Teve muito pouca repercussão o centenário do início
da Guerra do Contestado, episódio sangrento da história brasileira, que começou
no dia 12 de outubro de 1912, durando até 1916.
Revolta concentrada nos Estados de Santa Catarina e
do Paraná, marcada por contornos fortemente religiosos e de disputa pela terra
entre latifundiários e camponeses, com uma empresa americana no meio, a Guerra
do Contestado jamais poderá cair no esquecimento, como tentaram fazer ao longo
do século que se foi. –(in O Contorno da Sombra).
Leia a excelente matéria do IHU:
Guerra do Contestado. Os reflexos cem anos depois.
Entrevista especial com Paulo Pinheiro Machado
“Em Santa
Catarina, a atual luta pela terra une estes dois grupos: os participantes dos
assentamentos e acampamentos da reforma agrária (descendentes de caboclos,
remanescentes do movimento do Contestado), e os colonos de origem europeia, que
perderam suas terras nas últimas décadas para bancos, comércio e
agroindústria”, aponta o historiador.
Confira a
entrevista.
O conflito
social entre fazendeiros e posseiros, ocorrido no planalto catarinense e
paraense há um século, conhecido como a Guerra do
Contestado, reflete ainda hoje no cotidiano das populações
remanescentes dos redutos do Contestado. De acordo com o historiador Paulo
Pinheiro Machado, que pesquisa a história da região, os caboclos
descendentes de pequenos lavradores e posseiros “vivem em situação de extrema pobreza. Os núcleos e municípios onde
vivem apresentam os Índices de Desenvolvimento Humano – IDH (que
mensura educação, saúde e condições de vida, trabalho e moradia) mais baixos de
Santa Catarina”, informa em entrevista concedida à IHU On-Line por
e-mail.
Os caboclos
ocupam as “periferias das grandes e
médias cidades do Estado”, e muitos dos que trabalham no campo “são peões ou agregados de grandes
fazendeiros, e raros são proprietários de lotes formalizados de terra”, diz
o historiador. Na entrevista a seguir, Machado detalha o que foi a Guerra
do Contestado e comenta o processo de europeização dos estados de Santa
Catarina e Paraná. “Boa parte
da região onde viviam os sertanejos antes
da guerra foi, ao longo de 1930 a 1950, objeto de ação de companhias
particulares de colonização que, agindo de acordo com as autoridades públicas,
lotearam antigas terras dos caboclos posseiros para descendentes de segunda e
terceira geração de imigrantes europeus provenientes do Rio Grande do Sul”.
Paulo
Pinheiro Machado (foto) leciona na
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, onde coordena o curso de
graduação em História. É doutor em História pela Universidade Estadual de
Campinas, com pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense e na Universitat
Autonoma de Barcelona.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line – O que foi a Guerra do Contestado (1912-1916)? Em que contexto
histórico e político ela aconteceu?
Paulo
Pinheiro Machado – A Guerra do Contestado foi um
conflito social, ocorrido nos planaltos catarinense e paranaense entre 1912 e
1916, que colocou de um lado Coronéis, grandes fazendeiros, governo e, de outro
lado, posseiros, pequenos lavradores, ervateiros, tropeiros e agregados. O
conflito teve início com a perseguição policial ao grupo de sertanejos que se
reunia em torno do curandeiro José Maria, na comunidade de Taquaruçu.
Quando este
grupo foge da polícia catarinense e se dirige ao oeste, ao Irani, então
território contestado sob administração paranaense, os sertanejos passam a ser
objeto de desconfiança das autoridades paranaenses, que interpretam sua chegada
como uma "invasão catarinense" no intuito de ocupação do
território contestado. A polícia do Paraná promoveu um forte ataque
que resultou na batalha do Irani, combate ocorrido em 22 de outubro de 1912,
considerado o início da Guerra, onde morreram 11 sertanejos, entre eles o monge
José Maria, e 10 soldados (inclusive o comandante do Regimento de
Segurança do Paraná, o coronel João Gualberto Gomes de Sá Filho) -[foto]. Os
sertanejos enterraram José Maria com tábuas, já que aguardavam por seu
"retorno". Um ano após este combate, uma menina de 11 anos, Teodora,
passou a relatar que tinha sonhos com José Maria e que este ordenava a todos os
seus seguidores a dirigirem-se para Taquaruçu. Depois formam-se outras
"cidades santas" ou redutos dos sertanejos, como Caraguatá, Santo
Antônio, Caçador Grande, Bom Sossego, Santa Maria (a maior cidade, com mais de
20 mil habitantes), Pedra Branca, São Miguel e São Pedro. A tropa federal
chegou a reunir mais de 7 mil soldados, associados às polícias de Santa
Catarina e Paraná e grande grupo de “vaqueanos civis”, como eram chamados os
capangas dos fazendeiros. O conflito teve fim com o cerco e o desabastecimento
dos redutos finais. Acredita-se que os mortos em combate e por epidemias e fome
passem dos 10 mil.
O contexto
principal do conflito é a vigência do coronelismo no planalto, o impacto da
construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande sobre extensa região
(com a expropriação e o deslocamento de milhares de sertanejos), e a herança
política de conflitos ligados à Revolução Federalista (1893-1895), que
impactou fortemente o planalto.
Como
potencializador dentro deste conjunto de problemas, ainda havia uma longa
disputa de limites entre os dois estados. Os catarinenses reivindicavam, como
suas divisas com o vizinho do norte, os rios Iguaçu e Negro. Os paranaenses
consideravam que toda a região dos campos de Palmas, de União da Vitória até o
rio Caçador e das saliências do Timbó, de Três Barras, Rio Negro, Itaiópolis e
Papanduva, constituía parte de seu território. Os catarinenses já possuíam três
sentenças do Supremo Tribunal Federal a seu favor (de 1904, 1909 e 1910), mas a
execução destas decisões eram inviabilizadas por pressão política dos
paranaenses.
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João Maria, o Monge da Lapa |
IHU On-Line – Qual a influência e participação dos monges na Guerra do
Contestado?
Paulo Pinheiro Machado – O profetismo popular praticado pelo monge João
Maria de Agostini desde meados do século XIX no planalto criou um ambiente
cultural de autonomia, um conjunto de práticas sociais e costumeiras do mundo
caboclo, autonomia em relação ao Estado, aos proprietários e ao clero católico.
João Maria era um rezador leigo, andarilho, que circulava num amplo
território que ia de Sorocaba, em São Paulo, até Rio Pardo e Santa
Maria, no Rio Grande do Sul. Seus caminhos eram os mesmos das tropas de
muares, que uniam o sul ao centro do Brasil. A partir da década de 1860, este
primeiro João Maria nunca mais foi visto. Na década de 1890 outros
andarilhos irão assumir esta identidade e, em 1912, o próprio curandeiro José
Maria, após a sua morte, terá sua memória associada, cada vez mais, à
trajetória de João Maria. Para os caboclos o profeta é um santo,
"São" João Maria”. O profeta pregava uma vida de respeito ao próximo,
aos animais e à natureza. Assinalava a existência de fontes de água (que logo a
população passou a chamar de “águas santas” ou “águas do monge”) e recomendava
a edificação de cruzeiros. Informava que haveria uma época em que o sol não
nasceria por três dias e que só os verdadeiros penitentes se salvariam. No
final do século XIX se identifica uma crescente aproximação da tradição de São
João Maria com a tradição popular federalista. Não do federalismo formal de
suas principais lideranças (como Gaspar Silveira Martins, Eliseu
Guilherme da Silva ou Abdon Batista), mas de uma vertente popular do
federalismo, que era animada por pequenas lideranças locais, que se baseava
numa noção difusa de luta contra autoridades impostas de fora.
Ao longo de
um extenso período não só no Contestado, mas em outras regiões do Sul
brasileiro, ocorreram concentrações camponesas em nome de João Maria,
que foram objeto de ação repressiva da polícia e de forças militares, como a
concentração de Santa Maria (no Campestre entre 1846 e 1849), no Rio
Grande do Sul; o Canudinho de Lages (em Santa Catarina, em 1897), o
movimento dos monges do Pinheirinho (Encantado, Rio Grande do
Sul, 1902), o movimento dos Fabrícios e dos Palhamos (Concórdia,
SC, 1924-25), o movimento dos monges barbudos (Soledade, RS, 1935-37) e
o movimento do Timbó Grande, 1942 (Porto União, SC, 1942). Então,
a ação dos monges é importante não só para o Contestado, mas também para todo o
Planalto Meridional.
IHU On-Line – Qual a relação da Guerra do Contestado com o ingresso
dos imigrantes europeus em Santa Catarina e Paraná?
Paulo
Pinheiro Machado – Quando o governo federal destinou à Brazil
Railway Company, empresa do magnata norte-americano Percival Farqhar,
a concessão para a construção do último trecho da Estrada de Ferro São
Paulo-Rio Grande, permitiu que esta empresa explorasse até 15 km de terras
devolutas de cada lado do leito da estrada. Ao longo de quase 300 km do vale do
Rio do Peixe muitas comunidades de caboclos foram enxotadas e ali foi
instalada uma subsidiária da ferrovia, a Brazil Lumber and Colonization
Company, responsável pela exploração das madeiras (araucárias, imbuias,
ipês, etc.) e pelo loteamento e venda do território recebido como concessão
para imigrantes europeus, muitos deslocados para auxiliar na construção da
estrada de ferro. Então, esta chegada de imigrantes junto com a ferrovia criou
forte reação entre os caboclos luso-brasileiros. Mas é também importante
lembrar que muitos imigrantes (alemães, italianos, poloneses e ucranianos)
aderiram ao movimento sertanejo,
indo morar nas "cidades santas", vários por já estarem
"acaboclados", aderindo ao universo cultural dos devotos de São
João Maria.
IHU On-Line – Como vê o processo de europeização incentivado nas primeiras
décadas da República? Os conflitos de terra no país derivam especificamente
deste período?
Paulo
Pinheiro Machado – Apesar de serem mais antigos, os conflitos de
terras se intensificam neste período. Com a República, a Constituição de 1891
passou para os estados a capacidade de legislar sobre terras e colonização.
Leis de terras estaduais são promulgadas no Paraná e em Santa Catarina,
frequentemente apoiando os já grandes fazendeiros, viabilizando a legitimação
de suas posses e o açambarcamento de extensas áreas públicas (como ervais nativos).
Mas podemos ver a questão de terras no Contestado em três níveis
diferentes: em primeiro lugar, é importante considerar que já existia um
paulatino processo de concentração fundiária nas regiões de campos naturais e
faxinais, como São Joaquim, Lages, Curitibanos e Campos
Novos. Nestes municípios há um paulatino avanço de grandes estancieiros
sobre a posse de pequenos lavradores, que faziam suas lavouras em matas e
faxinais vizinhos às pastagens dos criadores. No início do século XX há um
processo de açambarcamento das posses destes pequenos lavradores pelos grandes
criadores. Nas margens dos rios do Peixe, Negro e Iguaçu médio ocorre o impacto
já mencionado da construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande,
com a grilagem em grande escala realizada pelo Corpo de Segurança
particular da Lumber, que expulsou deste território milhares de
sitiantes e pequenos posseiros. Por fim, nas regiões contestadas entre Paraná e
Santa Catarina havia muitos territórios com dupla titulação, em cartórios
catarinenses e paranaenses. A instabilidade da questão de limites entre os
estados facilitou a grilagem praticada em grande escala por Coronéis da Guarda
Nacional do Paraná, sobre muitas terras habitadas por indígenas e caboclos.
Assim agiam os Coronéis Juca Pimpão (de Palmas), Amazonas Marcondes (União
da Vitória), Arthur de Paula (na região do Timbó), Fabrício Vieira
(no Iguaçu médio), Leocádio Pacheco (em Três Barras) e Bley Neto
(em Rio Negro). Mesmo depois da execução do acordo de limites, assinado por
ambos os estados ao final da Guerra, em 1916, uma cláusula deste acordo
consolidou a grilagem das terras contestadas por proprietários paranaenses,
mesmo nos territórios que caíram sob jurisdição catarinense.
IHU On-Line – Por que a Guerra do Contestado foi pouco discutida e relembrada
entre os catarinenses durante quatro décadas?
Paulo
Pinheiro Machado – O conflito foi extremamente violento e traumático
para muitas comunidades do planalto. Além disso, como era governador na época o
lageano Vidal Ramos, por todo um longo período onde este grupo
oligárquico esteve no controle da máquina do Estado (nos governos de Nereu
Ramos e seus partidários do PSD), o esquecimento foi uma política de
estado. A outra oligarquia local, o grupo Konder-Bornhausen, fortemente
representada na UDN, estava preocupada em construir uma imagem de europeização
para o estado, o que não deixava espaço para a experiência da aventura cabocla.
Mas, apesar deste grande desconhecimento público sobre o conflito, o movimento
do Contestado possui uma extensa e copiosa literatura de cronistas
militares, sociólogos e historiadores. No entanto, esta produção sempre ficou
muito restrita a um pequeno grupo de pesquisadores especialistas. O Contestado
começa a sair do esquecimento numa conjuntura específica, a redemocratização
e a luta contra a Ditadura Militar nas
décadas de 1970 e 1980. É neste contexto que precisamos entender a nova
historiografia sobre este movimento, que o reviveu em grande medida ativada por
um conjunto contemporâneo de movimentos sociais dos “de baixo”, dos sem-terras,
dos atingidos pelas barragens e muitos outros.
IHU On-Line – Hoje, como o tema tem sido resgatado pela historiografia, e quais
são as novidades para compreendermos melhor o que foi esse período?
Paulo Pinheiro Machado – Há uma nova geração de pesquisadores, inaugurada
com o magistral livro de Duglas Teixeira Monteiro, Os errantes do novo
século (São Paulo: Duas Cidades, 1974), que passou a afastar os antigos
conceitos de fanatismo, irracionalidade e aberrações e começou a entender a
linguagem e a cultura dos sertanejos rebeldes em seus próprios termos. Assim
podemos considerar a bela obra de Marli Auras, Guerra do Contestado:
a organização da Irmandade Cabocla (Florianópolis: Ed. UFSC, 1983), que faz
um estudo sobre os laços internos dentro dos redutos. O trabalho de Ivone
Gallo, O Contestado: o sonho do milênio igualitário (Campinas: Ed.
Unicamp, 1999), que procurou entender o profetismo popular e a noção de
apocalipse dos sertanejos. Delmir José Valentini faz um importante
trabalho sobre a memória dos sertanejos sobreviventes: Da cidade santa à
corte celeste (Florianópolis: Insular, 1999). O primeiro livro de Márcia
Janete Espig, A presença da Gesta Carolingea no movimento do Contestado
(Canoas: Ed. Ulbra, 2004), que faz um importante estudo da cultura popular no
planalto e dos sentidos do projeto sertanejo. Meu livro intitulado Lideranças
do Contestado (Campinas: Ed. Unicamp, 2004) procura entender as origens e a
formação das chefias caboclas. A tese de Rogério Rosa Rodrigues, Veredas
de um grande sertão: a modernização do exército durante a Guerra do Contestado
(tese de doutorado em História, UFRJ, 2008), que faz importante balanço da
atividade dos militares sobre o conflito, inclusive dos primeiros
“Historiadores de Farda”. O segundo livro de Márcia Espig, Personagens
do Contestado: os turmeiros da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande (Pelotas:
Ed. UFPEL, 2011), sobre os operários que trabalharam na construção desta
estrada, trata-se de importantes análises sobre a origem social e geográfica
destes trabalhadores e do envolvimento desta ferrovia com o conflito. Mais
recentemente temos a tese de Alexandre Karsburg, O eremita do novo
mundo (tese de doutorado em História, UFRJ, 2012), que, embora não trate
diretamente do conflito do Contestado, traz importantes novidades sobre a
trajetória do primeiro monge, o italiano Giovani Maria de Agostini.
IHU On-Line – Quem são os descendentes dos Contestados? Qual a situação
econômica, política e social deles, um século depois da Guerra?
Paulo
Pinheiro Machado – As populações remanescentes dos redutos do
Contestado vivem em situação de extrema pobreza. Os núcleos e municípios
onde eles se encontram apresentam os Índices de Desenvolvimento Humano –
IDH (índice que mensura educação, saúde e condições de vida, trabalho e
moradia) mais baixos de Santa Catarina. Quando vivem no campo são peões
ou agregados de grandes fazendeiros, raros são proprietários de lotes
formalizados de terra. Hoje estão cada vez mais proletarizados e vivendo na
periferia das grandes e médias cidades do estado. Boa parte da região onde
viviam os sertanejos antes da guerra foi, ao longo de 1930 a 1950, objeto de
ação de companhias
particulares de colonização que, agindo de acordo com as autoridades
públicas, lotearam antigas terras dos caboclos posseiros para descendentes de
segunda e terceira geração de imigrantes europeus provenientes do Rio Grande
do Sul.
No Estado
de Santa Catarina, a atual luta pela terra une estes dois grupos: os
participantes dos assentamentos e acampamentos da reforma agrária (descendentes
de caboclos, remanescentes do movimento do Contestado), e os colonos de
origem europeia, que perderam suas terras nas últimas décadas para bancos,
comércio e agroindústria, como o resultado de políticas agrícolas que penalizam
o campesinato como um todo.
(Imagens da Internet - pesquisa PVeiga)
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