Comentário de Roberto Moreno na secção "Links" (http://www.terra.com.br/sualingua/):
terça-feira, 2 de outubro de 2012
A HISTÓRIA DE "ESTÓRIA"
Por (*) Cláudio
Moreno
Perdi a
conta dos leitores que me perguntam sobre a famigerada estória. Uns
querem saber se realmente existe essa distinção entre estória e história.
Outros teriam ouvido que a palavra existiu outrora, mas hoje seria considerada
arcaica. Há quem especule que estória tenha nascido de um erro de
tradução. Quase todos perguntam se é uma distinção útil e necessária, ou se não
passa de supérfluo balangandã. Peço perdão àqueles que fiz esperar, mas aqui
vai minha resposta a todos.
Foi João
Ribeiro, forte conhecedor de nosso idioma, quem propôs a adoção do termo estória,
em 1919, para designar, no campo do Folclore, a narrativa popular, o conto
tradicional, objeto de estudo dos especialistas daquela área. E não se
tratava de inventar, mas sim de reabilitar (hoje usariam o
horrendo resgatar...) uma forma arcaica, comum nos manuscritos medievais
de Portugal. Era uma ingênua proposta, paroquial, nascida da inveja
compreensível que causa a distinção story - history do Inglês; sem ela,
alega o próprio Luís da Câmara Cascudo - para mim, um dos escritores que mais
contribuíram para nossa língua -, não se pode entender frases como
"Stories are not History", ou títulos como "The History of a
Folk Story". Que o mestre Cascudo me perdoe: a intenção era boa, mas sem
nenhum fundamento linguístico.
Em primeiro
lugar, a estória medieval não era um vocábulo diferente de história;
era apenas uma das muitas variantes que se encontram nos textos manuscritos de
nossos copistas, naquele tempo heroico em que a estrutura de nossa ortografia
ainda lutava para sedimentar. Ali aparecem história, hestória, estória,
istória, estórea (ainda não se usavam os acentos, que são de nosso século,
mas não pude resistir). Da mesma forma, vamos encontrar homem, omem, omee
(algumas vezes com til no primeiro e) e até ome. Nota-se que o emprego
do "h" e das vogais ainda não estava estabilizado na escrita.
Entretanto, já no séc. XVI - em Camões, por exemplo - a grafia de homem
e história era a que é usada até hoje. Outras línguas da família latina,
como o Espanhol e o Francês, também experimentaram essa variedade de formas
para história, mas terminou prevalecendo a forma única (historia
e histoire, respectivamente).
Em segundo
lugar: grande coisa se o Inglês pode fazer a distinção entre story e history!
E daí? Como o folclórico Napoleão Mendes de Almeida nos lembra, eles também
distinguem entre can (poder, conseguir) e may (poder, no sentido
legal e ético): "You can, but you may not" é uma rica
frase em Inglês que só poderíamos traduzir com um aproximado "Você pode,
mas não deve". Esse autor, que abominava estória, pergunta
ironicamente: "Se curtos de inteligência foram nossos pais em não terem
descoberto essa história de "estória", curtos de inteligência
continuamos todos nós em não forjarmos distinção gráfica e fonética para "poder",
para "educação", para "raio", para "oficial"
e para outros vocábulos de formas diferentes em Inglês, como curtos de
inteligência são todos os outros idiomas que têm palavras com mais de uma
significação".
Dessa vez
Napoleão bateu no prego e não na tábua. Uma olhada no meu Oxford e me dou conta
que para nosso raio, por exemplo, o Inglês tem (1) ray (onde
temos "raio de luz", "pistola de raios"), (2)
radius (o "raio de um círculo") e (3) lightning (a
"descarga elétrica"). É mais do que comum o fato de uma língua fazer
distinções vocabulares que outras não fazem. Como tive a oportunidade de
mencionar em outro artigo (Atravessando o Canal da Manga), o Espanhol designa
com um único vocábulo (celo, celos) o que nós distribuímos por
três: zelo, cio e ciúme. Invejamos o story do Inglês? Eles
então devem ficar verdes diante de nosso ser e estar, distinção
fundamental na vida e na Filosofia, que eles simplesmente desconhecem. Assim
são as línguas humanas, na sua (im)perfeição.
Além disso,
os amáveis folcloristas que defendiam estória pensavam apenas em
distinguir "a História do Brasil das Histórias da Carochinha". Do
ponto de vista linguístico, erraram por todos os lados. Primeiro, erraram
porque essa não é uma distinção útil, que justifique sua defesa. O português
José Neves Henriques, o severo e consciencioso JNH do Ciberdúvidas da
Língua Portuguesa (já falei sobre ele na seção de Links***), condena essa invenção
"brasileira" (ele tem razão: é coisa nossa), taxando-a de "uma
palermice, porque, até agora, nunca confundimos os vários significados de história.
O contexto e a situação têm sido mais que suficientes para distinguirmos os
vários significados". Certo o professor Henriques, errados os folcloristas:
ninguém vai confundir a história de um país com a história do bicho-papão.
Segundo,
erraram porque enxergavam apenas dois polos bem definidos: a história
que se refere ao passado e ao seu estudo, e a estória da narrativa, da
fábula. A experiência nos diz que essas invasões de searas alheias geralmente
pecam por um raciocínio simplista, reducionista. Quem mexe no que não entende,
termina fazendo bobagem... e não deu outra. Nossos estudiosos não perceberam
que a distinção sugerida, apetecível do ponto de vista deles, acabaria criando
incertezas e hesitações em frases corriqueiras como "Deixa de histórias!";
"Essa já é outra história"; "Que história é
essa?"; "Eu e ela temos uma velha história". Qual das
duas formas usar? Por tão pouco benefício, por que assombrar ainda mais os que
escrevem em Português? Faço questão de frisar "os que escrevem"
- porque aqui, também, reside outra falha da proposta de João Ribeiro: as duas
formas não seriam distinguíveis na fala, já que a realização da vogal "E"
inicial de estória é geralmente /i/ (como em espada, esperto,
etc.). Ambas seriam pronunciadas da mesma maneira: /istória/. E quantas
outras palavras, derivadas de história, deveriam ser alteradas? Historieiro?
Historiento? As historietas passariam a ser estorietas? Os
aficcionados em quadrinhos passariam a usar EQ em vez do consagrado HQ?
Como se vê, "muito trabalho por nada", como reza a comédia de
Shakespeare.
De qualquer
forma, o uso de estória poderia ter ficado confinado ao mundo do
Folclore, onde talvez fosse de alguma utilidade. Afinal, não é incomum que
certas áreas do pensamento postulem, para uso exclusivo, vocábulos novos ou
variações fonológicas ou ortográficas de vocábulos antigos, no afã de obter
maior precisão em seus conceitos. Isso se verifica, por exemplo, na Filosofia,
na Lógica, na Linguística, na Psicanálise (onde me chama a atenção a
impressionante inquietação linguística dos lacanianos). Como é natural, essas
variantes vão fazer parte de um código específico, cujo emprego passa a ser
indispensável para os especialistas dessa área, mas não entram no grande caudal
da língua comum. A criação, a utilização e, muito seguidamente, a agonia e
morte dessas formas são registradas em discretos dicionários especializados,
convenientemente isolados do grande rebanho representado pelos dicionários de
uso.
Infelizmente,
como nos piores pesadelos dos ecologistas, estória rompeu as cercas de
segurança, saiu do pequeno rincão do Folclore e invadiu nossas vidas. O
responsável por isso foi João Guimarães Rosa (pudera não!). Como escreve meu
mestre Celso Pedro Luft, com uma ponta de inesperada ironia, Rosa decidiu
"glorificar, imortalizar a ausência do agá: Primeiras Estórias.
Corriam os anos de 1962. Primeiras estórias ... todos os fãs do mineiro
imortal ficaram absolutamente alucinados. E foi estória para cá, estória
para lá, estória para todos os lados. Uma epidemia. Perdão, uma
glória". Depois, em 1967 veio Tutaméia, com o subtítulo "Terceiras
Estórias", e o póstumo Estas Estórias, publicado em 1969. Muito
tem sido escrito sobre a inovação da linguagem rosiana; a sintaxe de seu
narrador é, a meu ver, a criação literária do século. No entanto, sou obrigado
a observar que, em termos não literários, essa inovação é zero. Nenhuma
das palavras montadas, deformadas ou inventadas por ele jamais será usada, a
não ser por imitadores (que já andam escasseando...). É uma linguagem só dele;
funciona admiravelmente no universo de sua obra, mas é seu instrumento
pessoal, e nunca será nosso. Ouso dizer que a única influência rosiana
no Português foi a divulgação desse equívoco que é estória. Tenho
certeza de que Guimarães Rosa, místico de quatro costados, entenderia: deve ser
vingança dos deuses da Língua.
Comentário de Roberto Moreno na secção "Links" (http://www.terra.com.br/sualingua/):
“Ciberdúvidas da Língua Portuguesa”. Este é o
sítio mais tradicional sobre questões de Língua Portuguesa. Você pergunta, e
uma simpática "equipa, orientada pelo Conselho Científico da Sociedade da
Língua Portuguesa, responder-lhe-á o mais depressa possível" (pelo
vocábulo equipa e pela mesóclise, você já deverá ter percebido que os autores
são de Portugal). Tem uma estrutura bem prática; seu valioso arquivo de
perguntas respondidas desde 1997 pode ser pesquisado com um mecanismo de busca.
Infelizmente a "equipa" que responde às consultas é muito desigual;
alguns de seus integrantes pouco ou quase nada entendem do assunto. No entanto,
como todas as respostas são assinadas, fique atento às iniciais JNH, que
identificam o material produzido por José Neves Henriques, qualificado na ficha
de colaboradores como "professor aposentado, membro do Conselho Científico
e director do boletim da Sociedade da Língua Portuguesa, licenciado, com tese,
em Filologia Clássica pela Universidade de Lisboa e autor de várias obras de
referência". Este realmente sabe o que faz; embora siga uma orientação um
tanto tradicional, suas contribuições são constrangedoramente mais valiosas que
as de seus parceiros. Até agora, todos os textos que li com a rubrica JNH
impressionam pela solidez do conhecimento e seriedade com que trata cada tópico
discutido.»
Texto publicado no consultório
brasileiro "Língua Portuguesa" link acima.
(*) Cláudio Moreno, doutor em Letras pela PUCRS (Rio
Grande, RS, Brasil), é professor de Português nesta universidade e autor do
consultório da Internet "Língua Portuguesa".
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