terça-feira, 28 de agosto de 2012

AVE, PALAVRA


Edição lançada pelo Senado Federal relembra a trajetória e a obra literária do mineiro Affonso Arinos de Mello Franco, intelectual que marcou a política brasileira no século 20

Ângela Faria - Redação EM – in DIVIRTA-SE
O deputado Affonso Arinos em seu palco preferido: a tribuna
Na capa de Apresentação de Affonso Arinos, 124º volume da coleção Edições do Senado Federal, o homenageado aparece impecável, vestido com seu fardão. Justiça seja feita: ali está um político que mereceu – de verdade – sua cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL).
Escrito por Virgílio Costa, pesquisador da Casa de Rui Barbosa, o livro reconta a trajetória de um homem público que, 20 anos depois de sua morte, mais parece personagem de ficção. Senador humanista, dedicado jurista, liberal de quatro costados e apaixonado por livros, alguns de seus discursos ajudaram a escrever a história do Brasil. Como escritor, era admirado por Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Fez da tribuna do Congresso trincheira de ideias, algo praticamente (e infelizmente) impensável hoje, em meio a mensalões, escândalos, funcionários fantasmas, nepotismo cara de pau e atos secretos.
Affonso Arinos de Mello Franco assistiu de perto a momentos cruciais da história brasileira no século 20. O pai, Afrânio de Mello Franco, foi deputado estadual e federal, ministro e chanceler do governo Getúlio Vargas. O filho acompanhou as articulações dele e do irmão mais velho, Virgílio, em prol da Revolução de 1930.
Os rapazes de Afrânio, aliás, dariam muito trabalho ao gaúcho, que posteriormente se transformaria em ditador: ajudaram a redigir o Manifesto dos Mineiros, fundaram a União Democrática Nacional (UDN). Virgílio morreu ainda moço, assassinado. O belo-horizontino Affonso se elegeu várias vezes deputado por Minas Gerais, foi senador pelo Rio de Janeiro, chanceler de Jânio Quadros e ajudou a articular a emenda parlamentarista que viabilizou a volta de João Goulart ao país, depois da renúncia de Jânio. Deflagrado o golpe militar, apoiou o movimento, no início. Mas se afastou dos generais ao perceber que a linha-dura planejava cercear o poder civil. Recolheu-se em 1967, impôs-se 20 anos de ostracismo e voltou à tribuna, filiado ao PFL, para ajudar a escrever a Constituição Cidadã. Quando morreu, em agosto de 1990, pertencia aos quadros do PSDB.
Jurista e professor de direito, intelectual respeitado, convivia com Sérgio Buarque de Hollanda (casado com sua prima Maria Amélia), Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Pedro Nava e o primo Rodrigo Mello Franco de Andrade, responsável pela preservação do patrimônio histórico nacional. Udenista convicto e antigetulista, Afonso era amigo fraterno do pessedista Gustavo Capanema, braço pessedista de Getúlio Vargas nos setores de educação e cultura.
“Dos velhos sangues provinciais herdei, com efeito, o duplo destino da política e das letras. Não o escolhi, senão que o encontrei aberto diante de mim (...). Não consigo rememorar conversas caseiras que não versassem livros e autores, eleições e revoltas. As casas-grandes de BH e de Copacabana, onde nasci e me criei, reproduziam, em pequeno, o agitado ambiente das câmaras legislativas e das associações literárias”, afirmava Afonso.
Hoje em dia, pena que a maioria dos livros dele seja tão difícil de encontrar, a não ser depois de muita peleja nos sebos. Um estadista da república (Afrânio de Mello Franco e seu tempo), por exemplo, é uma aula de história do Brasil e de Minas Gerais. Os volumes de memórias – A alma do tempo, Alto-mar maralto, Diário de bolsa seguido de Retrato de noiva – trazem testemunhos preciosos, sobretudo a respeito da elite brasileira. “A Alma do tempo, que fundo releio para alongamento e consolo, um dos livros maiores do pensar e sentir brasileiros”, elogiou Guimarães Rosa, ao tomar posse na ABL. Detalhe: nove anos antes, havia sido derrotado por Affonso Arinos na disputa pela cadeira de José Lins do Rego.
Na boca do povo 
Legítimo representante da casa-grande brasileira, Affonso Arinos de Melfo Franco, ainda hoje, está na boca do povo. Foi ele quem propôs a Lei nº 1.390 de 3 de julho de 1951, que considera contravenção penal práticas resultantes de preconceitos de raça e de cor. Felizmente para o Brasil de tantas letras-mortas, a Lei Affonso Arinos pegou.
Criado entre antigos escravos pertencentes ao tradicional clã de Paracatu, ele apresentou o projeto depois de ouvir as humilhações por que passava José Augusto, motorista da família. Negro, foi proibido de entrar numa confeitaria em Copacabana, enquanto a esposa, uma loura catarinense, e os filhos o esperavam lá dentro.
Conta Virgílio Costa: aprovado o projeto no Congresso, Getúlio Vargas o sancionou depois de muito relutar, pois o considerava “demagogia da UDN”. Coube ao ministro da Justiça, Negrão de Lima, demovê-lo da ideia. Getulistas passaram, então, a articular para que a lei se chamasse Lei Getúlio Vargas, mais um “feito” do pai dos pobres. Intensa campanha pró-Affonso Arinos foi desencadeada na imprensa para pôr os pingos nos iis: até a progressista Rachel de Queirós, comunista na juventude, defendeu o udenista em artigo na revista O Cruzeiro.
Outro embate Affonso Arinos versus Getúlio Vargas fez história. Em 13 de agosto de 1954, o udenista mineiro pronunciou na Câmara dos Deputados discurso que jogou a pá de cal no governo do gaúcho, mergulhado em séria crise política provocada pelo atentado contra Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro, em que morreu o major Rubens Vaz. “Lembre-se, se tem, realmente, o coração cordato e a alma cristã a que ontem se referiu, de que está sendo olhado e surpreendido pelo povo como um Sileno gordo, pálido e risonho, indiferente ao sangue derramado; lembre-se, homem, de que é preciso levantar o coração dos homens (...). Lembre-se, pelos olhos azuis da irmã Vicência, que se curva, hoje, com os seus 80 anos, no convento de Diamantina, rezando pelo bem do Brasil; lembre-se, homem, pelos pequeninos, pelos humilhados, pelos operários, pelos poetas: lembre-se dos homens deste país e tenha a coragem de ser um desses homens, não permanecendo no governo, se não for digno de exercê-lo”, afirmou o orador.
Morto Getúlio, o mineiro voltou à tribuna em 24 de agosto, contrariando amigos e correligionários que temiam por sua segurança diante da comoção provocada pelo suicídio do presidente. “O drama com que se encerraram os acontecimentos políticos que tanto sacudiram o país pertence à história. À história também já pertence à personalidade do presidente Getúlio Vargas”, discursou. “Unidos em torno das instituições, salvaremos o Brasil; divididos pelo ódio, mergulharemos a pátria na escuridão.”
Mas a divisão se aprofundou. O golpe militar de 1964 era o resultado – previsível – de uma crise antiga, analisava Affonso Arinos. Ou melhor, de uma coleção de crises: 1930, 1937, 1945 e 1954. Virgílio Costa assegura que Arinos não conspirou ao lado dos generais, mas informa que ele atendeu ao chamado do governador mineiro Magalhães Pinto, articulador civil do movimento. Veio para Belo Horizonte, assim como o amigo Milton Campos, às vésperas da marcha liderada pelo general Olímpio Mourão Filho rumo ao Rio de Janeiro.
Afonso tentou saídas constitucionais para o país. Ao perceber a proximidade dos anos de chumbo, não se candidatou em 1966. Buscou refúgio na literatura nos 21 anos seguintes, enfrentou grave depressão na década de 1970. Passou dias internado, sob o olhar vigilante da mulher, Anah. O amigo Pedro Nava – ironia do destino – confiscou o revólver que guardava em casa. “Por enquanto, nada a fazer, nem mesmo te receitar calmantes. Receito a você coragem”, diagnosticou o médico e memorialista, que se suicidaria em maio de 1984.
Na década de 1980, com a verve de sempre, Affonso Arinos volta às tribunas. Defendeu a redemocratização, apoiou a candidatura do conterrâneo Tancredo Neves à Presidência da República e se elegeu pelo PFL fluminense. Um dos destaques da Assembleia Nacional Constituinte, novamente cairia na boca do povo: com emocionado discurso, encaminhou o projeto que dá aos adolescentes o direito de votar. “A tradição do Brasil não é 16 anos para eleitor, não; é 15 anos para o imperador! E ninguém foi mais prudente, ninguém foi mais acertado”, discursou, referindo-se a dom Pedro II. A moçada, nas galerias, fez uma festa para o velho senador.
Desertor de cemitério
Affonso Arinos (1905-1990) era homem do mundo, mas sempre carregou cosigo a Minas Gerais de sua gente. Nasceu em Belo Horizonte, mudou-se para o Rio de Janeiro, começou a vida como promotor de Justiça em sua terra natal, voltou para o coração da República. Ocupou dezenas de cargos públicos, era um homem da universidade.
Enfrentou a tuberculose (o pai o chamava de “desertor de cemitério”), perdeu a mãe ainda garoto, o querido irmão Virgílio foi assassinado e o neto primogênito morreu num acidente na piscina. Em seus escritos, registra dores da vida, mas também as delicadezas do mundo – seja em Ouro Preto, Roma, Rio de Janeiro, BH ou Paracatu. Foi memorialista de mão cheia. Escreveu um belo poema quando derrubaram a legítima Matriz da Boa Viagem, em 1925: “Eu achei que foi bobagem,/ Mas o povo de Minas disse que era progresso”. 
Um de seus livros, delicado romance epistolar, traz a correspondência que Affonso trocou com sua eterna companheira. “Quem ler as cartas de Anah a Affonso e de Affonso a Anah, e não for curto de sensibilidade e inteligência, sentirá logo a qualidade particular desse oaristo à distância. E quem for curto... Deus tenha pena de seu espírito”, prefaciou Carlos Drummond de Andrade. Casal de romance, aquele: ele morreu em agosto de 1990. Seis semanas depois, dona Anah deixou para sempre a famosa casa da Rua Dona Mariana, em Botafogo, com sua gigantesca biblioteca de três andares – das mais bonitas do Brasil.
Velhinho, com o senso de humor que encantava os amigos, dizia ao amigo Otto Lara Resende: já se considerava estátua. Meio esquecido pelos mineiros, pedia ao colega de São João del-Rei que integrasse a comissão encarregada de homenageá-lo depois de sua morte – “daqui a muito tempo”, diga-se de passagem. Que o pusessem na Praça Affonso Arinos, batizada com o nome de seu querido tio escritor, pertinho da casa onde passou a infância.
Está aí uma bela sugestão ao prefeito Márcio Lacerda. Já que Carlos Drummond, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos, o próprio Otto e Pedro Nava viraram estátuas, seria muito justo acrescentar mais um à legião – que, aliás, não se cansa de enfrentar o vandalismo dos “curtos”.
Affonso Arinos bem que merece o seu próprio cantinho no coração de BH.
Apresentação de Affonso Arinos
De Virgílio Costa
Edição do Senado Federal, volume nº 124, 748 páginas
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AFFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO
(Nasceu em Belo Horizonte,  a 27 de novembro de 1905 — Faleceu no Rio de Janeiro, a 27 de agosto de 1990) foi jurista, político, historiador, professor, ensaísta e crítico brasileiro. Destaca-se pela autoria da Lei Affonso Arinos contra a discriminação racial em 1951. Ocupou a Cadeira nº 25 da Academia Brasileira de Letras, onde foi eleito em 23 de janeiro de 1958.
Filho de Afrânio de Mello Franco e de Sílvia Alvim de Mello Franco e sobrinho do escritor Afonso Arinos. Casou-se com Ana Guilhermina Rodrigues Alves Pereira (neta do Presidente Rodrigues Alves), com quem teve dois filhos. Era irmão de Virgílio Alvim de Mello Franco.

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