domingo, 12 de agosto de 2012
IR À FONTE
No texto anterior, eu comentava sobre a importância de o católico instruir-se, compreender com profundidade o mundo à sua volta, servindo-se dos olhos de homens que Deus suscitou exatamente para curar a nossa cegueira intelectual. Mencionei, em especial, dois grandes nomes: Gustavo Corção e Gilbert Keith Chesterton.
Hoje eu gostaria de insistir no tema, pedindo ao caro leitor que seja ousado, que caminhe um pouco mais, seguindo o mandamento evangélico de andar duas milhas se alguém lhe pedir para andar uma. Certamente, é útil e necessário ler Corção e Chesterton; mas é também imprescindível, tanto quanto se possa, ler o que eles leram, beber da água que eles beberam.
Refiro-me, principal mas não exclusivamente, a Santo Agostinho e a Santo Tomás de Aquino. Para se ter uma ideia do quanto esses santos doutores influenciaram os dois outros autores citados, basta dizer que A descoberta do outro são as Confissões de Gustavo Corção, enquanto Dois amores – duas cidades é a sua A cidade de Deus. Parece-me oportuno frisar que Confissões é leitura obrigatória. (Já venci alguns debates por causa desse livro. Você pode fazer o mesmo.) Também creio que o seja O livre-arbítrio. De A cidade de Deus é recomendável ter pelo menos uma noção geral.
Mas não para por aí a influência dos dois santos nas obras do inglês e do brasileiro. Chesterton e Corção, corrijam-me se eu estiver errado, podem ser considerados tomistas; seu pensamento está geneticamente associado à filosofia do doutor angélico. O vigor com que eles defendem a valorização do senso comum – que, aliás, é bastante democrático –, do senso de objetividade, o seu realismo, a insistência com que propugnam que todo conhecimento nos chega pela porta dos sentidos, isso tudo é Santo Tomás! Para eles, conhecimento é a adequação da inteligência ao objeto.
Não é demais recordar que Chesterton possui uma das melhores biografias de Santo Tomás que já foram escritas, recebendo louvores incontidos do próprio Étienne Gilson, expert no assunto.
Um católico que conhece bem Santo Agostinho e Santo Tomás é como um soldado armado até os dentes. Mais do que isso: é alguém que sabe manejar as armas. À medida que se lê o bispo de Hipona e o boi mudo, absorve-se um pouco do seu modo de raciocinar, da sua habilidade em esgrimir múltiplos argumentos com uma lógica irrefutável.
Convém, pois, que nos esforcemos por entender um pouco de tomismo, de apreender um pouco do seu vocabulário e dos seus conceitos. Algum contato com a Suma Teológica é necessário. É indispensável conhecer as antológicas cinco vias da prova filosófica da existência de Deus. Ademais, as lições de Santo Tomás sobre direito natural são magníficas, estupendas, talvez insuperáveis. Não é à-toa que sejam tão elogiadas e tenham influenciado tão fortemente autores como Michel Villey, Edgar de Godói da Mata-Machado e André Franco Montoro.
Nenhum católico cometa o tresloucado ato de, ao dialogar com o mundo não católico ou não cristão, condenar o aborto ou o casamento gay simplesmente porque são pecados. Decerto, faltar à Missa aos domingos, sem justo motivo, também é pecado, mas nem por isso se vai pretender que a lei do Estado obrigue as pessoas a ir à Missa. O nosso argumento perante o mundo exterior, argumento verdadeiro, argumento útil, argumento científico, é o de que o aborto e o casamento gay são injurídicos, violam o direito natural, atentam contra a dignidade humana. E é esse direito, essa lei natural, que constitui a verdadeira fonte, a origem do direito positivo, das leis do Estado.
A propósito, vale lembrar a distinção que Santo Tomás estabelece entre ilícitos contra a razão e ilícitos contra a natureza. Esses últimos revestem-se de maior gravidade. É o caso dos atos de homossexualidade.
Hans Kelsen afirmava: a lei positiva deve obedecer à Constituição. Forjou ele uma estranha e abstrata norma hipotética fundamental: “devemos obedecer ao pai da Constituição”. Nós, com Tomás, dizemos: a Constituição deve obediência à lei natural, pois é esta lei que diz o que é o homem. É dele a célebre advertência: “Toda lei humanamente imposta tem tanto de razão de lei quanto deriva da lei da natureza. Se, contudo, em algo discorda da lei natural, já não será lei, mas corrupção de lei” (Suma Teológica. Vol. IV. I Seção da II Parte, questão 95, artigo 2).
O justo e o injusto não dependem de um critério procedimental, formal: que o Parlamento aprove, seguindo determinado rito, um texto constitucional. Constituições também podem trazer aberrações. É a lei natural que fornece o verdadeiro critério de justiça material à Constituição e às leis positivas. A virtude da justiça não depende do consenso da maioria ou do confronto de forças antagônicas dentro do Parlamento. Existe a justiça real, válida para todos os homens, e não creio ser possível compreendê-la realmente sem a explicação de Santo Tomás.
O jus naturalismo clássico, objetivo, realista, não se confunde com o jusnaturalismo abstrato, racionalista, dos iluministas, que tratam do homem em um estado ideal – artificial, abstrato, fictício –, denominado estado de natureza. Com efeito, o progresso do homem também integra a sua natureza. Não é menos natural o homem com iPad do que o homem com tacape. Um dos aspectos pelos quais o homem é imagem de Deus é justamente a sua auto transcendência: o ser humano nunca está satisfeito, tem sede de infinito, sempre quer superar-se, não se acomoda no tempo e no espaço. Obviamente, no debate com um não cristão, não vamos invocar a semelhança do homem com Deus. Contudo, a autotranscedência humana é de per si evidente, objetivamente demonstrável, independendo de argumentação teológica.
Não há por que pensar que o direito natural só existia para o homem das cavernas, até porque o homem das cavernas não conhecia a distinção entre direito e sentimento religioso. Nos primórdios da humanidade, normas jurídicas foram tomadas como normas religiosas. Hoje compreende-se que direito e religião possuem campos próprios, autônomos, embora não necessariamente se contraponham e eventualmente possam interpenetrar-se (o homicídio é pecado, mas também é crime).
Em suma: quando se discute direito, os argumentos devem ser jurídicos. Não devemos esquecer os conselhos de nossos pais, mais sábios e experimentados do que nós: demos ouvidos a Agostinho e Tomás. Invoquemo-los, também, pedindo a sua intercessão. É certo que nós nos assemelhamos àqueles com quem convivemos. Quanto mais intimidade tivermos com essas duas muralhas da fé pela leitura e pela oração, mais nos enriqueceremos com as suas virtudes. Um pouco daquela torrente de graças, daquela superabundância do Espírito que foi derramada neles chegará até nós.
*Paul Medeiros Krause é procurador do Banco Central em Belo Horizonte.
Belo Horizonte, 10 de agosto de 2012
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