Hiram Reis e Silva, Rio Amazonas, RS
“Vê bem, Maria aqui se cruzam: este
é o Rio Negro, aquele é o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
como as saudades com as recordações”.
(José Quintino da Cunha)
Partida para Manaus
Surpreendentemente, a saída de Porto Alegre, pela Gol, saiu dentro do horário previsto, o mesmo não ocorrendo na conexão em Brasília onde o caos havia se instalado e parecia não querer arredar o pé. A todo o momento os passageiros eram orientados a buscar outros portões de embarque e não raras vezes em andares diferentes num desrespeito flagrante ao usuário e uma patente mostra da desorganização que reina no sistema aeroviário brasileiro, país que se propõe a sediar a Copa em 2014.
Manaus
Cheguei à tarde em Manaus com um atraso de quase uma hora e o amigo e Irmão gaúcho 1º Sargento Vaz se encarregou de me conduzir ao 2º Grupamento de Engenharia (2ºGpt) onde fiquei hospedado. O Vaz, gentilmente, convidou-me para tomar um chimarrão em sua residência e saborear, no jantar, uma pizza preparada por sua querida e habilidosa esposa.
Contratempos
No dia seguinte fiz questão de verificar as condições de meu caiaque modelo Cabo Horn, fabricado pela Opium Fiberglass, e fiquei surpreso e preocupado ao constatar, por estes amazônicos imponderáveis, que haviam extraviado os tampões dos compartimentos de proa e de popa, leme, pás do remo de reserva, e outros itens. Os tampões eu podia improvisar com um plástico grosso e extensores, mas o leme tem tamanho, peso e formato muito específicos e faria muita falta ao enfrentar os famosos banzeiros e ventos de través. Tentei, sem sucesso, rastrear o caiaque do mesmo modelo que meu parceiro, o Coronel Teixeira, vendera, há dois anos, em Manaus depois de minha descida pelo Solimões. Contatei o amigo canoísta Marcelo da Luz, o “peixinho”, para ver se ele conhecia alguém, em Manaus, que possuísse um modelo semelhante e ele me informou que havia comprado um e se prontificou a levar os tampões e leme até o 2ºGpt. Embora os tampões fossem diferentes, o leme era idêntico e ele se dispôs a emprestá-lo. Eu já havia encomendado ao mestre Fábio Paiva, da Opium Fiberglass, o material, mas certamente ele não chegaria antes de minha partida, dia 23 de dezembro, minha jornada nem começara e eu já amargava um prejuízo de mais de mil reais.
Lúcio Batista Guaraldi Eblin
Meu grande amigo Coronel Ebling foi, mais uma vez, meu ponta de lança me apoiando nos deslocamentos em Manaus para comprar alguns itens complementares e tive a oportunidade de almoçar com ele por três vezes. Novamente, ele doou ao Projeto um kit completo de reparação para eventuais avarias na fibra de vidro do caiaque.
Partida para Costa de Santo Antônio
(23 de dezembro de 2010)
O 2ºGpt havia providenciado um apoio substancial ao meu deslocamento, de Manaus a Santarém, em homenagem aos 40 anos do Grupamento. O Coronel Aguinaldo da Silva Ribeiro, meu ex-cadete, comandante do 8º Batalhão de Engenharia de Construção, sediado em Santarém, deslocou o B/M (Barco a Motor) Piquiatuba para me apoiar durante toda a jornada. A embarcação regional possui um convés principal e um convés superior, dispõe de cozinha, dois camarotes, dois banheiros, freezer, máquina de lavar roupas e televisão. Eu ia contar, graças aos discípulos de Vilagran, de um conforto que jamais havia imaginado e resolvi dormir embarcado, na véspera da partida na nau para evitar qualquer tipo de atraso. Improvisei tampões para o caiaque, montei minha barraca e a fixei solidamente no convés superior criando mais um aposento como alternativa. A zelosa tripulação era formada pelos soldados Mário Elder Guimarães Marinho (Comandante do B/M), Walter Vieira Lopes (Sub-comandante do B/M), Edielson Rebelo Figueiredo (Chefe da Casa de Máquinas) e Marçal Washington Barbosa Santos (cozinheiro) nosso bom Gourmet.
Acordei às 4h45, antes do amanhecer, e iniciei minha navegação pelo Rio Negro partindo do estaleiro do senhor Oziel Mustafa onde estávamos ancorados. Saí cedo tentando evitar a agitação que se seguiria. Às 5h45, o sol apontou, ainda preguiçoso, no horizonte, exatamente no alinhamento de minha proa, no mesmo instante em que eu passava na frente da estação de São Raimundo, fui, então, agradavelmente surpreendido com os maravilhosos acordes de nosso Hino Nacional, a magia do emocionante momento me envolveu e senti uma elétrica vibração percorrer minha epiderme. Continuei minha navegação e tive, mais de uma vez de desviar de pilotos, mal-educados que teimavam em sair de sua rota simplesmente para criar marolas que prejudicassem meu deslocamento. Eu já presenciara este comportamento condenável por diversas vezes no Guaíba onde pilotos de lanchas e Jet Sky, contrariando normas estabelecidas e o bom senso não priorizam as rotas de remadores e velejadores. Passei pela área do Porto do Chibatão onde, no dia 17 de outubro deste ano, ocorreu o deslizamento do barranco, provocado pela ação das águas, arrastando containers e carretas para o leito do Rio Negro.
Fiz a primeira parada na ilha Marapatá em frente à Refinaria de Manaus, recebi um telefonema da minha filha Vanessa, às 7h07, e enviei uma mensagem para o Coronel Colbelo do 2ºGpt informando minha posição, foi o último contato que pude estabelecer nos três primeiros dias de viagem. A equipe de apoio do Piquiatuba me ultrapassou e ficou aguardando à jusante da ilha, continuei minha navegação e logo em seguida pude observar o encontro das águas.
Encontro das Águas
“Vê como se separam duas águas,
Que se querem reunir, mas visualmente;
É um coração que quer reunir as mágoas
De um passado, às venturas de um presente.
É um simulacro só, que as águas donas
D’esta região não seguem o curso adverso,
Todas convergem para o Amazonas,
O real rei dos Rios do Universo;
(José Quintino da Cunha)
O Negro enfrentava a maior estiagem dos últimos quarenta anos e não era páreo para o formidável Solimões. Na altura da Ponta das Lajes o limite entre ambos era nítido, as alfaces d’água, aguapés, pequenos pedaços de madeira marcavam a fronteira entre os formidáveis mananciais, aqui e ali as águas leitosas do Solimões penetravam céleres no flanco direito do Negro, os ataques se tornavam cada vez mais frequentes e violentos à medida que eu avançava. Minhas fotografias aéreas, certamente da época da cheia do Negro, mostravam suas águas progredindo, cada vez mais estreitas, até a altura de Itacoatiara, a 200 quilômetros da foz. Hoje as águas do Negro guardavam apenas uma pálida lembrança do pujante afluente. As águas do Solimões passava o comando para o Amazonas que continuava não dando trégua ao arqui-rival e o comprimia sem clemência de encontro à margem esquerda, até que não restasse nenhum vestígio das águas “negras como tinta”. Há séculos a luta entre estes dois titãs vem encantando a poetas, naturalistas, pesquisadores e a todos que tem a oportunidade de admirá-las. E pensar que no século XVI o nome do Amazonas de Orellana, a montante de Manaus, foi alterado para Solimões tendo em vista na época se desconhecer em qual dos dois titãs se encontraria a nascente natural do Amazonas.
O Conto Águas
Mais uma vez caí no “conto das águas”. A tripulação do Piquiatuba informou que a água do reservatório era de boa qualidade e eu acreditei, infelizmente, minhas vísceras não. Estava tresnoitado ao iniciar minha jornada e além da desidratação, provocada pela disenteria, o sol causticante forçava-me a beber a água contaminada. Só então me dei conta que a água deveria ser a causa e me acerquei da embarcação de apoio para pedir que enchessem meu cantil com refrigerante. Procedi da mesma forma em mais duas oportunidades, era muito bom poder contar com este tipo de ajuda em pleno rio sem a necessidade de aportar.
Puraquequara e Missão Novas Tribos
A passagem pelo Puraquequara sinalizada, nitidamente, pelo Farolete Maronas trouxe-me gratas lembranças do Curso de Operações na Selva do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), exemplos de superação, de camaradagem, de coragem, de fé e, sobretudo, determinação dos companheiros do COS A/99. Dedicarei um capítulo especial em meu futuro livro a respeito deste Centro de Instrução que é considerado, indiscutivelmente, o melhor do gênero em todo mundo.
Na boca do Puraquequara existe uma instalação da controvertida Missão Novas Tribos do Brasil, filiada à Sociedade Internacional de Linguística, que mereceria um capítulo à parte, mas cujo objetivo pode ser resumido como - aniquilar povos e culturas e salvar línguas. A ONG exerce sua nefasta ação na Amazônia com a total conivência e omissão das autoridades “(ir)responsáveis” e já foi processada por ter invadido área indígena dos Zo’e provocando a morte de 40 silvícolas por infecções respiratórias. A Associação Brasileira de Antropologia acusa os membros da famigerada seita fundamentalista também pela destruição cultural, promover a desagregação social, realizar prospecção mineral e contrabando. Vários países latino-americanos, mais atentos, já expulsaram os vis missionários de seus países.
Costa de Santo Antônio
A viagem continuou sem grandes novidades pela face Norte da enorme Ilha do Careiro (40 km de extensão) e chegamos ao nosso local de destino por volta das treze horas depois de remar por 70 quilômetros durante 7h30. O Porto era um pequeno igarapé na Costa de Santo Antônio, um quilômetro a jusante do igarapé de mesmo nome da Costa, exatamente na parte mais estreita compreendida entre a margem esquerda do Amazonas e a Ilha das Onças. A tripulação foi pescar com a tarrafa que eu adquirira em Manaus e à noite, no jantar, degustamos o fruto de seu labor. Uma chuva torrencial iniciou à tarde, felizmente depois de estarmos perfeitamente atracados, protegidos e instalados na foz do igarapé.
Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA); Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS); Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB); Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS); Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br
E–mail: hiramrs@terra.com.br
Imagens da Internet – fotoformatação (PVeiga).
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