quinta-feira, 4 de outubro de 2012

JUSTIÇA NA HISTÓRIA - CLÓVIS BEVILÁQUA, UM SENHOR BRASILEIRO

Clóvis Beviláqua, filho do padre José Beviláqua e Martiniana Maria de Jesus, nasceu em Viçosa do Ceará a 4 de outubro de 1859 e faleceu no Rio de Janeiro a 26 de julho de 1944, foi um jurista, legislador, filósofo e historiador brasileiro

O Livro Clóvis Beviláqua. Um Senhor
Brasileiro, (Lettera.doc, 256 páginas), 
organizado pelo historiador Cássio Schubsky,
é uma tentativa de resgatar a história,
incrementando a biografia do jurista de Viçosa
do Ceará.  Cada capítulo é dedicado a um
aspecto de sua trajetória, da vida pessoal
à elaboração do Código Civil, passando por
sua participação na Academia Brasileira de
Letras, da qual foi membro fundador.

O eclético Clóvis, já sabemos, ficou marcado por sua grande obra, o projeto de Código Civil Brasileiro, o primeiro a vingar, depois de seguidas tentativas frustradas de codificação, desde meados do Segundo Império.
Justiça se faça ao grande jurisconsulto, porém, é preciso que se destaque, entre outras enormes contribuições suas ao saber jurídico e à cultura de modo geral, a rica (embora sempre mal remunerada, pois sua modéstia o impedia de auferir grandes ganhos ou lucros...) atividade que desenvolveu no campo do Direito Internacional.
O internacionalista
Clóvis Beviláqua foi, durante 28 anos, ininterruptamente, o consultor jurídico do Itamaraty. De 1906 a 1934, redigiu centenas de pareceres, à frente do Ministério das Relações Exteriores. Foi, seguramente, o consultor jurídico que mais tempo ocupou o cargo à frente da Casa de Rio Branco, que já contou, em seus quadros, com nomes como Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente, o grande constitucionalista do Império) e Amaro Cavalcanti (notável administrativista dos primórdios da República), além de Lafayette Rodrigues Pereira, Rodrigo Octávio e muitos outros eminentes juristas.
No ano 2000, o Senado Federal, o Ministério das Relações Exteriores e a Fundação Alexandre de Gusmão publicaram, em coedição, nove volumes contendo o conjunto dos principais pareceres assinados pelos consultores jurídicos do Itamaraty ao longo dos anos (os livros integram a Coleção Brasil 500 Anos e foram organizados por Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, atual consultor jurídico do órgão).
Pois bem. Cerca da metade do primeiro volume, com aproximadamente 150 páginas no total, é composta de pareceres da lavra de Clóvis Bevilaqua. Já o segundo volume da série, um catatau de 650 páginas, é todo – de cabo a rabo! – de pareceres de Clóvis. E, vale dizer, não estão compulsados todos os pareceres do autor de Criminologia e Direito, já que muitos, por curtos demais, foram suprimidos das publicações.
Não há assunto afeto ao Direito Internacional, praticamente, que não tenha sido tratado em centenas de pareceres do jurisconsulto cearense. Os temas, variadíssimos, incluem, apenas a título de exemplo, os seguintes: importação no Brasil de armas e munições; organização da III Conferência de Paz em Haia; Nacionalidade das sociedades comerciais organizadas no Brasil; Bloqueio Naval da Grã-Bretanha; Codificação progressiva do Direito Internacional; o imposto de transmissão de propriedade causa mortis e o caráter territorial deste imposto; extradição de criminosos nacionais; convenções sobre letras de câmbio e notas promissórias; etc., etc., etc...
Com Rui Barbosa
Apesar da vida reclusa, sempre ao lado da família, da mulher e das filhas, Clóvis teve destacada atuação no campo internacional. Seu arquivo pessoal testemunha a profícua correspondência que mantinha – em diversos idiomas – com estrangeiros, sobre os mais variados assuntos de Direito Internacional.
Mesmo trabalhando em casa, aceitou integrar um comitê de juristas incumbido, pela Sociedade das Nações, de elaborar um projeto de criação da Corte Permanente de Justiça Internacional, na década de 1920. É um trabalho de proa, praticamente esquecido ante o feito monumental do incomparável civilista, o projeto de Código aprovado em 1916. Há registro do esforço, publicado na forma de livreto, em francês, intitulado Projet d’organisation d’une Cour Permanente de Justice Internacionale, com prefácio de Clóvis (Bernard Fréres, Rio de Janeiro, 1921). Obra rara, como boa parte, aliás, das edições dos vários livros de Clóvis, muitos deles caindo aos pedaços, literalmente, nos acervos descuidados de arquivos históricos e bibliotecas Brasil afora.
Em muitos casos relativos a assuntos internacionais, os nomes de Rui Barbosa e Clóvis Bevilaqua aparecem lado a lado, seja na elaboração de pareceres, seja compondo missões internacionais – provas cabais de que a rivalidade entre os dois mestres do Direito era fato de menor importância, circunscrita ao episódio da polêmica do projeto de Código Civil, que ambos, sobranceiros, souberam superar, com galhardia – a bem da cultura jurídica.
Com sua vasta experiência no ramo, Clóvis escreveu também livros alentados sobre o tema, como o clássico Direito Público Internacional.
O CASO OLGA BENÁRIO – Apesar de sua enorme contribuição para o Direito Internacional estudado e praticado no Brasil, o jurista de Viçosa do Ceará ficou estigmatizado por episódio narrado pelo jornalista Fernando Morais em seu livro Olga. É que, em 1936, ano da deportação da mulher do líder comunista Luís Carlos Prestes, Clóvis, que já havia se aposentado como consultor do Itamaraty, teria dado declarações (bastante ambíguas, por sinal) a jornais brasileiros (não identificados claramente por Morais), a favor da extradição de Olga Benário (ou Maria Prestes) para a Alemanha, já sob o comando de Hitler.
O fato é que Olga estava grávida e acabou morta em um campo de concentração – a filha do casal Prestes nasceu antes e, por pressão internacional, acabou retornando ao Brasil. A história mereceria maior esclarecimento, sobre o real teor das declarações (ou até de um suposto parecer de Clóvis sobre o assunto).
Vejamos, pois, o trecho do livro de Fernando Morais sobre o caso:
"Embora estivesse, como dissera o Barão de Itararé, ‘grávida a olho nu’, Olga teve que ser submetida a um exame ginecológico, feito pelo médico Orlando Carmo, indicado pela polícia, para comprovar formalmente seu estado. Mesmo não havendo dúvidas de que a Constituição lhe assegurava o direito de permanecer no país, estando para dar à luz o filho de um brasileiro, não faltaram juristas a teorizar sobre o acerto da decisão de Vargas e Filinto Müller de expulsá-la do Brasil. Quando alguém lembrava a garantia constitucional, a resposta era sempre a mesma: ’Bem, mas estamos sob estado de guerra, não é?’ Consultado pelos jornais, o jurista Clóvis Beviláqua foi obrigado a dar voltas e voltas para justificar a decisão do governo: - A questão foi estudada em todos os seus aspectos em face do Direito Civil. É, porém, diverso, o caso ora em debate. Estamos agora no terreno do Direito Internacional com um caráter punitivo. Essa punição, no entanto, visando a expulsanda, vai atingir o nascituro. Além disso, estamos em período de estado de guerra, e a expulsão de que se cogita envolve o ponto de vista do interesse público, que está acima de todos os demais interesses.
“A questão do ‘interesse público’ a que se referia Clóvis Beviláqua não passava, na verdade, de um despacho administrativo assinado por Demócrito de Almeida, um delegado auxiliar, e por Filinto Müller, um capitão na chefia de polícia, que entenderam que a expulsão de Olga ‘além de justa, é necessária à comunhão brasileira’. Mesmo sabendo que a deportação significaria a morte de mãe e filho, Beviláqua não resistiu à ironia ao declarar que só via uma saída para impedir a expulsão de Olga: - “Só por questão de humanidade...”
No tempo em que havia a pena de morte, não se executava a sentença quando a paciente estava grávida. Aguardava-se o nascimento da criança. Era também uma questão de humanidade... (MORAIS, Fernando. Olga, Editora Alfa-Ômega, São Paulo, 1986, p. 195-196).
A que jornais teriam sido dadas as tais declarações citadas por Fernando Morais, não se sabe, o jornalista, em seu livro, não esclarece. Interpretar como “ironia” de Clóvis justificar a não extradição por razões humanitárias é, no mínimo, discutível. O trecho, de qualquer modo, ficou truncado, as conclusões não se baseiam em fonte primária, ou seja, em documento assinado de próprio punho, mas em declarações, não claramente identificadas à imprensa, atribuídas ao jurista.
O resultado do alarde em torno das alegadas declarações, repetidas vezes ecoado pela imprensa pátria após a publicação do livro de Fernando Morais, é que a obtusa participação de Clóvis Beviláqua no episódio conseguiu, assustadoramente, encarquilhar sua biografia e apagar, ainda mais, seus enormes feitos, ao longo de décadas, como consultor jurídico e especialista em Direito Internacional. Uma nódoa que tem o dom de ofuscar o brilho do jurista como internacionalista. E inclusive sua postura de democrata, que não se curvou ao Estado Novo, como teve a ocasião de provar diversas vezes, mediante manifestações escritas (assinadas de próprio punho e, portanto, fontes primárias para a pesquisa histórica) pela democracia e o Estado de Direito, em plena ditadura. A imagem que restou de Clóvis, lamentavelmente, é a de um jurista subserviente, integrado ao ideário autoritário de Vargas e colaborador do regime nazista.
Ainda que tenha cometido um erro – e um erro grave de apreciação –, Clóvis não merece que se jogue no lixo a sua biografia e a sua vasta e percuciente produção bibliográfica.
Vicente Ráo, ministro da Justiça de Getúlio Vargas, os ministros do Supremo Tribunal Federal que denegaram, quase por unanimidade, o habeas corpus impetrado pelo advogado de Olga, Heitor Lima, requerendo a suspensão da extradição, saíram todos ilesos (e solenemente esquecidos) do episódio. Clóvis carrega nas costas, sozinho, o estigma de malfeitor, em uma história ainda muito mal contada...
(*) Cássio Schubsky é editor, historiador e diretor editorial da Editora Lettera.doc
Revista Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2009

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