Por Luiz Antonio Domingues
Há muito tempo atrás, o processo de surgimento de
novos artistas no panorama cultural, tinha um curso natural. Iniciava-se
geralmente entre a infância e adolescência, quando a garotada começava a se
interessar por arte de uma maneira em geral e no campo da música em específico,
admirando artistas consagrados. Tudo é lúdico e mágico nessa fase e o glamour
de seu artista predileto proporcionava o surgimento de uma semente no seu
âmago, que frutificava de tal maneira a ser quase uma epifania messiânica.
Bons tempos esses, onde o celeiro de novos artistas
era sempre forjado pela safra boa e perpetuando-se, uma nova geração surgia
sempre amparada e inspirada pela qualidade em relação aos artistas consagrados,
em detrimento à uma outra concepção, onde artistas de plástico são criados como
peças meramente descartáveis por produtores embotados, obcecados por dinheiro e
nada mais. O sonho de ser artista, acompanhou um grupo de adolescentes do
bairro da Freguesia do Ó, tradicional bairro da zona norte de São Paulo, nos
idos de 1981.
Ainda adeptos da velha fórmula, queriam tocar, compor
e cantar como seus ídolos da música e nessa predisposição positiva,
esmeravam-se em estudos & ensaios. Sob o nome de "Leito de
Pedra", esses rapazes imberbes começaram a sua luta com galhardia, garra e
cabeças focadas no sonho. Em sua primeira formação, seus componentes eram :
João Carlos Ferraresso (guitarra e voz); Izal de Oliveira (baixo); Mario Moreno
(guitarra); Marco Massarelli (bateria) e João Gilberto Bacchetti (voz).
O começo heroico dessa trajetória adolescente foi o
comum de tantas outras bandas, ou seja, festivais colegiais; festas, feiras e
eventos públicos no bairro e adjacências. A primeira apresentação que guardam
com orgulho na memória, foi na sede social da Igreja do Largo Nossa Senhora do
Ó, a principal do bairro, onde tocaram um repertório básico de Beatles e
sucessos do Rock brasileiro oitentista em voga, de artistas como Ira e Lulu
Santos, por exemplo. Um pouco além, uma mudança de formação, trouxe Milton
Moreno substituindo Marco Massarelli na bateria; o vocalista João Gilberto
Bacchetti deixa a banda e o irmão de João Carlos Ferraresso, Nelson Ferraresso,
entra na banda, como tecladista e backing vocal. Surgem as primeiras
composições, onde a influência maior era o Rock dos anos setenta, em vertentes
como o Progressivo e o Hard-Rock.
Bandas internacionais como Yes; Pink Floyd; Focus;
Led Zeppelin; Grand Funk Railroad; Rolling Stones e Deep Purple, entre outras,
faziam a cabeça dos meninos, mas havia também a generosa parcela de influência
do Rock brasileiro e da MPB, com artistas como 14-Bis; O Terço; Milton
Nascimento e Lô Borges, frequentando a vitrola deles, o tempo todo. Em 1984,
mais maduros e compondo e tocando bem, mudam o nome da banda para "Sigma",
que perdurou assim até o final das suas atividades, no início dos anos noventa.
Antenados, frequentavam o circuito de shows de São Paulo, sempre procurando a
adequação ao mercado e buscando interação com a cena musical da época.
Frequentavam os teatros alternativos (Lira Paulistana, o Teatro Mambembe, os
teatros de bairro da prefeitura etc.), o Centro Cultural São Paulo, danceterias
que promoviam shows de rock aos borbotões etc. Mas com o fim das atividades da
banda, muitas músicas ficaram engavetadas por anos, pois o "Sigma"
houvera sido um celeiro de músicos e compositores de talento, mas que
dispersaram pelo mundo, tocando em outros projetos, atuando como side-man de
artistas consagrados etc.
Foi quando os irmãos Ferraresso, João Carlos e
Nelson, uniram forças e resolveram tirar do ostracismo essas canções esquecidas
e em 2007, gravaram o CD "Cantos da Estrada". A proposta era tocar
esse projeto como uma banda, embora não tivesse sido possível reunir todos os
membros originais. O trabalho criado nos anos oitenta finalmente veio à tona, e
com o acréscimo deles estarem absolutamente maduros, portanto, o fator
experiência adquirida pela vivência na música nesses anos todos de hiato, foi
benéfico para o trabalho.
Com um apuro incrível, gravaram suas canções com um
belíssimo trabalho de arranjos, execução e escolha de timbres primorosa. Claro,
as composições, independentemente dessa roupagem enriquecida, tinham no seu
bojo, muita qualidade. Com todas as influências que acumularam durante toda a
carreira, não poderia ser de outra forma, o trabalho contido no CD "Cantos
da Estrada", é excepcional. A começar pela canção homônima do título do álbum.
"Cantos da Estrada" tem atmosfera progressiva, com teclados em
profusão, muito bem executados, percussão criativa e um vocal que interpreta
bem a bela melodia principal.
"Nave Incandescente" tem ares de balada,
com a inclusão de um interessante Riff de guitarra, com ares Hard-Rock e a voz
lembra de certa forma o estilo de Cazuza, dos anos oitenta. "Mundão",
traz roupagem de Country-Rock, com execução perfeita. "Isso Tudo
Passa" lembra Cazuza novamente, na interpretação de João Carlos Ferraresso
e com uma agradável intervenção dos teclados de Nelson Ferraresso, encerra-se
em grande estilo. "Girassol" tem um irresistível swing de MPB
dançante, de acento soul. Tem muito balanço na linha de baixo e uma percussão
muito bem tocada e colocada. Destaco o piano elétrico de Nelson Ferraresso, com
nítida influência da MPB mineira de Lô Borges.
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Nelson Ferraresso, gravou quase 30 álbuns. Lançou recentemente o CD "Cantos da Estrada" com seu irmão João Carlos Ferraresso. Nelson também intregra a banda de rock'n'roll Kim Kehl e os Kurandeiros, que está finalizando o terceiro CD.
http://www.myspace.com/kimkehloskurandeiros |
Em "Livre da Poeira", o violão bem brasileiro
e muito bem tocado de João Carlos Ferraresso, impressiona. "Livre da
Poeira II", é um Blues rasgado, daqueles que só os bluesman sabem extrair
das entranhas. "Gelo Seco" é um bonito tema instrumental, onde os
irmãos Ferraresso e seus convidados puderam criar uma atmosfera auspiciosa.
"Amor de Verdade" é uma canção de violão, onde João Carlos Ferraresso
usou o recurso da declamação. Foi ousado, pois esse expediente é norteado pela
linha tênue que separa a intensidade declamatória (onde se exige talento de
ator para monólogos, por exemplo), e a pieguice, onde a maioria escorrega no
tobogã da cafonice. João Carlos Ferraresso acertou e incluiu-se no primeiro rol
que citei. Nesse trabalho, além dos irmãos Ferraresso, participaram : Daniel
"Lanchinho" Rodrigues (bateria); Aden Santos (baixo e guitarra);
Marcel Rico (baixo) e Edu Gomes (guitarra).Segundo Nelson Ferraresso (que aliás auxiliou-me
com informações valiosas para que eu pudesse elaborar a matéria), há planos de
dar seguimento ao trabalho e naturalmente um novo CD deve sair. Torço muito por
isso !! Falando da minha relação com essa rapaziada, tive um contato inusitado
com eles, inicialmente em 1986. Através de uma namorada que eu tinha nessa
ocasião, fui assistir um ensaio do "Sigma", pois eles eram conhecidos
dela do bairro da Freguesia do Ó, onde morava.
Mas perdi o contato e só no início dos anos
noventa, fui estabelecer amizade com o baixista Izal de Oliveira, quando ele
solidificou-se como um ótimo baixista na banda "Caça Níqueis", com
bom trabalho na área do Blues-Rock, tendo lançado vários CD's, fazendo muitos
shows etc. E no ano de 2011, quando me tornei integrante da banda de Kim Kehl
& Os Kurandeiros, retomei o contato com Nelson Ferraresso, que é tecladista
da banda. Foi o meu amigo Kim Kehl, que me mostrou o trabalho
"Cantos da Estrada", do qual me encantei.
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Kim Kehl atua como guitarrista profissional desde o final dos anos 1970 |
Kim Kehl, sabedor do fato que escrevo matérias em
Blogs, deu-me a ideia de falar sobre esse trabalho e diante desse incentivo,
ponderei sobre dois aspectos : 1) É inacreditável que um trabalho dessa
qualidade artística esteja despercebido perante mídia e grande público e ; 2)
Eu escrevo normalmente sobre diversos assuntos e dificilmente falo sobre
música, o que chega a ser insólito se considerarmos que talvez fosse o tema que
mais esperariam que eu abordasse em minhas matérias. Portanto, acho que se for
para falar de música, esse nicho me interessa muito, que é o de enfocar
artistas de extrema qualidade, mas com pouca ou nenhuma visibilidade na mídia.
Sendo assim, aguardem mais matérias com esse teor, doravante, pois se por um
lado vemos um panorama tétrico na música mainstream, por outro, existe uma gama
de artistas de muita qualidade, sem chance alguma de mostrarem seus talentos,
diante da massacrante opressão que forças ocultas exercem para dominar a
difusão cultural de baixo nível, no Brasil. Não vou ficar fazendo discurso
inflamado ou cutucando máfias, mas usar meu humilde Blog para dar minha
contribuição no sentido oposto, ou seja, mostrando artistas de verdade, com
qualidade, coração e alma. E os irmãos Ferraresso representam exatamente isso.
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