sexta-feira, 24 de agosto de 2012
TUDO EM CORÇÃO É AMOR
100 anos sem ter envelhecido
100 anos de Nelson Rodrigues no dia 23 de Agosto. Dia que marca o início do centenário do Shakespeare brasileiro: um grande leitor da alma humana com uma extensa obra que falou de amor, futebol, política, paixão, fidelidade, infidelidade… e também um grande profeta de grandes transformações no Brasil.
Por Nelson Rodrigues
Outra figura brasileira consagrada pelos palavrões: - Gustavo Corção. Ninguém diria, de maneira sucinta e inapelável: "É uma besta!" Bem que as esquerdas gostariam que o fosse. Mas os seus piores inimigos sabem, e não teriam o cinismo de negar, que Gustavo Corção é uma das inteligências mais sérias do Brasil. Certa vez aconteceu-me uma passagem extraordinária com o grande pensador católico.
Era domingo. Voltava eu, não sei se de um clássico ou de uma pelada. Na saída do Estádio Mário Filho, alguém me chama. Volto-me e dou de cara com um amigo, uma flor das esquerdas, um doce radical como o Antônio Calado ou como o Hélio Pelegrino. Eu e o amigo caminhamos no meio da torcida. Acontecera um empate e ninguém gritava. A multidão tinha algo de tristeza fluvial no seu lerdo escoamento. Então, o meu companheiro falou: - "Estou besta! Com a minha cara no chão!" Pensei que ele, Fluminense como eu, estivesse desiludido com o Tricolor (realmente, o meu clube não compra ninguém). Mas ele continuou: - "Nunca pensei que o Corção..." Fez uma pausa e repetiu: - "Estou besta! besta!"
Entre parênteses, esse meu amigo tem, pelo Corção, um ódio comovente. Não lhe diz o nome sem acrescentar... Acrescentar não. Não lhe diz o nome sem lhe antecipar um palavrão. Chega ao nome pelo palavrão. E, súbito, falava do inimigo com uma impostação diferente e, mesmo, inédita. Perguntei-lhe: - "Mas estás besta por quê?"
Esquecia-me de dizer que o meu amigo levava um radinho de pilha. Abriu uma pausa na conversa para ouvir os comentários do João Saldanha e as gravações dos "goals". Só depois do Saldanha é que voltamos ao Corção. Rádio desligado, e o outro me perguntou, na sua impressão profunda: - "Leste o artigo que ele escreveu? Que escreveu sobre o filho? Ó rapaz! O artigo do Corção sobre o filho?"
Não era um artigo do dia ou da véspera. Da sua publicação, transcorrera toda uma semana. E, através dos sete longos dias, o artigo do Corção ficara badalando dentro do meu amigo, como um sino inexorável. Membro da "festiva", freguês do "Antonio's", havaiano de praia, relera o inimigo umas quinze vezes. E a cada leitura a sua perplexidade era cada vez mais amarga. Súbito, via um novo Corção, um Corção jamais suspeitado, um anti-Corção.
Vejam vocês: - o grande prosador escrevera uma página sobre o filho, Rogério. Foi um artigo de funda e dilacerada ternura. O nosso Rogério estava no Vietnam, como um dos representantes do Brasil. Lá, as balas não escolhem, não discriminam, e tanto estouram a cara de americano, como de brasileiro. E havia no artigo todo um amor insuportável, e uma solidão desesperadora.
O assombro do meu amigo tinha a sua lógica. Durante anos, criara, e recriara, dia após dia, uma imagem hedionda do "reacionário". Ele imaginava que, se o Corção passasse a mão pela face, havia de sentir a própria hediondez. Nunca lhe ocorrera que aquela besta-fera pudesse ter costumes, usos, gestos, como outro qualquer. Impossível um Corção tomando cafezinho ali na esquina; inadmissível uma gargalhada do Corção, ou um assovio do Corção. E aquele Corção pai, simplesmente pai, e simplesmente terno, e simplesmente infeliz, e simplesmente órfão do próprio filho, contrariava toda uma imagem feita de palavrões de insultos, de baba.
Mas, vejam toda a operação psicológica do meu amigo. A princípio não entendera uma palavra, tão desconhecido, tão estrangeiro, tão alienado parecia aquele Corção vergado, sofrido, perdidamente solitário. Só depois é que, limpando a figura dos palavrões, dos ultrajes, das calúnias, é que o freguês do "Antonio's" pode chegar à luz última e verdadeira do inimigo.
Por fim, quem estava infeliz, na volta do Estádio Mário Filho, era o membro da festiva. A partir daquele momento, os seus palavrões soariam falsos aos próprios ouvidos. O meu amigo estava comovido e, pior, furioso com a própria comoção.
E, então, chegou a minha vez. Não me lembro de tudo o que disse de Gustavo e de Rogério. O esquerdista ouvia só, numa desesperada impotência para negar a imagem que eu ia elaborando de Corção. Expliquei-lhe que tudo em Corção é amor; poucas pessoas conheço com tanta vocação, tanto destino, para o amor. O que parece ódio, nos seus escritos, é ainda amor. Amor que assume a forma das grandes e generosas procelas.
Bate forte, muitas vezes. Mas sempre por amor. Está fatalmente ao lado da pessoa e contra a antipessoa. É a luta que o apaixona. Todos os dias, lá vai ele atirar o seu dardo contra as hordas da antipessoa. Eis o que eu repeti para o meu amigo das esquerdas: - o Corção tem um coração atormentado e puro de menino.
Quem o sabe ler, percebe em todos os seus escritos o pai de Rogério, sempre o pai de Rogério, querendo salvar milhões de filhos, eternamente.
(O Óbvio Ululante, Livraria Eldorado Editora, 1968, pp. 164-166)
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Nelson Falcão Rodrigues (Recife, 23 de agosto de 1912 — Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1980) foi um importante dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro, tido como o mais influente dramaturgo do Brasil.
Nascido no Recife, Pernambuco, mudou-se em 1916 para a cidade do Rio de Janeiro. Quando maior, trabalhou no jornal A Manhã, de propriedade de seu pai. Foi repórter policial durante longos anos, de onde acumulou uma vasta experiência para escrever suas peças a respeito da sociedade. Sua primeira peça foi A Mulher sem Pecado, que lhe deu os primeiros sinais de prestígio dentro do cenário teatral. O sucesso mesmo veio com Vestido de Noiva, que trazia, em matéria de teatro, uma renovação nunca vista nos palcos brasileiros. A consagração se seguiria com vários outros sucessos, transformando-o no grande representante da literatura teatral do seu tempo, apesar de suas peças serem tachadas muitas vezes como obscenas e imorais. Em 1962, começou a escrever crônicas esportivas, deixando transparecer toda a sua paixão por futebol. Veio a falecer em 1980, no Rio de Janeiro
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