segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
O CARTEIRO - MÁRIO PRATA
“Quando o carteiro chegou e o meu nome gritou com uma carta na mão, ante
surpresa tão rude, nem sei como pude chegar ao portão. Lendo o envelope bonito
no seu sobrescrito eu reconheci a mesma caligrafia que me disse um dia: estou
farto de ti. Porém, não tive a coragem de abrir a mensagem. Porque, na
incerteza, eu meditava e dizia: será de alegria ou será de tristeza? Quanta
verdade tristonha a mentira risonha que uma carta nos traz. E, assim pensando,
rasguei tua carta e queimei para não sofrer mais”.
A
última gravação da música acima (Cícero Nunes e Aldo Cabral) foi feita
magistralmente pela sempre impecável Ná Ozzetti, em Show. E a canção me veio à
cabeça com força total ao assistir a um curta metragem do Jacques Tati, de
1947, chamado Escola de Carteiros. Tem no DVD Curtindo Jacques Tati. Recomendo
principalmente para quem nunca ouviu falar nele.
Mas
vendo o Mon Oncle entregando cartas e ouvindo a Ná, comecei a pensar no
carteiro. Hoje em dia o carteiro virou um mala. Um mala direto. Fico fora de
São Paulo e quando volto, depois de um mês, tem um metro de correspondência.
Avisos bancários, cobranças, ofertas, convites, convites, convites, mala direta
direto. Carta, nenhuma. Carta que eu digo é aquilo escrito à mão, de alguém
para alguém, contando as novidades, declarando seu amor, ou encerrando uma
aventura. Já não se fazem mais cartas como antigamente. O fax e depois os mails
acabaram com a carta.
Veja
aquela letra: “quando o carteiro chegou e meu nome gritou”. Existia uma relação
entre o carteiro e o destinatário (que palavra!). Você deve ter lido ou
assistido O Carteiro e o Poeta. Aquilo sim, eram um poeta e um carteiro.
O
carteiro fazia parte do nosso imaginário, das nossas esperanças, dos nossos
amores. Escrevia-se cartas. Você pegava aquele papel de carta e sabia que ele
foi manuseado lá longe, noutra cidade, noutro país por aquelas mãos que o
redigiram. E não que digitaram. Era comum algumas cartas chegarem com uma
manchas. Lágrimas que pingavam por emoção ou dor.
E
hoje o carteiro é um mala. Oitenta por cento do que ele trás e jogado
imediatamente no lixo mais próximo. Cada convite que jogo no lixo, sinto pena
do carteiro. Ele caminhou quadras e quadras para me levar aquilo. Mas nada
daquilo me emociona. Não recebo mais do carteiro uma comovente notícia de
morte. Muito menos uma carta de amor.
Mais
malas ainda se tornam os carteiros na época de natal, com aqueles cartões
horrorosos de boas festas e um ano de paz e prosperidade. Desejar isso nos dias
de hoje é uma gozação: no mundo e no Brasil. Deviam escrever: que em 2003 você
segure todas. E o pior é o “junto aos seus”. Eu nunca sei quem são os meus.
Em
época de eleições o carteiro fica insuportável com aqueles santinhos todos de
deputados e vereadores. O mais engraçado é aquilo se chamar santinho e quando
você olha para a cara do remetente (que palavra!), de santo não tem picas.
E,
com a recente morte do Carlito Maia, o carteiro ficou ainda mais dispensável.
Não nos traz mais cartas com flores no aniversário nem nos lançamentos de
livros.
O
carteiro tende a desaparecer totalmente da face da terra dentro de – no máximo
- 10 anos. Tudo chegará pelo computador. Tudo! Até as malas diretas do malas
cheios de indiretas.
Ninguém
mais escreve cartas ao coronel nem ao soldado raso. Ninguém mais tem coragem de
escrever num papel o seu amor eterno (ou não) e assinar em baixo. E deixar duas
gotas paralelas de lágrimas carimbarem a verdade no papel.
O
carteiro está morrendo e com ele muito, mas muito mesmo de um outro mundo. De
um mundo mais romântico, é claro. Onde a gente ficava no portão esperando pelo
personagem, ansioso, apreensivo, tenso. E, depois de abrir a carta, sorrir ou
chorar. É, a emoção não nos chega mais pelas mãos do carteiro e do porteiro.
Como
já dizia o poeta lá de cima, “quanta verdade tristonha a mentira risonha que
uma carta nos traz”. É Neruda, já não se fazem mais carteiros e nem poetas como
na sua época.
PRATA, Mario. “O carteiro”. In: O
Estado de São Paulo, 12 de fevereiro de 2003, p. D10.
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