quinta-feira, 5 de abril de 2012

HOMILIA DA MISSA DA CEIA DO SENHOR

Por Frei José Carlos Lopes Almeida, OP - Lisboa, Portugal.
Quando no próximo sábado dermos início à celebração da Vigília Pascal cantaremos o Preconio Pascal e nele exaltaremos a noite em que o céu se une à terra, em que o homem se encontra com Deus.
Hoje celebramos outra noite, uma noite em que podemos dizer que é Deus que se encontra com o homem, uma noite cheia de acontecimentos e de testemunhas, ao contrário da noite da ressurreição que nenhum homem testemunhou.
Esta é a noite da última ceia de Jesus com os discípulos, é a noite da agonia e da oração no jardim das oliveiras, é a noite da traição de Judas, a noite da prisão e a noite da negação de Pedro. Nela e nos vários acontecimentos condensa-se e sintetiza-se a condição humana, a sua fragilidade e infidelidade, o seu afastamento do projeto de Deus, bem como o amor de Deus pelos homens, esse amor levado até ao fim na encarnação e na experiência da morte dolorosa e da solidão face ao destino inexorável.
Esta referência à noite não é um mero pormenor temporal, porque no ciclo do tempo é uma realidade importante na economia da salvação. Assim, se para os homens o dia começa com a manhã, passa pelo meio-dia e chega à noite, no cômputo divino o dia começa com a noite, com o princípio da noite e termina na aurora. Vemos isso no momento da criação em que nos é dito que cada dia é criado primeiro pela tarde e só depois vem a manhã. Na narração da instituição da Páscoa, na libertação do Egito, é também à noite que tudo se inicia, para durante a noite se caminhar e no romper da aurora já a escravidão ter ficado para trás. Há assim uma realidade que se vislumbra no cair da tarde, uma luz que nos ilumina e permite atravessar as trevas da noite e reconhecer a luz maravilhosa do despontar da aurora e do dia.
Esta noite em que tudo acontece é também símbolo da noite em que vivemos cada um de nós e a humanidade na sua condição finita, na sua condição pecadora. É a noite das nossas paixões, da nossa violência, do ódio e das infidelidades, da mentira, do sofrimento e dos abandonos, é a noite das nossas lágrimas e da nossa angústia.
E é a essa noite que Deus vem em Jesus Cristo e vem com um gesto, com uma atitude, que não podemos jamais esquecer, porque nos foi deixado como mandamento, como forma de vida, o gesto da lavagem dos pés.
É um gesto, um ato que estava reservado para os escravos, para os servos dos senhores que recebiam convidados. Antes de se sentarem à mesa o servo lavava os pés daqueles que chegavam. Um gesto de acolhimento e de higiene. Jesus repete este mesmo gesto, toma uma atitude servil e lava os pés aos seus discípulos, mas fá-lo já no meio da refeição, quando a celebração da ceia pascal ia já a meio ou até tinha já terminado na sua forma mais ritual. Desta forma o gesto adquire outra dimensão, outro significado, torna-se de fato um rito, um mandamento, não é um mero gesto higiênico.
Através deste ato Jesus sintetiza e assume a sua encarnação, assume como realmente se tinha feito homem para poder servir o homem e servi-lo da forma mais humilde; e indica aos seus discípulos, aos seus amigos, que só poderiam tomar parte com ele, ou seja, só poderiam participar da sua condição divina na medida em que vivessem da mesma forma, assumissem a mesma condição servindo e cuidando uns dos outros.
E este cuidado não é uma ideia teórica, uma retórica, bem pelo contrário é uma realidade bastante prática, e por isso Jesus lava os pés de cada um dos discípulos assumindo a própria carga sensual do gesto, que é inevitável, mas que é necessária para que se veja a sua dimensão concreta, palpável, real. O amor exerce-se praticando, vivendo-se através de gestos muito concretos, por vezes assumindo uma condição carnal que é inevitável e até urgente. Não podemos querer cuidar do espírito e da alma se deixamos o corpo por cuidar.
Jesus podia ter lavado as mãos aos discípulos, seria mais fácil e poderia ter a mesma carga simbólica, mas ao lavar os pés Jesus mostra uma vez mais como nos veio cuidar e salvar naquilo que temos de mais frágil, de menos decoroso. Os pés são a nossa fragilidade, a nossa possibilidade de cairmos e nos magoarmos, são a nossa condição de infidelidade, são os membros que tantas vezes nos levam para longe dos caminhos de Deus. E Jesus veio cuidar desses pés, veio purificá-los para que o possamos seguir, porque imediatamente terminada a ceia e o seu ensinamento diz aos discípulos, “partamos daqui”.
A lavagem dos pés tem esse efeito de nos purificar, mas também de nos fortificar para atravessar a noite, a noite tantas vezes sem sentido da nossa existência, da nossa tentativa de seguir o Senhor. Acolhamos esta humildade de Jesus, a sua generosidade de cuidar de nós, mesmo naquilo que menos merecemos, e procuremos viver da mesma forma humilde e disponível aos outros para podermos tomar parte com ele na sua glória.

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