Por Saulo Mendonça
Não lembro o seu nome, mas me recordo da entrevista de um escritor confessando que havia se apaixonado por uma mocinha simples, que nasceu e se criou num sítio próximo à sua cidade. Ela adorava escrever bilhetes, com frases recheadas de errinhos, indiferentes às carrancudas regras gramaticais, mas cheios de felicidade sincera. Os bilhetinhos faziam-no levitar num ato comum de distrofia espiritual, quando os via ilustrados no papel. Carinho com erros gramaticais jamais esconderia as propriedades da paixão, muito menos camuflaria a legitimidade de seus encantos.
A casa dela se situava na subida de uma ladeira. Paisagem privilegiada. Os gritos estridentes das cigarras cortavam o silêncio num ato decisivo de quem anunciava a noite. Nas frestas das árvores, via-se uma espécie de renda, mas, na verdade, era um painel natural feito de luzes de energia elétrica. Fazia parte do cenário um redemoinho de vaga-lumes piscando em grupos. As pracinhas se deixavam mostrar pelas réstias como um corpo desnudo, despido de tudo. Na calçada, os dois sentados, lado a lado, em duas cadeiras encostadas num cantinho de parede. Dois amores entregavam-se ao vislumbre de se tornarem parceiros dos instantes singelos, com direito a todos os seus rumos à fantasias. Naquele instante, observando que ele estava sonolento pela fadiga de um dia exaustivo, olhou-o e, postando uma voz arrastada, esboçou aos ouvidos de seu escritor enamorado: “Meu filho, durma um pouquinho que eu fico aqui lhe pastorando”.
Certa vez, ouvi outra expressão simples e surpreendente. Uma senhora abordou um feirante, para saber se ele tinha batatas grandes. Imediatamente, o velhinho respondeu que não. “As que eu tenho aqui, dona, não são grandes, são graúdas! Porque grandes só os poderes de Deus. Mais na frente um senhor vendia uma fruta cuja textura se asemelhava à pinha. As duas estavam juntas num banco de feira. Perguntei qual era a mais doce das duas. Quase sem pensar, respondeu-me: “As duas, doutô, as duas têm a mesma doçura!”
E assim vão surgindo as inusitadas expressões, como a da namorada do escritor, igual à do feirante. Outra expressão interesante foi usada pelo frentista de um posto de combustível. Ao se referir à verificação do nível de óleo do meu carro, afirmou que seria melhor que o fizesse no dia seguinte, pela manhã. E explicou: “Melhor verificar pela manhã cedo, é nessa hora que o óleo está em repouso”. Mas foi a pessoa que faz manutenção em fogões a gás que mais me chamou a atenção. Aparentando uns setenta anos de idade, magro, moreno, empunhando uma maleta velha de ferro onde guardava as suas ferramentas, abordou-me do portão:
- Doutô, o fogão do senhor está com alguma boca entupida? A gente faz o serviço. Lembrei-me de que precisava dos seus préstimos e aceitei. Depois do serviço concluído, acionou o acendedor automático do fogão e as seis bocas foram acesas. Caí na besteira de lhe perguntar se havia mesmo ficado bom. Ele, educadamente, olhou para mim e respondeu-me com voz pausada em forma de pergunta: - “Não está vendo, doutô, a expressão das chamas?!” Baixei a cabeça e, nesse momento, observei os seus pés graúdos, quase gigantescos, metidos dentro de um par de sandálias japonesas, parte dentro, parte fora da borracha carcomida pelo tempo.
Não demorei a entender que seu universo era feito de iluminâncias, ilustrando expressões que tanto nos fazem desapercebidos. Se as pessoas fossem sempre assim, sentiríamos com mais frequência a incensação de suas bocas, desentopidas, naturalmente, deixando sair a substância natural de suas palavras. Viríamos escapar somente as chamas inofensivas do espírito emanado de suas fontes lapidadas pelo ego iluminado. Mas, lamentavelmente, o contrário é o que vemos por aí: as expressões fabricadas, os homens confeccionando a descabida linguagem, usando palavras etiquetadas nas suas fabriquetas de sentidos e de comportamentos dos mais estúpidos que a nada iluminam.
Recebido via e-mail da amiga Bete Maciel, com a seguinte observação: "Uma crônica muito interessante do amigo e poeta Saulo Mendonça lá da Paraíba, publicada em jornal local"- Jornal A União - Quarta-feira - 8 de junho de 2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário