Há quase duas semanas, o mundo inteiro
ficou chocado com o banho de sangue promovido na escola primária Sandy Hook, na
pequena cidade de Newtown, Connecticut. O saldo total de mortos foi de 28
pessoas: vinte crianças com idades entre 6 e 7 anos, seis funcionários da
escola, o atirador – Adam Lanza, 20, que cometeu suicídio quando a polícia
chegou ao local – e sua mãe, a primeira das vítimas. Desportistas homenagearam
as vítimas, diversos memoriais foram erigidos ao redor do país, um sem-número
de faixas de solidariedade enfeitou as varandas e fachadas das residências da
pequena cidade e o presidente dos Estados Unidos em pessoa, Barack Obama,
esteve em Newtown para prestar suas condolências a todos que foram diretamente
atingidos por esse horror.
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Um dos memoriais feitos em memória das vítimas de Sandy Hook |
Como sói acontecer
nesses momentos de tristeza e choque, diversas vozes oportunistas levantaram-se
em meio ao generalizado sentimento de luto para apontar os culpados por essa
tragédia e exigir que fossem punidos. E que culpados seriam esses? A pretensa
cultura belicista norte-americana e a suposta facilidade em adquirir armas de
fogo foram as campeãs dentre os elencados. É algo surpreendente como pululam
“especialistas” em noticiários televisivos, jornais impressos, portais de
notícias e outros veículos de comunicação, e é igualmente surpreendente a quase
unanimidade entre eles. Isso quando não aderem a isso aqueles velhos e gastos
chavões da “turma do bem” – apensar os termos “conservador”, “provinciano”,
“supremacista” e “retrógado” ao americano médio que representa, no fim das
contas, a tal cultura belicista vigente nos Estados Unidos. A solução para tudo
isso, de acordo com os “especialistas”, é simples: desarmar a população civil,
controlar vigorosamente a concessão do porte e a venda de armas, adotar
políticas que se pautem pelo multiculturalismo – tudo, claro, a expensas da
população via Estado.
Todavia, não
é a facilidade em se adquirir armas de fogo em território norte-americano,
muito menos a fantasiosa cultura belicista daquela nação, que são responsáveis
por atrocidades como a de Newtown. Adam Lanza não é produto de uma tal cultura.
Adam Lanza é um fenômeno global cujos fundamentos são bastante distintos dos
escolhidos pelos “especialistas” de última hora: o divórcio entre direitos e
deveres; a supressão da responsabilidade em nome de uma liberdade sem amarras;
a ideia de que o homem é um ser histórica e socialmente construído, fruto das
vicissitudes do momento, uma tabula rasa que pode ser moldada ao discricionário
bel-prazer dos “iluminados”; a desumanização do homem, cujo valor é mensurado
não pelo que é e faz, mas de acordo com o grupo, real ou fictício, que integra.
Tudo isso, e outras coisas mais, concorrem para a formação de um homem egoísta,
corroído por um hedonismo niilista e autodestrutivo, um homem mutilado e
patologicamente vulnerável a todo tipo de insanidades e loucuras; um homem, ao
fim e ao cabo, que se esqueceu de Deus.
Quem afirma
isso não sou eu, mas alguém que sofreu na própria carne os horrores da erosão
humana provocada pelo ateísmo mais fanático e raivoso: Aleksandr Solzhenitsyn.
Laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1970, Solzhenitsyn mergulhou
profundamente nos alicerces do totalitarismo socialista – do qual foi
prisioneiro entre 1945 e 1956 – e, após décadas, afirmou:
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Alexander Solzhenitsyn |
Mais de meio século atrás, quando eu ainda era uma criança, lembro-me de
ter escutado um grupo de pessoas mais velhas darem a seguinte explicação para
os grandes desastres que se abateram sobre a Rússia: “Os homens se esqueceram
de Deus; eis porque tudo isso aconteceu.”
Desde então, passei cerca de cinquenta anos trabalhando na história de
nossa Revolução; nesse processo, li centenas de livros, coletei centenas de
testemunhos pessoais, e contribui com oito tomos de minha própria autoria para
com o esforço de limpar os destroços deixados por aquela revolta. Mas se me
pedissem hoje para formular concisamente qual foi a principal causa da ruinosa
Revolução que engoliu quase sessenta milhões de russos, eu não poderia fazê-lo
de modo mais preciso do que repetir: “Os homens se esqueceram de Deus; eis
porque tudo isso aconteceu.”
E mais: os eventos da Revolução Russa só podem ser compreendidos agora,
no fim do século, contra o pano de fundo do que tem ocorrido desde então no
resto do mundo. O que ocorre aqui é um processo de importância universal. E se
fosse requisitado a identificar brevemente a principal característica de todo o
século XX, eu seria incapaz de encontrar algo mais preciso e essencial do que
repetir: “Os homens se esqueceram de Deus.”
O mundo
jamais viu um esforço tão colossal em expulsar Deus de todas as esferas da vida
humana do que o presenciado no século XX. A perseguição religiosa – não de
qualquer religião, mas especialmente do Cristianismo – alcançou níveis
inimagináveis. As maiores e mais mortíferas doutrinas políticas e sociais da
nossa era – socialismo, nazismo, fascismo, comunismo – foram erguidas sobre
sólidos alicerces antirreligiosos. Só que, hoje, a perseguição anticristã não é
um privilégio exclusivo de regimes totalitários como os de outrora: ela é um
dogma difuso que, como um vírus, tem se espalhado lentamente pelo Ocidente,
conquistando mentes e corações incautos com discursos aparentemente libertários
e progressistas. Adam Lanza é um filho legítimo desse cancro sociocultural.
Dois dias
depois do massacre de Sandy Hook, Mike Huckabee, ex-governador do Arkansas pelo
Partido Republicano e apresentador do canal Fox News, fez uma reflexão
absolutamente fantástica sobre como o afastamento sistemático e deliberado de
Deus da vida das pessoas, algo transformado inclusive em política de governo
nos Estados Unidos, foi responsável pelo derramamento de sangue em Newtown:
Há decerto aquelas pessoas que advogam
que Deus deve se manter somente na esfera privada da vida humana e que qualquer
manifestação pública, sobretudo em assuntos políticos, deve ser veementemente
rechaçada. Esse é o caminho mais curto para a barbárie. Não precisamos apontar
casos específicos e pontuais para corroborar esse argumento: basta vermos que,
em um país como o Brasil – que não se encontra oficialmente em guerra contra
nenhuma nação, nem passa oficialmente por qualquer guerra civil –, mais de 1
milhão de pessoas foram assassinadas em 30 anos; isso equivale a mais de cem
pessoas por dia, um número que é muito superior à maior parte dos conflitos
armados do mesmo período. E, aqui mesmo, à margem do mundo civilizado, vemos
esforços coordenados e diuturnos para empurrar Deus e os cristãos de volta para
o tempo das catacumbas. A única forma de não cairmos no abismo do terror mais
abjeto e puro é mantermos posição e mostrarmos que uma sociedade minimamente
digna é aquela em que a adoração a Deus é um dos fundamentos do homem. E a
própria história o mostra.
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Soldados alemães do 134º Regimento Saxão e soldados ingleses do Regimento Real Warwickshire durante o Natal de 1914 |
Em 1914, eclodiu um dos conflitos
armados mais sangrentos e desumanos da história: a Primeira Guerra Mundial.
Solzhenitsyn, quando falou a respeito dela, disse que “a única explicação
possível para essa guerra é um eclipse mental dos líderes da Europa causado por
terem ignorado a existência de um Poder Supremo sobre eles”. Nunca, até então,
o esplendor tecnológico humano foi posto a serviço da carnificina. Entretanto,
mesmo em meio a trincheiras cheias de homens sujos e cansados, embotados de dor
e medo, Deus se fez presente naquele ano de uma maneira surpreendente. Ao longo
do front ocidental, em que lutavam forças alemãs e inglesas, mais de cem mil
soldados depuseram suas armas durante o Natal, saíram de suas trincheiras,
cruzaram campos devastados e sem vida, e uniram-se a seus inimigos para
comemorar o nascimento de Cristo Jesus. Inimigos que tentaram obstinadamente se
matar em dias anteriores passaram a dividir mais do que o esforço para eliminar
o outro lado: dividiram refeições, funerais, canções natalinas, e, em alguns
casos, até mesmo presentes.
Ontem, nós
cristãos comemoramos o Natal. Temos presenciado que, hoje em dia, nem mesmo a
festa mais importante de toda a civilização ocidental passa incólume ao
aviltante materialismo que tem destruído as bases da vida humana. No entanto, o
verdadeiro espírito do Natal – o nascimento de Jesus Cristo, o Verbo Divino que
se fez carne e habitou entre nós (João 1, 14) – nunca poderá ser arrancado dos
corações daqueles que se mantêm fiéis. Mas não basta manter a chama divina
acesa em nossos corações. Nós, cristãos, devemos lutar e perseverar até o fim
para que Deus não seja expurgado da vida social e pública de nossa nação;
devemos, com nossas palavras e ações, levar Cristo a todos, injetando-o na
corrente sanguínea da sociedade, e jamais esmorecer diante da intolerância, da
perseguição, nem mesmo da morte. Afinal, o discípulo não é maior do que o
Mestre (Mateus 10, 24).
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