segunda-feira, 27 de agosto de 2012

EUCLYDES DA CUNHA E OS GRAMÁTICOS


Por Ariano Suassuna

Receita para escrever nomes próprios
-Ariano Suassuna-Foto: Gilson Camargo-Curitiba-PR
Recentemente, respondendo, em Belo Horizonte, a uma pergunta do jornalista Régis Gonçalves, afirmei que fui professor de Português durante muito tempo. Foi aos 17 anos que comecei a dar aulas; e ainda não parei, porque, depois de velho, já transformado num daqueles que o atual Presidente chama de "aposentados vagabundos", criei as aulas-espetáculo, tendo sido uma delas, aliás, o motivo de minha viagem a Minas.
Assim, tendo começado quase que ao mesmo tempo a vida de escritor e a de professor, bem se pode imaginar quanto me vi às voltas com as regras ditadas durante todos aqueles anos por filólogos e gramáticos. De modo que faço justiça a eles, reconhecendo que os bons são indispensáveis: é necessário que alguém coloque alguma ordem no modo de um Povo falar e escrever seu idioma.
Mas, além de professor por vocação e necessidade, foi aos 12 anos que empreendi minhas primeiras tentativas no campo da Literatura. Eu começara a ler os primeiros livros-de-poesia e romances-de-aventuras que me caíram nas mãos. E, estimulado por eles, escrevi meu primeiro conto e meu primeiro poema. Aos 17, sob a influência da leitura de Ibsen, tentei escrever uma peça-teatro, que falhou, porque o escritor norueguês não era Mestre indicado para iniciar-me.
Foi, portanto, pelo encanto daqueles personagens, para mim fascinantes e misteriosos, que eram os escritores, que comecei a querer me transformar num deles. E foi assim que, começando a amar a Língua Portuguesa (com uma paixão que ainda hoje se mantém acesa) procurei estudá-la da melhor maneira que me fosse possível. Cheguei a estudar o Português medieval e um pouco de Latim para captar melhor o espírito, a forma e os segredos da nossa língua. Foi no decorrer de tal estudo que certa vez traduzi para o Latim um trecho de A Demanda do Santo Graal, novela-de-cavalaria que sempre exerceu sobre mim um fascínio tão forte quanto o da novela-picaresca. O desta começou com O Lazarilho de Tormes, livro que na pulsação realista de sua seiva popular sempre me foi indispensável para complementar o idealismo aristocrático e alegórico da outra.
Ao mesmo tempo, porém, preocupado com meu País e meu Povo, descobri que, para mim, como escritor era uma sorte que o Português falado no Brasil tivesse chegado aqui numa época em que a Cultura ibérica estava começando a se expressar pelo Barroco, caracterizado pela união de contrastes. Contrastes em que se fundiam o trágico e o cômico, o popular e o erudito, a novela-de-cavalaria medieval e a picaresca da Renascença; e tudo isso era muito importante para a maneira de escrever que eu procurava. Notei que o Barroco era pai do Romantismo, avô do Naturalismo e bisavô do Simbolismo - e todas essas cosmovisões passaram a me tocar pela via de Gregório de Mattos, José de Alencar, Euclydes da Cunha, Aluisio de Azevedo, Julio Ribeiro, Cruz e Sousa Augusto dos Anjos.
Foi aí que, quase sem querer, comecei a ser afetado por coisas que podem parecer modismos ou pormenores sem importância para os outros mas que, para mim, são fundamentais. E foi aí, também, que começou para mim um verdadeiro tormento, porque passei um bom tempo da minha vida procurando adaptar meu modo de escrever às regras que filólogos e gramáticos ditavam, às vezes de maneira autoritária, acadêmica e estreita.
Entretanto, conduzido por meu passado de professor militante, adiava a rebelião, que só começou quando alguns gramáticos passaram da conta e se meteram a mudar até os nomes de pessoas mortas, como Gregório de Mattos, e de lugares veneráveis e sagrados, como Igarassu, que eles queriam obrigar-nos a escrever Igaraçu. No dia em que conversamos sobre isso, meu amigo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira tentou justificar a mudança: ela acontecera porque Igarassu é um nome indígena e os gramáticos tinham decidido escrever com ç todos os nomes tupis onde tal fonema aparecesse. Rebati seu argumento: os Índios brasileiros nem sequer tinham linguagem escrita; os Brasileiros dos séculos 16, 17, 18 e 19 escreviam, todos, Igarassu; a decisão de escrever o nome com ç era, portanto, inteiramente absurda e arbitrária.
Mas meu grito final de revolta só ocorreu, mesmo, no dia em que abri uma Enciclopédia e lá encontrei meu nome escrito como Ariano Suaçuna, que, sem dúvida, mais parece nome de Cobra que de gente. Foi a partir daí que tomei a decisão de só escrever o que quero, e como quero. São minhas heranças barrocas, populares e simbolistas que explicam entre outras coisas minhas maiúsculas "arbitrárias" e meus hifens "não autorizados".
De outra parte, escrevo sempre com y os nomes de Sylvio Romero ou Euclydes da Cunha: a meu ver, as reformas só podem atingir - assim mesmo com reservas já apontadas - o presente e o futuro: o passado nunca. Principalmente no caso de meu Mestre, Euclydes da Cunha, que detestou uma reforma que os gramáticos fizeram em seu tempo e cujo autógrafo vi certa vez como quem olha uma relíquia: era assim - Euclydes da Cunha.
Diário de Pernambuco (PE) 23/8/2000 in Academia Brasileira de Letras
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Ariano Vilar Suassuna nasceu em Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa (PB), em 16 de junho de 1927, filho de Cássia Villar e João Suassuna.
Ariano Suassuna é autor de obras como Auto da Compadecida e A Pedra do Reino. Foi fundador, na década de 1970, no Recife, do Movimento Armorial, dedicado às expressões populares da cultura brasileira.
 Apesar de nunca ter saído do Brasil, os livros do escritor já foram traduzidos para o inglês, francês, italiano, espanhol, alemão, holandês e polonês.

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