terça-feira, 19 de abril de 2011

A CUIA- ESCRITA POR MALBA TAHAM

DIRCEU AYRES

Certa vez eu estava a ler uma revista da ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS e me deparei com um artigo muito interessante de Malba Taham sobre seu passeio no Cais de “VER O PESO” na Cidade de Belém do Pará, onde descreve com muita habilidade seu encontro com um vendedor de cuias ou Cuietés como também é chamada naquela Cidade, achei belíssima sua dissertação. Aí vai:

MALBA TAHAM, membro da Academia Carioca de Letras, na revista-ACADEMIA, Nº. 80 conta um caso muito interessante Denominado “A CUIA” e a certa altura do trecho na página Nº. 39 o diz:

“Ao deixar, certa tarde, o assombroso Museu Goeldi, fui informado, por um turista, meu amigo, professor em Porto Alegre, de que um caboclo, em uma barraca perto do Cais em Ver o Peso, vendia Cuias pretas de Santarém com desenhos e figuras bem curiosa. Uma delas, uma das tais Cuias, segundo o meu informante, trazia no fundo, em letras retorcidas, feitas com capricho a palavra ÇAUDADE, escrita assim mesmo, com “c” cedilha. Mostrou-me o colega Gaúcho um exemplar da tal Cuia que ostentava a cincada com alto destaque caligráfico”. “Ora, a saudade, a velha saudade que a erudita filóloga Alemã D. Carolina Michaelis, estudou no tempo e no espaço parecia-me assim, de improviso numa cuia preta de Santarém, com “c” cedilha.” “Saudade com “c” cedilha e cedilha retorcida, era o cúmulo?” “Sim, havia, em Belém, um vendedor de cuias que oferecia a seus fregueses uma nova çaudade com o “c” bem encedilhado”. “Senti-me no dever de adquirir a cuia Paraense da çaudade e levá-la para o Rio de Janeiro. Seria realmente interessante que os preclaros Filólogos e intransigentes gramáticos Cariocas vissem como se escrevia Saudade, lá bem no Norte, sob o céu do Pará”. Fui em busca da barraca do caboclo vendedor de cuias, lá no VER O PÊSO. Encontrei-o facilmente em sua pequena barraca um pouco além do mercado do Peixe. Era um homem de meia idade, baixo, moreno, troncudo, cabelos lisos e fisionomia simpática. Os seus trajes eram modestos mais revelavam certo asseio. Mostrei-me interessado pelas cuias. O homem exaltou a sua bela e variada mercadoria. Tudo fino, excelente. Cuietés pretas de Santarém, cuia para banho, cuias para tacacá, cuité para presente, cuias-pitingas finíssimas. Exibiu dezenas de cuias, algumas até com figuras de Santos no fundo. Não quero nada disso expliquei-me. Nada disso. Quero aquela cuieté de Santarém que traz a palavra Saudade com letras, em cores, bem desenhada. Aquela já acabou seu dotô, confessou o caboclo um pouco constrangido, já acabou tudo, sim sinhô. Era um dever, como professor, esclarecer aquela alma ignara do bom Paraense. E assim naquele momento, revesti-me de um ar bastante doutoral e resolvi derramar duas cuias de sabedoria lingüística na alma ingênua do bom vendedor de cuias. E disse-lhe repisando bem as palavras: Uma vez “que o amigo já vendeu tudo, quero informá-lo do seguinte”: “A palavra—Saudade-- não se escreve com “c” cedilha”. Escreve-se com “S”. Sim, com “S”. A letra que aparece em Santo, Senhora, Sabiá e Sabão. Entendeu? Com “c” cedilha é errada. Muito errado. “O caboclo olhou pra mim com ar brejeiro e, sem ocultar o sorriso matreiro que seu rosto equacionava, respondeu-me”: Se eu escrever certo, seu dotô, ninguém compra, não! Ninguém compra !. “Só então percebi que o caboclo, muito sabido errava de propósito”. Errava para atrair a freguesia, para iludir a boa fé gramatical dos incautos ludibriava aqueles que pretendiam zombar de sua total insciência, de sua inaptidão. O erro não passava de pura motivação comercial. Abracei-o cordialmente. Agradeci a franqueza e a lealdade com que ele revelara o segredo do seu êxito comercial. E disse-lhe: Fique certo meu amigo, de que saudade com “s” ou com “c” cedilha, é sempre saudade. Partirei, amanhã, para o Rio, e levarei muitas saudades desta simpática e tão querida cidade de SANTA MARIA DE BELÉM DO GRÃO PARÁ. O caboclo das cuias olhou para mim. Vislumbrei em seus olhos certo traço de indivisível surpresa. Ignorava certamente, que a sua querida cidade natal, a estimável Belém do Pará, tivesse aquele nome pomposo, magnificente e nobre. Parti. “Avistei-o de longe, ainda acenava para mim num adeus que ia muito além de VER O PESO”. Pensando estar dando aula ao caboclo, na verdade quem recebeu uma boa aula de sapiência de um comerciante matuto, ladino e brejeiro foi o próprio Malba Taham. Acontece sempre que uma pessoa pensa ser mais inteligente, sábia, ou mais instruída que as outras pessoas e às vezes nem é tanto assim.

Do Blog do Kadosh Ayres.

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