A Arte de Ser Feliz
(Cecília Meireles)
Houve um tempo em que minha janela se
abria sobre uma cidade que parecia
ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno
jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de
água sobre as plantas. Não era uma rega:
era uma espécie de aspersão ritual, para que o
jardim não morresse. E eu olhava para as plantas,
para o homem, para as gotas de água que caíam
de seus dedos magros e meu coração ficava
completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro
em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos,
sonhando com pardais.
Borboletas brancas,
duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem
personagens de Lope de Vega.
Às vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu
destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas
felicidades certas, que estão diante de cada janela,
uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas,
e outros, finalmente, que é preciso aprender
a olhar, para poder vê-las assim.
CECÍLIA BENEVIDES DE CARVALHO MEIRELLES
Nascimento: 07/11/1901, Tijuca, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Filiação: Carlos Alberto de Carvalho Meireles e Matilda Benevides
Casamento: Fernando Correia Dias (1922 a 1935, viúva): filhas Maria Elvira, Maria Mathilde e Maria Fernanda; Heitor Vinícius da Silveira Grilo (1940)
Falecimento: 09/11/1964, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Causa: Câncer
Professora (1917), poeta (tida como uma das maiores da língua portuguesa), jornalista e escritora; estréia literária: "Espectros" (1919, poemas neoparnasianos); flerta com a revolução estética do movimento modernista (1922); luta pela renovação do sistema educacional (1925), principalmente através de sua página no "Diário de Notícias" (1930 a 1933); inaugura a primeira biblioteca infantil especializada do país
(1934, Rio de Janeiro); divulga a cultura brasileiro nos Estados Unidos e Europa
(início dos anos 1930); Prêmio Poesia Olavo Bilac da ABL (Academia Brasileira
de Letras) por "Viagem" (1939); sucesso com obras como "Baladas para El Rei"
(1924), "Mar Absoluto" (1945), "Romanceiro da Inconfidência" (1953).
"Mas creio que todos padecem , se são poetas. Porque, afinal,
se sente que o grito é o grito e a poseia já é o grito
(com toda a sua força), mas transfigurado."
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