terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A INTENSIDADE DE CACILDA BECKER

Por Luiz Antonio Domingues

O Teatro paulista sempre revelou talentos que alcançaram o reconhecimento nacional.
Sejam atores, autores, diretores ou técnicos, já observamos diversas vezes esse fenômeno de combustão natural, capaz de manter a chama da dramaturgia sempre acesa na terra dos bandeirantes.
E um exemplo dessa tradição reveladora de talentos natos, ocorreu na simpática cidade de Pirassununga, no norte do estado de São Paulo, quando em 6 de abril de 1921, nasceu uma menina chamada Cacilda Becker Yáconis, filha de imigrantes italianos, colônia de presença marcante por todo o interior paulista.
Num turbilhão familiar atípico para aquela época, os pais de Cacilda e de suas duas irmãs (uma delas, Cleyde Yáconis, que também tornar-se-ia uma importante e renomada atriz no futuro), separaram-se, motivando a mudança da família para a cidade de Santos.
Dessa forma, as irmãs Becker Yáconis cresceram e estudaram em Santos, onde Cacilda conheceu nos círculos boêmios intelectuais daquela cidade praiana, a dramaturgia que lhe encantou.
Estudando teatro, logo inseriu-se em montagens amadoras e chamou a atenção pela expressiva capacidade interpretativa, onde desde cedo mostrava uma entrega fora do comum aos personagens, despertando a atenção de produtores teatrais litorâneos e rapidamente fazendo os boatos subirem a serra, em direção à capital paulista.
Sua primeira grande oportunidade ocorreu logo nos primeiros momentos do histórico TBC, em São Paulo. 
Com a recusa da atriz Nydia Lícia em protagonizar o espetáculo "A Mulher do Próximo", de Abílio Pereira de Almeida, Cacilda assumiu, iniciando aí uma trajetória fulminante de sucesso, de forma irreversível.
Sucederam-se diversas montagens, com Cacilda emprestando sua interpretação à diversos personagens clássicos da dramaturgia nacional e internacional.
Num momento de extremo brilho, Cacilda atua em "Pega Fogo", texto do francês Jules Renard. 
Interpretando um menino, Cacilda encanta público e crítica de tal forma que numa viagem à França, impressiona o crítico Michel Simon, que diz textualmente, que nenhum outro ator conseguiria interpretar o menino daquela forma, tornando o semblante de Cacilda, a marca registrada e insubstituível do personagem.
E particularmente, mesmo não vendo essa atuação de Cacilda, obviamente por nem ter nascido nessa época, posso imaginar que tenha superado seus pares de outras montagens e até o ator Robert Lynen, que o interpretou na versão clássica do cinema, de 1932 (o título original em francês é: "Poil de Carotte"), sob direção de Julien Duvivier (que aliás, recomendo, pois considero um ótimo filme).
E por falar em cinema, é realmente digno de nota, que Cacilda não foi aproveitada como deveria ter sido, com todo o talento que tinha. A rigor, ela só fez um filme, uma bela produção da Cia. Cinematográfica Vera Cruz, denominado "Floradas na Serra", lançado em 1954.
Tratando-se de uma estória ambientada em Campos do Jordão, no interior paulista e lidando com um drama, envolvendo pessoas que estavam convalescentes, acometidas de tuberculose.
Fora esse filme, ela teve uma segunda atuação, mas que passou meio obscurecida, no filme "Luz dos Meus Olhos", de 1947.
E assim foi construindo sua carreira, interpretando o texto de autores do calibre de Luigi Pirandello, Sófocles, Gil Vicente, Nelson Rodrigues, Eugene O'Neil, Dürrenmatt, Tennessee Williams, Samuel Beckett etc.
Em outra atuação marcante, interpreta a corrosiva Martha, protagonista da impressionante peça "Quem tem medo de Virginia Woolf ?"
Segundo a própria Cacilda, tornou-se comum nessa montagem, as pessoas se aproximarem do palco ao final de cada sessão do espetáculo para insultá-la, chamando-lhe de bêbada, louca, devassa e outros adjetivos, tamanha a emoção negativa que Cacilda conseguia exprimir na interpretação da personagem.
É muito famosa a crítica escrita por Décio de Almeida Prado sobre essa atuação : "A prolongada sessão de terapia pela bebida, pela flagelação e autoflagelação que é “Quem Tem Medo de Virgínia Woolf”? deu-lhe ensejo para uma de suas maiores criações. À medida que a sua voz e a sua dicção se tornavam pastosas, que as insinuações sexuais, deliberadamente vulgares, se explicitavam, aumentava a alucinante fusão estabelecida entre intérprete e personagem".
Nos anos sessenta, quando a ditadura instaurou-se no Brasil, Cacilda foi uma das mais atuantes vozes no meio artístico a protestar e denunciar as arbitrariedades cometidas pelos abusos.
Por conta disso, é demitida da Rede Bandeirantes de Televisão, claramente vítima de pressões políticas. Na Bandeirantes, protagonizava um interessante teleteatro, com o nome de "Teatro Cacilda Becker", com textos surpreendentes por se tratar de TV, atuando ao lado de atores como Jairo Arco e Flexa, Xandó Batista, Homero Kossac entre outros.
E nessa mesma época (por volta de 1968), o espetáculo "Feira Paulista de Opinião", sofreu 71 cortes da censura, tornando-o impraticável de ser encenado.
Em maio de 1969, Cacilda estava encenando "Esperando Godot", texto clássico de Samuel Beckett, quando sentiu-se mal. Foi um derrame cerebral 
Desesperado, seu marido , o ator Walmor Chagas, a levou para o hospital, ainda trajando as roupas do personagem.
Entrando em coma, não resistiu e veio a falecer em 14 de junho de 1969.
É óbvio que abriu-se uma lacuna gigantesca na dramaturgia paulista e brasileira, com seu desaparecimento.
Cacilda Becker entrou para a história, como uma das maiores atrizes de todos os tempos.
Na ocasião de seu falecimento, o poeta Carlos Drummond de Andrade, expressou suas condolências com um poema dedicado a ela:
"A morte emendou a gramática.
Morreram Cacilda Becker.
Não era uma só. Era tantas.
Professorinha pobre de Pirassununga,
Cleópatra e Antigona
Maria Stuart
Mary Tyrone
Marta de Albee
Margarida Gauthier e Alma Winemiller
Hannah Jelkes a solteira
A velha senhora Clara Zahanassian
Adorável Júlia
Outras muitas, modernas e futuras
irreveladas.
Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo
E um mendigo esperando eternamente Godot.
Era principalmente a voz de martelo sensível
martelando e doendo e descascando
a casca podre da vida
para mostrar o miolo da sombra
a verdade de cada um nos mitos cênicos.
Era uma pessoa e era um teatro.
Morrem mil Cacildas em Cacilda".
Luiz Antonio Domingues (músico das bandas PEDRA,Ciro Pessoa & Nu Descendo a Escada, Kim Kelh e os Kurandeiros) – in Orra Meu!   

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