quarta-feira, 19 de setembro de 2012
DIVISÃO
Por Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta)
Você
poderá ficar com a poltrona, se quiser. Mande forrar de novo, ajeitar as molas.
É claro que sentirei falta. Não dela, mas das tardes em que aqui fiquei
sentado, olhando as arvores. Estas sim, eu levaria de bom grado : as árvores, a
vista do morro, até a algazarra das crianças lá embaixo, na praça. 0 resto dos
moveis — são tão poucos! — podemos dividir de acordo com nossas futuras
necessidades.
A
vitrola esta, tão velha que o melhor é deixá-la ai mesmo, entregue aos cuidados
ou ao desespero do futuro inquilino. Tanto você quanto eu haveremos de ter,
mais cedo ou mais tarde, as nossas respectivas vitrolas, mais modernas, dotadas
de todos os requisitos técnicos e mais aquilo que faltou ao nosso amor:
alta-fidelidade.
Quanto
aos discos, obedecerão às nossas preferências. Você fica com as valsas, as
canções francesas, um ou outro "chopinzinho", o Mozart e Bing Crosby.
Deixe para mim o canto pungente do negro Armstrong, os sambas antigos e estes
chorinhos. Aqueles que compartilhavam do nosso gosto comum serão quebrados e
jogados no lixo. É justo e honesto.
Os
livros são todos seus, salvo um ou outro com dedicatória. Não, não estou
querendo ser magnânimo. Pelo contrario: Ainda desta vez penso em mim. Será um
prazer voltar a juntá-los, um por um, em tardes de folga, visitando livrarias.
Aos poucos irei refazendo toda esta biblioteca, então com um caráter mais
pessoal. Fique com os livros todos, portanto. E consequentemente com a estante
também.
Os
quadros também são seus, e mais esses vasinhos de plantas. Levarei comigo o
cinzeirinho verde. Ele já era meu muito antes de nos conhecermos. Também os
dois chinesinhos de marfim e esta espátula. Veja só o que está escrito nela:
12-1-48. Fique com toda essa quinquilharia acidentalmente juntada. Sempre
detestei bibelôs e, mais do que eles, a chamada arte popular, principalmente
quando ela se resume nesses bonequinhos de barro. Com exceção, o de pote de
melado e moringa de água, nada que foi feito com barro presta. Nem o homem.
Rasgaremos
todas as fotografias, todas as cartas, todas as lembranças passíveis de serem
destruídas. Programas de teatros, álbuns de viagens, souvenirs. Que não
reste nada daquilo que nos é absolutamente pessoal e que não possa ser entre
nos dividido.
Fique
com a poltrona, seus discos, todos os livros, os quadros, esta jarra. Eu
ficarei com estes objetos, um ou outro móvel. Tudo está razoavelmente dividido.
Leve a sua tristeza, eu guardarei a minha.
Sérgio
Porto (Stanislaw Ponte Preta) — A casa demolida — Editora do Autor, Rio de
Janeiro, 1968, pág. 201. (Releituras)
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Sérgio Porto
(Stanislaw Ponte Preta), Filho de Américo Pereira da Silva Porto e
de D. Dulce Julieta Rangel Porto, Sérgio
Marcos Rangel Porto,
um cidadão acima de qualquer desfeita, nasceu no Rio de Janeiro em pleno verão,
no dia 11 de janeiro de 1923, e ficou famoso anos depois sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta,
emprestado à Oswald de
Andrade (vide Memórias
de Serafim Ponte Grande). Foi casado com Dirce Pimentel de
Araújo, com quem teve três filhas: Gisela, Ângela e Solange.
Traçou,
em 12 palavras, o retrato de uma época , os tais anos dourados nada
permissivos, quando o preconceito prevalecia, principalmente em matéria de
sexo:
"Se peito de moça fosse buzina,
ninguém dormia nos arredores daquela praça". Antes da liberação
sexual, as praças e outros cantinhos escuros eram, então, um buzinaço.
Ao
contrário do que parecia ser um cara folgado, brincalhão, gozador e pouco
chegado ao labor, Sérgio
Porto, por suas inúmeras atribuições, era um lutador. Nos
últimos anos de vida tinha uma jornada nunca inferior a 15 horas de trabalho
por dia. “Só estou
levantando o olho da máquina de escrever pra botar colírio. Hoje fui gravar na televisão e antes
foi aquela batalha contra as teclas. Estou trabalhando demais, outra vez. Só
para esta semana: seis Stanislaws, um Fatos & Fotos, um final apoteótico
para o novo programa do Chico Anísio, roteiro e script para aquela bosta
chamada Espetáculos Tonelux, depois quadros humorísticos para a TV Rio, Miss
Campeonato, Da Boca pra Fora, o programa de rádio Atrações A-9, além da revisão
do livro O Homem ao Lado que será reeditado no próximo mês e da gravação do
programa Qual é o assunto?" Para alguém que teve seu
primeiro infarto ao 36 anos, era demais.
"Tunica, eu tô apagando".
Essas foram as últimas palavras ditas pelo autor ao sofrer seu derradeiro
infarto, no dia 29 de setembro de 1968.
Leandro Bierhals (HALS) Bezerra, publicitário,
formado pela PUC-RS, é cartunista, chargista, ilustrador e designer gráfico.
Coordena o Núcleo de Editoração Eletrônica do Instituto de Letras da Ufrgs e é
o atual (2005) presidente da Grafar (Grafistas Associados do Rio Grande do
Sul). Colaborou com o jornal O Pasquim21 e publica atualmente no jornal O Sul,
de Porto Alegre.
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