sábado, 12 de novembro de 2011

UMA JORNADA DE APRENDIZAGEM E ENCANTAMENTOS NA LAGUNA DOS PATOS – Parte I

Hélio Riche Bandeira, Porto Alegre, RS, 10 de novembro de 2011.

Uma longa jornada começa com um único passo. (Lao-Tsé, escrito chinês)


A vida nos propicia oportunidades para sermos felizes e realizarmos experiências inesquecíveis, mas por receios e comodismos seguidamente nos afastamos destas metas e, quase sempre, depois nos lamentamos por não tê-la vivido plenamente.

A minha primeira grande jornada de caiaque foi um destes momentos. Fui convidado para fazer uma viagem acompanhando o Coronel Hiram, hábil e veterano canoísta, num percurso de mais de trezentos quilômetros pela Laguna dos Patos da Praia do Laranjal em Pelotas até a Vila de Itapuã em Viamão.

Para complicar mais a situação eu não possuía nenhuma experiência neste desporto e dispunha de apenas um pouco mais de um mês para estar em condições de iniciar a viagem e realizar todo o aprendizado necessário para cumprir esta jornada de forma satisfatória.

Meu grande amigo e professor Coronel Hiram me deu todo o apoio necessário para enfrentar esta missão, me emprestou um de seus caiaques, uma roupa de neoprene para suportar o rigoroso frio do inverno gaúcho, além de transmitir todas as dicas e incentivos necessários para meu aprendizado neste desporto.

Comecei o treinamento no lago “Rio Guaíba”. Na minha primeira aula saí da Vila de Itapuã e fui até uma pequena praia próxima do farol perfazendo um percurso de aproximadamente trinta quilômetros entre ida e volta. Durante este trajeto as ondas, na ida, vinham de frente me assustando e fazendo remar sempre próximo da praia por segurança e, na volta, vinham de través por trás fazendo com que eu não conseguisse manter a direção desejada e tendo que fazer, por diversas vezes, voltas de trezentos e sessenta graus para retomar o rumo correto. Cheguei extenuado, com dores por todo corpo e achando impossível fazer a grande travessia, mas me lembrei que dera apenas um passo em uma grande caminhada e que os passos seguintes, como os de uma criança que está aprendendo a andar, seriam menos penosos. E assim aconteceu, conforme ia treinando os movimentos iam melhorando e os temores diminuindo.

Realizei diversos outros treinamentos em variadas situações, ora com o lago parecendo um espelho, ora parecendo um mar bravio com ondas e muito vento. O temor e a apreensão do início ao enfrentar distâncias em longos tempos dentro do caiaque começavam a dar lugar ao encantamento pela natureza exuberante que observava nos trajetos percorridos. Ponta Grossa, Belém Novo, Ilha de Francisco Manoel, Praia das Pombas, Praia da Pedreira, Praia do Sítio, Farol de Itapuã, e tantos outros locais de rara beleza faziam com que minhas energias se restabelecessem e que as metas fossem alcançadas.

Todos estes locais lindos e pitorescos são verdadeiros refúgios ecológicos próximos da selva urbana na região metropolitana como bem caracteriza Knippling (1993, p. 17) ao descrever a Ilha de Francisco Manoel:

Chico Manoel, como é carinhosamente chamado pelos seus usuários, é um reduto de proteção ecológica do clube Veleiros do Sul de Porto Alegre. De posse da ilha, este clube náutico a vem preservando da maneira como foi concebida pela Natureza, salvo certas facilidades indispensáveis, como o pequeno porto, trapiche e instalações terrestres adequadas aos seus associados e adaptadas ao ambiente, em estilo que não fere a lindíssima paisagem. Só tem uma praia, fora a do porto, que fica no lado sul e é alcançada por uma trilha que circunda a ilha.

O início da viagem: da Praia do Laranjal a Ilha da Feitoria

No dia 16 de setembro, minha esposa Zaida e minha filha Dafne me levaram de carro para Pelotas. Visitamos nosso amigo Claiton de Ávila Furtado, promotor de lazer cultural do SESI daquela região, e sua agradável família e depois fomos descansar pernoitando na Pousada do Pomar, na Praia do Laranjal. Neste local nos encontramos com o Coronel Hiram e a Srta. Rosângela Schardosim, apoiadora incondicional em diversos trechos da viagem.

Na manhã seguinte, às seis horas da manhã, nos encontrávamos na beira da praia prontos para iniciar a grande travessia. O vento estava muito forte e vindo do nordeste, ou seja, teríamos de remar contra, além de enfrentar as ondas que atingiam aproximadamente um metro e meio de altura. Refletimos um pouco se seria possível a partida e mesmo assim resolvemos arriscar este primeiro enfrentamento contra a natureza.

Disse certa vez um cronista que cada povo tem a ventania que merece e que, no Rio Grande, seria simplesmente ridículo um ventinho franzino que se chamasse zéfrio ou brisa. Quais são os nomes então? O nordestão traz muita areia. A lestada é bem mais forte. Limpando as nuvens do céu, mas trazendo um frio danado, é o famoso minuano. O carpinteiro-da-costa ganhou tal nome expressivo porque, vendo um veleiro encalhado, vai tirando lasca e casca até sobrar só o esqueleto. O mais terrível é o tufão dos Andes que aqui chega com o nome de pampeano. (LESSA, 1985, p. 115.

Despedimos-nos de nossos amigos e apoiadores e colocamos os caiaques na água revolta. Os primeiros momentos, entrar no barco sem virar por causa das desafiadoras ondas e remar contra um forte vento num constante subir e descer, foram de pura adrenalina e apreensão. Porém, conforme o tempo ia transcorrendo, a confiança ia aumentando e as fortes remadas para vencer as adversidades tornavam-se cada vez mais atividades corriqueiras. Assim continuamos até pararmos um pouco antes da colônia de pescadores Z3, onde constatamos que apesar do esforço estávamos remando numa velocidade de somente três quilômetros por hora e que neste ritmo não chegaríamos a São Lourenço do Sul, local previsto para o primeiro dia, e que teríamos de reorganizar os nossos planos.

Após um breve descanso, retornamos a jornada. Passamos pela Colônia Z3, a qual me chamou a atenção pelo seu grande tamanho e por, naquele dia, só ter um barco de pesca na água e ainda mais próximo da orla que nossos caiaques, e fomos até a boca da Lagoa Pequena onde fizemos uma nova breve parada para comer uma barra de cereal e beber um pouco de isotônico.

Um pouco depois de começar a travessia da boca da Lagoa Pequena o vento diminuiu por uns cinco minutos para nossa felicidade, mas depois voltou com toda a sua intensidade e ainda com uma forte chuva para complicar mais ainda a situação. Felizmente esta chuva também foi breve e parou antes de chegarmos ao próximo ponto de parada que era na Ponta da Feitoria, local onde havia uma pequena comunidade de pescadores e até uma pequena capela e, segundo Moura (apud FIGUEIRA, 2007):

possuía até o início da década de setenta, atividades de comércio e organização social muito forte. No entanto diante das dificuldades de deslocamento à zona urbana, entre outros recursos, os moradores a abandonaram, migrando para a Colônia Z3 e para outras comunidades pesqueiras localizadas em cidades como São Lourenço do Sul.

Entretanto também existem relatos, que o povoado fora transferido após acontecer um incêndio numa casa com a morte de três mulheres estando uma grávida.

Seguindo pela Ponta da Feitoria remamos até uma pequena casa onde paramos para pegar informações com o Sr Fernando, caseiro daquelas terras. Ele nos deu a dica de que em alguns quilômetros acima tinha um casarão antigo onde conseguiríamos abrigo com Sr Flávio Oliveira Botelho, o qual também havia ajudado-o pela manhã no resgate de seu pequeno barco com motor de popa que havia afundado em decorrência dos fortes ventos.

Após nove horas de fortes remadas desde o início desta jornada e deslocando apenas trinta quilômetros chegávamos ao antigo casarão em ruínas, local de nosso pernoite. Ao desembarcarmos o Coronel Hiram foi procurar o Sr Flávio, que primeiramente disse que poderíamos ficar num antigo galpão, mas ao ver que nós não estávamos em um veleiro, mas sim em pequenos caiaques, nos convidou gentilmente para ficarmos em sua casa que se localizava nos fundos do casarão.

Descansar e passar algumas horas neste local de raríssima beleza compensou todas as adversidades sofridas nesta primeira etapa. Neste paraíso a natureza graciosamente esculpiu uma perfeita harmonia entre o casarão, a lagoa, a praia, a vegetação e a hospitalidade.

O sobrado em ruínas cercado por grandes paineiras, segundo o Sr Flávio, era a sede da antiga Estância Sotéia com mais de duzentos anos que ainda conservava bastante visível toda sua suntuosidade e beleza histórica. A sua origem vem sendo pesquisada pelo Laboratório de Antropologia e Arqueologia da UFPEL conforme relata Rosa (2008):

Os primeiros resultados da pesquisa revelam que no local não funcionou a Real Feitoria do Linho Cânhamo do Rincão do Canguçu (1738-89), como apontam alguns memorialistas e conforme a toponímia sugere, mas sim unidades domésticas oitocentistas que consistem na sede da Estância Sotéia e duas residências agregadas, das quais uma ainda está edificada. Esta hipótese é sugerida a partir da análise dos vestígios resgatados, bem como o diagnóstico dos aspectos arquitetônicos das edificações (sobrado e casa térrea de alvenaria em estilos construtivos no século XIX).

Nos arredores do sobrado a vegetação nativa quase intocada pela mão humana se destacava com impressionantes figueiras algumas com suas raízes formando verdadeiras esculturas e outras com copas tão bem armadas que pareciam terem sido podadas por um grande artista. E, completando este quadro maravilhoso, ainda acrescenta-se a receptividade do nosso novo amigo Flávio, que além de nos acolher em sua casa, nos serviu um café quente, preparou um suculento carreteiro e nos interou de diversas histórias deste divino lugar.

No final deste primeiro dia o temor por dores musculares não ocorreu. A única preocupação se deu por conta de uma inflamação que me apareceu no pé direito próximo do tornozelo, decorrente, provavelmente, de um ferimento adquirido ainda no período de treinamento e não bem tratado.

Da Ilha da Feitoria a São Lourenço do Sul.

Após uma noite bem dormida, tomamos café, arrumamos nossos caiaques, nos despedimos do nosso cordial anfitrião o Sr Flávio e seguimos rumo a São Lourenço do Sul. No céu enormes bandos de maçaricos pretos voavam em formações cuneiformes com longas fileiras, o tempo permanecia nublado e o vento, embora continuasse contra, tinha diminuído bastante de intensidade, o que nos animou bastante.

O trajeto a ser percorrido neste dia era uma grande reta do começo ao fim, permitindo assim remarmos sempre junto da orla admirando de uma distância confortável as belas praias e matas com vegetação nativa da Ilha da Feitoria e demais regiões.

A Ilha da Feitoria compreende uma vasta região limitada a leste pela Laguna dos Patos, a oeste pela Lagoa Pequena e a norte pelo Arroio Corrientes que consegue se preservar como um santuário ecológico em decorrência de seu difícil acesso por terra e por sua formação geográfica, muito estreita e espremida entre as duas lagoas, ainda não apresentar atrativo econômico para a monocultura do arroz, importante fonte agrícola desta região do estado que muitas vezes não respeita adequadamente a preservação ambiental.

Fizemos a nossa primeira parada deste dia ainda na Ilha da Feitoria, próximo ao Arroio Corrientes, em um belo capão onde se destacava uma figueira centenária que tinha parte de suas raízes submersas, demonstrando assim o gradual avanço da Laguna dos Patos em direção as terras. Este fenômeno também pode ser observado em diversas outras oportunidades ao longo de toda a viagem.

No trecho do Arroio Corrientes até um pouco depois da foz do Arroio Grande a natureza ainda nos brindava com sua exuberante vegetação, porém quanto mais para o norte nos deslocávamos, mais estreita ficava a faixa de mata nativa junto da praia e maior o espaço ocupado pelas lavouras de arroz. Nossa segunda parada para um rápido lanche foi quase no final deste trecho e nele podemos observar belas orquídeas e muitas tainhas saltando próximas de nossos caiaques, demonstrando a riqueza pesqueira da laguna.

E que fartura de peixe! Bagre, tainha, cabeçudo, cará, traíra, jundiá, linguado, pescadinha, corvina, miraguaia, cação, peixe-rei, enchova e, de lambuja, camarão a dar com um pau. (LESSA, 1985, p.116)

O deslocamento até alguns quilômetros antes de São Lourenço do Sul ocorria de forma tranqüila, quando então o vento mudou de direção, vindo agora por trás de través, fazendo com que eu tivesse de remar quase que exclusivamente com o braço direito e tendo uma enorme dificuldade para me manter em linha reta. Foi aí que percebi o quanto a falta de um leme ou uma quilha fazia numa grande travessia, mas como o meu caiaque não tinha nenhum dos dois o jeito foi ir em frente tendo que fazer um esforço muito maior e tendo um rendimento muito menor. Em razão disto tive que parar mais uma vez atrasando um pouco a chegada.

Assim, após este incidente, chegamos ao Iate Clube de São Lourenço do Sul por volta das treze horas e trinta minutos, onde nossos apoiadores, Coronel Sérgio Pastl, seus dois netos Pedro Sérgio Londero Pastl e Brian Pastl Wechenfelder e a Srta Rosângela nos aguardavam com um delicioso churrasco.

Bem alimentado, fui então me banhar, ligar para dar noticias a minha esposa e filha e descansar um pouco no acampamento montado pelo nosso sempre atencioso e impecável apoiador Coronel Pastl. Pelo fim da tarde também tive o prazer de conhecer o Sr. Pedro Auso Cardoso da Rosa e sua esposa Sra. Vera Regina Sant’anna Py que em muito nos ajudariam nos trechos seguintes desta viagem.

São Lourenço do Sul além de apresentar recantos de rara beleza, formados por coqueiros e figueiras centenárias, também foi palco da Revolução Farroupilha.

Garibaldi usava os juncos e os baixios da costa da Laguna dos Patos para disfarçar seus barcos e, assim, atacar de surpresa os navios mercantes fiéis ao Império e também as naus de guerra do almirante Grenfell, contratado para defendê-los. Muitas vezes adentrava o arroio São Lourenço, fugindo dos imperiais, cujos navios não podiam navegar nas águas rasas, e ali passava a noite. A presença de Garibaldi nesta área estratégica, navegando entre os braços dos rios Camaquã e São Lourenço, rente à margem, levou os defensores do Império a tentar capturá-lo por terra, mas nunca conseguiram. (Folder Caminho Farroupilha, 2008.

Referências Bibliográficas

KNIPPLING, Geraldo Werner. O Guaíba e a Lagoa dos Patos. Porto Alegre: Edição do Autor, 1993.

LESSA, Luís Carlos Barbosa. Rio Grande do Sul: Prazer em Conhecê-lo. Rio de Janeiro: Globo, 1985.

MOURA, Amanda: BAIRROS, Jacqueline Valle: SPERLIG, Urania Pereira. Estudo Sobre a Viabilidade Turística na Ilha da Feitoria a Partir de Entrevistas Realizadas com Ex-moradores. 2007. UFPEL, Pelotas.

PY, Vera Regina Sant’Anna. O Rio Camaquã e a Canoa. Distratos e Retratos. Porto Alegre: Odisséia, 2009.

ROSA, Estefânia Jaékel. “Ilha da Feitoria” – a Arqueologia Histórica Desvendará seus Mitos? 2008. LEPAARQ/UFPEL, Pelotas.

FOLDER CAMINHO FARROUPILHA. Turismo na Costa Doce/SEBRAE/ SETUR RS, Porto Alegre, 2008.

REVISTA DA COSTA DOCE. Porto Alegre, ano 3, n. 9, jan. 2010.

Blog e Livro

Os artigos relativos ao “Projeto–Aventura Desafiando o Rio–Mar”, Descendo o Solimões (2008/2009), Descendo o Rio Negro (2009/2010), Descendo o Amazonas I (2010/2011), e das “Travessias da Laguna dos Patos (2011), estão reproduzidos, na íntegra, ricamente ilustrados, no Blog http://desafiandooriomar.blogspot.com.

O livro “Desafiando o Rio–Mar – Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS, na rede da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura.com.br) e na Livraria Dinamic – Colégio Militar de Porto Alegre. Pode ainda ser adquirido através do e–mail: hiramrsilva@gmail.com.

Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link:
http://books.google.com.br/books?id=6UV4DpCy_VYC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false.

Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA); Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS); Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar (IDMM); Vice Presidente da Academia de História Militar Terrestre do Brasil - RS (AHIMTB); Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS)

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.

Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br

Blog: http://desafiandooriomar.blogspot.com

E–mail: hiramrs@terra.com.br

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