi o mais famoso ateu militante do século XIX na Inglaterra. (N. do T.)
[3] Robert G. Ingersoll (1833 – 1899), veterano da Guerra Civil americana, político, ateu militante e grande defensor do racionalismo científico e humanista. (N. do T.)
[4] Médico e biólogo inglês, principal defensor da teoria da evolução de Darwin. (N. do T.)
[5] Relatórios do governo inglês que são publicados regularmente. (N. do T.)
[6] Título aplicável à nobreza inglesa e também aos membros do Conselho Privado do Reino Unido. (N. do T.)
[7] Henry John Temple, 3º Visconde de Palmerston (1784 – 1865) – Político inglês que foi Primeiro Ministro de 1855 a 1858. (N. do T.)
[8] Político liberal inglês, único Primeiro Ministro inglês nascido no País de Gales. (N. do T.)
[9] Políticos radicais ingleses do séc. XIX. O Partido Liberal inglês surgiu de grupos radicais como os de Cobden e Bright. (N. do T.)
[10] Em contraposição ao livro “Outline of History”, a dupla Chesterton/Belloc escreveu vários livros. Chesterton escreveu uma de suas obras-primas, O Homem Eterno. Belloc manteve com Wells, na década de 1920, uma polêmica, que é aqui mencionada, que gerou vários livros: “Um complemento ao livro Outline of History do Sr. H.G. Wells”; “As Objeções do Sr. Belloc Ainda Persistem”, uma resposta ao livro-reposta de H.G. Wells, “As Objeções do Sr. Belloc”.

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