segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

DESAFIANDO O RIO-MAR - OPERAÇÃO TAPAJÓS

FORDLÂNDIA II

Hiram Reis e Silva, Santarém, PA


‘Há mais pessoas que desistem, do que pessoas que fracassam!’

(Henry Ford)

Henry Ford

Henry Ford nasceu em uma fazenda em Wayne County, perto de Greenfield, Michigan, em 30 de Julho de 1863, e faleceu em Dearborn, Michigan, a 7 de Abril de 1947. Seu pai, William Ford, nasceu na Irlanda e a mãe, Mary Litogot Ford, filha de imigrantes belgas, nasceu nos EUA. O interesse de Ford pelos motores teve início na fazenda de seu pai onde ele observava com interesse os equipamentos estudando o funcionamento das máquinas. Ford tinha aversão às tarefas agrícolas e almejava diminuir o trabalho manual através da mecanização.

Ford Motors Company

No dia 16 de junho de 1903, aliado a Alexander Y. Malcolmson, empresário de carvão de Detroit e a mais dez investidores, fundou a Ford Motor Company, com um capital de 150 mil dólares, sendo que 28 mil (valores da época) eram do próprio Ford. Ford investiu em inovações técnicas e de negócios, instituindo um sistema de franquias que criou concessionárias nas principais cidades dos EUA, e nas maiores cidades do planeta, consagrou o chamado “fordismo”, que nada mais é do que a aplicação do princípio da “linha de montagem”, que permitia fabricar um carro a cada 98 minutos. Ford não inventou a “linha de montagem”, ele próprio afirmava que teve a idéia de manter os trabalhadores no mesmo lugar, executando uma tarefa específica, ao observar uma “linha de desmontagem” nos matadouros de Chicago e Cincinnati, onde os açougueiros retalhavam as carcaças que passavam diante deles penduradas em ganchos. Também não foi dele a idéia de tornar as peças intercambiáveis, mas Ford foi o responsável pela aplicação destes dois princípios em uma fábrica transformando-a num sistema complexo de processos de sub-montagem cada vez mais integrados. Ford estabeleceu com seu carro recém-planejado um novo recorde de velocidade terrestre (147 km/h), em uma exposição sobre o gelo do Lago Saint Clair, percorrendo uma milha em 39,4 segundos.

Em 1914, maravilhou o mundo com o que ele denominava de “salário de motivação” (“wage motive”) passando a pagar cinco dólares por dia aos seus operários, mais que duplicando o salário da maioria dos trabalhadores. O resultado foi que os melhores profissionais de Detroit foram contratados pela Ford, aumentando a produtividade e minimizando os custos de treinamento. Aplicou, também, o uso da integração vertical que também provou ser bem sucedida na gigantesca fábrica da Ford, onde entravam matérias primas e de onde saiam veículos totalmente prontos. Ford produzia, na época, 1.200 automóveis por dia, e empregava mais de cem mil operários em suas fábricas.

Exposição Industrial Ford

(1)-A 1 de Outubro de 1908, Henry Ford apresentou o seu modelo Ford T, o Brasil foi chamado de "Ford de bigode" pois este carro apresentava duas alavancas opostas que formavam um bigode; (2)-1927-Modelo T foi interrompido em todo o mundo para receber o inovador Modelo A, em 1929 era o automóvael mais avendido no Brasil; (3)-Ford Mercury 1951; (4)-Ford Coupê 1941; (5)-Ford T-Bucket 1931; (6)-1954-Ford Thunderbird, um dos maiores clássicos do automobilismo esportivo americano, completou 56 anos de história, foi lançado em outubro de 1954; (7)-Em 1969-foi apresentado também o "LTD" (fabricação limitada), versão mais luxuosa do Galaxie, para o ano de 1970; (8)-1973 Ford Maverick GT8 302 V8

Em 1927, a General Motors (GM) oferecia aos seus clientes carros com dezenas de alternativas de cores e variadas opções de estofamento ao passo que os carros Ford só eram fabricados em verde, vermelho, azul e preto, ainda assim, um número maior do que nos anos anteriores, quando Ford afirmava que seus clientes poderiam ter os carros na cor que escolhessem, “desde que fosse preta”. Os usuários viviam uma época de prosperidade e graças a um crédito acessível tinham se tornado mais exigentes e buscavam modelos mais luxuosos. Forçado pela competitividade Ford decidiu suspender a fabricação do Modelo “T” em maio de 1927 jogando todos os seus trunfos no modelo “A” cujo primeiro carro foi montado em outubro do mesmo ano. Era uma tentativa de recuperar sua participação no mercado automobilístico.

A Exposição Industrial Ford, realizada, em janeiro de 1927, no Madison Square Garden, atraiu mais de um milhão de visitantes interessados em conhecer os diversos estilos do novo Modelo “A”, disponível em vários tipos de carrocerias e cores, e do “Lincoln Touring Car” que Ford havia adquirido seis anos antes com a intenção de entrar para o mercado de carros de luxo sem ter a necessidade de reconfigurar suas próprias fábricas. O resultado surpreendeu até mesmo aqueles que não acreditavam que a Ford conseguisse superar a crise motivada pela concorrência com a GM. A exposição exerceu um efeito catalisador que levou dez milhões de americanos a visitar as concessionárias Ford locais e a encomendar 700 mil unidades do Modelo “A”.

No dia 9 de janeiro de 1927, Henry Ford acompanhado de seu amigo Thomas Edison e de seu filho Edsel passeava pela Exposição assediado por inúmeros jornalistas. Mais que uma mostra de automóveis, a exposição pretendia fazer uma demonstração visual da operação das indústrias Ford, desde as matérias primas até o produto acabado. Ford anunciou, na oportunidade, que voaria até a Amazônia para inspecionar sua nova plantação de seringueiras.

Cartelização da borracha

A indústria automotiva dependia muito da borracha vulcanizada, pois, usava o látex processado não só nos pneus, mas também nas as mangueiras, válvulas, gaxetas e fios elétricos. Setenta por cento da borracha importada era utilizada somente para a produção de pneus e embora a quilometragem das estradas pavimentadas norte-americanas tivesse aumentado significativamente depois da I Guerra Mundial, diminuindo o desgaste dos pneus e o aperfeiçoamento técnico na sua manufatura tenha aumentado a vida média dos mesmos, para mais de seis vezes, a demanda havia saltado para cerca de cinqüenta milhões de unidades por ano.

O látex extraído das seringueiras asiáticas era monopólio inglês que mantinham o preço da borracha em alta, único insumo que Ford não exercia qualquer controle e pretendia alcançar a independência em relação aos fornecedores. Durante décadas as indústrias americanas haviam importado a borracha, sem grandes problemas, das colônias europeias holandesas, francesas, e sobretudo britânicas, do sudeste asiático. Quando os preços começaram a cair, em 1919, Winston Churchill, Secretário de Estado para as Colônias, aprovou uma proposta para regular a produção de borracha bruta a fim de assegurar que a oferta não ultrapassasse a demanda. O aumento na demanda da indústria automotiva americana pela borracha deu nova vida ao colonialismo europeu enfraquecido pela I Guerra Mundial. A receita da borracha ajudou Londres, Paris e Amsterdã a manter suas colônias e a pagar suas dívidas de guerra. O Secretário do Comércio Herbert Hoover, que mais tarde seria Presidente dos EUA, alertou aos empresários norte-americanos de que eles dependiam demais da “Europa Imperialista” e que poderiam ficar sujeitos a preços abusivos caso os holandeses e franceses se aliassem ao Cartel proposto pelos britânicos.

Em fevereiro de 1923, Firestone convocou, no Willard Hotel, em Washington, uma conferência nacional de fabricantes de borracha, de veículos automotores e de acessórios. Além de Henry Ford compareceram mais de duzentos empresários do setor que não se mostraram sensíveis às preocupações de Firestone e à sua ideia de criar a “American Cooperative Association” cujo objetivo seria estabelecer plantações de seringueira na América Latina. Outros esforços, sem sucesso, foram tentados e, em 1926, Ford, que não era um homem habituado a sociedades, resolveu produzir seu próprio látex determinando a seu secretário Ernest Liebold que descobrisse qual o melhor lugar para se cultivar a borracha. As pesquisas de Liebold levaram-no a concluir que a Hevea deveria ser cultivada na sua origem e isso significava na Amazônia. A escolha do Vale do Tapajós para implantação do projeto levou em conta de que de lá tinham sido colhidas as sementes pirateadas por Henry A. Wickham e a região ser considerada o berço das melhores árvores da seringa do planeta.

A Negociata de Villares

Henry Ford, em julho de 1925, depois do almoço, em sua casa em Dearborn, com Harvey Firestone, em que discutiram a proposta britânica de formação de um cartel, concedeu uma audiência ao Inspetor Consular do Brasil, em Nova York, diplomata José Custódio Alves de Lima. Lima fora autorizado pelo Governador Dionysio Bentes, do Pará, a oferecer “incentivos especiais” na esperança de que Ford instalasse seu projeto no Estado e ajudasse a reanimar a economia regional deprimida, desde 1910, com a perda do monopólio da borracha para as colônias asiáticas. Na oportunidade Ford quis saber qual era o salário pago aos seringueiros e Lima respondeu que era de 36 a 50 centavos de dólar por dia. O empresário respondeu “que pagaria até 5 dólares por dia para um bom trabalhador” e que sua maior preocupação não era o número de horas trabalhadas e sim a produtividade.

“Se Lima, muito citado na imprensa brasileira sobre o sucesso do encontro em Dearborn, era a face pública da campanha para atrair Henry Ford para a Amazônia, Jorge Dumont Villares tinha um papel mais furtivo. Villares pertencente a uma família de ricos cafeicultores e com boas ligações políticas, havia chegado a Belém, a capital do Estado do Pará, no início dos anos 1920. Apesar do colapso da economia da borracha, ainda havia dinheiro a ser ganho nos muitos esquemas criados para reanimar o comércio. Como sobrinho do famoso aviador Santos Dumont, o homem que, para os brasileiros, inventou o vôo a motor, mas teve o crédito roubado pelos irmãos Wright, Villares que gostava de ternos de linho e chapéus Panamá, era relativamente bem conhecido nos círculos da elite. Ele era alto, magro e um pouco inquieto, e era dissimulado. Pouco depois de sua chegada, ele começou a formar uma espécie de confederação de políticos, diplomatas e representantes da Ford, todos interessados em atrair Henry Ford para o Brasil.

O primeiro e mais importante aliado de Villares para fazer com que as coisas andassem foi William Schurz, que foi adido comercial de Washington no Rio, embora, para o aborrecimento do embaixador dos EUA, ele passasse a maior parte do tempo na Amazônia. ‘Gerações de homenzinhos têm mordiscado, como ratos, as bordas da Amazônia’, escreveu Schurz mais tarde em um livro sobre o Brasil – uma observação que poderia ser tomada como autobiográfica. Schurz havia ingressado no Departamento de Comércio no início da década de 1920, quando Herbert Hoover, o secretário, ampliava muito sua influência. Hoover triplicou orçamento do Departamento e acrescentou três mil funcionários, muitos deles adidos como Schurz, vendedores da crescente ambição econômica da América. Esses ‘cães de caça’ dos negócios americanos, como Hoover os chamava, tendiam a ignorar a geopolítica geral que tanto ocupava os diplomatas do Departamento de Estado. Em vez disso, faziam ‘lobby’, muitas vezes de forma muito agressiva, em favor de uma gama mais estreita de interesses específicos de corporações americanas – e também de si mesmos.

Schurz tinha sido membro da comissão organizada em 1923 pelo departamento do Comércio de Hoover, de estudo da possibilidade de reviver a produção da borracha na Amazônia como parte da campanha de Hoover para neutralizar o cartel proposto por Churchill. Era muito provável, pela experiência de Schurz na comissão, que ele tenha se dado conta das possibilidades de lucro, em especial depois da declaração de Dionysio Bentes, Governador do Pará, em 1925, de que ofereceria gratuitamente terras na floresta a qualquer pessoa disposta a cultivar seringueiras. Como diplomata dos EUA, Schurz não podia solicitar terras diretamente; assim, aliou-se a Villares, com a ideia de usar a cruzada de Hoover para vender sua concessão a uma corporação americana. Junto com Schurz e Villares estava Maurice Greite, um inglês que vivia em Belém e se auto-intitulava ‘capitão’, embora ninguém soubesse do quê. Antigo residente da Amazônia sempre em busca de uma grande chance fosse uma mina de chumbo ou um esquema de terras, Greite em pouco tempo tornou-se mais ônus do que um ativo para Villares. Mas prestou um serviço útil. Apresentou Villares a Antônio Castro, Prefeito de Belém, e ao Governador Bentes, dois homens cuja lealdade precisaria ser assegurada para que o plano tivesse possibilidade de sucesso. Em troca de uma parcela do dinheiro, ambos os governantes prometeram seu apoio. O Prefeito prometeu não se opor à transação e o Governador, em setembro de 1926, concedeu a Villares, Schurz e Greite uma opção sobre pouco mais de 10 milhões de hectares no baixo vale do Tapajós – um dos muitos lugares que os especialistas consideravam adequado para o cultivo de seringueiras em larga escala. Os três homens tinham três anos para desenvolver a propriedade ou vendê-la. Caso deixassem de fazer uma coisa ou outra perderiam sua opção e as terras reverteriam para o Estado.

Inicialmente Schurz tentou, da embaixada no Rio, interessar Harvey Firestone. Mas, quando este optou pela Libéria, ele voltou sua atenção para a Ford Motor Company, escrevendo cartas para Henry Ford e Ernest Liebold, seu secretário, exagerando as possibilidades da borracha na Amazônia. Como adido comercial, Schurz tinha acesso à pesquisa sobre a borracha realizada com recursos do governo americano, que ele repassou a Liebold antes que o Departamento do Comércio pudesse processá-la e colocá-la à disposição de outros possíveis investidores. Ao mesmo tempo, ele e Villares entraram em contato com dois homens, W. L. Reeves Blakeley e William McCullough, que Ford havia enviado a Belém depois de seu encontro com Lima para pesquisar locais em potencial para uma plantação de seringueiras. Não há evidências de que Blakeley recebeu dinheiro, mas documentos indicam que McCullough o fez. Villares prometeu lhe pagar US$18 mil por qualquer ajuda que pudesse dar para que o acordo fosse em frente.

Na Amazônia, Villares também começou a recrutar os serviços de John Minter, cônsul dos EUA em Belém. Neste caso, não foi oferecido nenhum dinheiro. Mas o ar conspiratório de Villares conseguia atrair confidentes. Cochichou a Minter que estavam em desenvolvimento planos para infectar as plantações de seringueiras do Sudeste Asiático com uma praga sul-americana, um fungo nativo da Amazônia que com frequência era letal para as seringueiras. Bastaria uma epidemia no Ceilão ou na Malásia, disse Villares ao diplomata americano, para devolver ao Brasil o domínio do mercado global. ‘Para bom entendedor, meia palavra basta’, disse Villares ao cônsul. Ele passava a Minter fragmentos de informações a respeito de suas negociações com corporações americanas, inclusive os contatos que havia feito com a Ford Motor Company, atraindo o diplomata para suas intrigas. Disse que tinha ‘plantado secretamente 500 mil mudas em terras devolutas adjacentes àquelas que Ford deverá assumir’, para que ele contasse com um estoque já pronto de Hevea e começasse a plantar tão logo iniciasse o projeto. A razão pela qual as mudas precisavam permanecer em segredo, disse Villares, era o fato de poderosos interesses locais estarem conspirando contra o fechamento do acordo. Em pouco tempo, Minter estava telegrafando para seus superiores no Departamento de Estado, dizendo-lhes que estava pondo seu escritório e seu pessoal a serviço de Villares em seus negócios com Ford. O passo seguinte de Villares, no fim do verão de 1926, foi viajar a Dearborn para levar sua proposta diretamente a Henry e Edsel Ford, tendo assegurado sua atenção provavelmente por intermédio de McCullough ou Blakely, com quem Villares fizera amizade.

Villares era um bajulador talentoso e, em seu encontro com pai e filho, oscilou entre o medo e a lisonja para defender seu ponto de vista. Apresentou a eles um mapa rascunhado da propriedade, que incluía duas cidadezinhas denominadas ‘Fordville’ e ‘Edselville’. Partindo do trabalhado preliminar de Schurz, pintou um quadro fantástico daquilo que poderia ser realizado na Amazônia, ‘a mais fértil e saudável região do mundo tropical’. O brasileiro elaborou um contrato nomeando-o executor do projeto e concedendo à empresa o direito irrestrito de extrair ouro, petróleo, madeira e até mesmo diamantes. Villares também prometeu a Ford que ele poderia construir hidrelétricas, importar e exportar qualquer material com isenção de impostos e tarifas e construir estradas, inclusive duas que subiriam 480 km em ambas as margens do Tapajós ‘para dentro das florestas virgens de seringueiras’ das cabeceiras do Rio, o que daria a Ford um monopólio completo sobre a produção de látex do vale. Ele disse a Henry e Edsel que preferia entregar as terras a um americano, mas caso não houvesse acordo poderia ser forçado a transferi-las a outros interessados antes que expirasse sua opção. Era doloroso, disse Villares a Ford, até mesmo ‘pensar que uma parte da minha pátria vá para as mãos de japoneses, britânicos ou alemães’. ‘O apelo foi ouvido’, disse Villares concluindo sua apresentação, ‘e a maior garantia de que o empreendimento será um sucesso é que o primeiro a responder ao apelo foi Ford. Ele nunca recua. Nunca fracassa’.

O encontro deixou Villares esperançoso. Do Cadillac Hotel em Detroit, ele escreveu ao seu colega conspirador Greite e pediu-lhe que fosse paciente: ‘Não diga nada’, pois as coisas estão indo bem em Dearborn. ‘Rasgue esta carta’, instruiu ele ao capitão.

Ford parecia fisgado. Contudo, Villares estava ansioso. Foi de Detroit para Nova York, onde escreveu outra carta, desta vez para Blakley. Se Ford não agisse depressa, contou ele ao aliado mais próximo da empresa, ‘logo alguém descobrirá’. ‘Quando você esteve aqui’, perguntou ele, ‘percebeu uma coisa curiosa: A fé que todos têm em Ford? A magia desse nome penetrou nos corações dos mais humildes e também no meu. Eles têm fé em Ford e eu também. Milhares esperam por sua vinda; ele virá’.

Ford permanecia indeciso, mas seu encontro com Villares levou-o a enviar ao Brasil Carl D. LaRue, botânico do campus de Ann Arbor da Universidade de Michigan, para ‘encontrar em algum lugar uma boa área para plantar seringueiras’. LaRue estivera uma vez na Amazônia, em 1923, chefiando a expedição patrocinada pelo Departamento de Comércio de Herbert Hoover para a busca de locais para a produção de borracha em longa escala, a mesma da qual participou o adido comercial William Schurz. Naquela viagem, o botânico cobriu um raio de mais de 40 mil km e suas descobertas, juntamente com aquelas de outras expedições, identificaram vários locais adequados espalhados às margens do Tapajós, um grande afluente do Amazonas que cruzava as terras de origem das seringueiras silvestres. Em grande parte tratava-se de terras públicas, que Ford poderia ter obtido diretamente por concessão governamental, com pouco ou nenhum custo. Mas desta vez LaRue não visitou nenhum dos locais anteriormente explorados; limitou-se a percorrer uma linha reta de 80 km ao longo da margem Leste do Tapajós, parte das terras para as quais Villares, Schurz e Greite tinham uma opção. Mais tarde, quando foram divulgados os detalhes do acordo – pelo qual Ford essencialmente comprou terras que provavelmente teria conseguido de graça –, começaram a circular boatos de que o professor de Michigan fazia parte da conspiração. LaRue negou as alegações, mas Ford não voltou a confiar nele. ‘Não pense que iríamos nos beneficiar usando-o’, foi o comentário escrito por Ford na margem da subseqüente oferta de LaRue para ajudar a colocar em operação a plantação de seringueiras.

(...) Em junho de 1927, delegou procurações a dois de seus funcionários, O. Z. Ide e W. L. Reeves Blakeley, e os enviou ao Brasil. Eles foram encarregados de negociar uma concessão de terras com o Governador do Estado do Pará, a jurisdição em que estava localizada a propriedade recomendada por LaRue, e a incorporação de uma empresa subsidiária pelas leis brasileiras para supervisionar a plantação. Ide e Blakeley, ambos com 37 anos de idade, e suas esposas viajaram até Nova York no final de junho. (...) Em Manhattam, os emissários de Dearborn foram conduzidos em um Lincoln pelo sr. Leahr, da filial, que os ajudou a obter seus vistos e a se prepararem para a partida no SS Cuthbert, da British Booth Line.

(...) Em 7 de julho, o Cuthbert entrou na baía de Marajó, uma das muitas embocaduras do Rio Amazonas, tão enorme que só viu terra no dia seguinte. (...) Mais adiante da água havia uma fileira da casas exportadoras, lojas e residências de comerciantes, atrás da qual, na rua Gaspar Viana, a Ford Motor Company abriria um escritório para coordenar a chegada de cargas de Dearborn e a contratação de trabalhadores. Na praia esperavam, para saudar a delegação da Ford, John Minter, o cônsul americano, e Gordon Pickerell, um revendedor local que havia acabado de se aposentar depois de 13 anos como cônsul dos EUA. Também estava presente Jorge Villares, a quem Blakeley cumprimentou cordialmente, fato que Ide achou estranho, uma vez que não se lembrava do parceiro ter mencionado qualquer contato que não fosse com Pickerell e Minter em sua viagem anterior. Blakeley fez as apresentações, mas de uma forma desajeitada, apenas murmurando o nome de Villarers.

(...) A despeito dessas maquinações ou, como Ide logo percebeu, por causa delas, as discussões com os funcionários do governo brasileiro transcorreram sem problemas. Villares, Blakeley e Ide se reuniram com o governador Dionysio Bentes – homem que havia concedido a Villares, Schurz e Greite a opção para as terras em questão – para começar as negociações. Não havia muito o que negociar. Curvando-se, assentindo e sorrindo para superar a barreira do idioma, Bentes disse aos homens que eles poderiam ter qualquer coisa que a Ford desejasse. A concessão exigia a aprovação do legislativo estadual, mas isso garantiu ele, era mera formalidade.

(...) Uma das primeiras coisas que eles precisavam fazer era elaborar uma descrição legal do imóvel designado. Para isso foram falar com Antônio Castro, Prefeito de Belém, que Ide achou ‘parecido com um macaco’. Castro tinha a promessa de Villares de algum dinheiro, mas ficou feliz em oferecer seus serviços de engenheiro civil por uma taxa adicional.

Ide não conhecia a propriedade – ficava a seis dias de barco de Belém. Mas no seu encontro com Castro desdobrou um mapa do vale do Tapajós e com um lápis preto traçou uma linha de 120 quilômetros Rio acima, depois uma de uns outros 120 terra adentro e outra paralela à primeira, finalmente voltando ao ponto de partida. Um total de 14.562 quilômetros quadrados. É um ‘montão de terra’, exclamou o Prefeito, surpreso. ‘Não é problema seu’, retrucou Ide. ‘Quero apenas que você nos de uma descrição’.

O passo seguinte era uma reunião com Samuel McDowell, o advogado do revendedor Ford local, para elaborar os termos do contrato. Num bloco de papel amarelo, Ide, Blakeley e Villares escreveram ‘exatamente o que queriam na lei que iria ao legislativo’. Tinham somente instruções vagas de Dearborn; então pediram tudo o que poderiam pensar; direito de exploração da madeira e reservas minerais, direito de construção de uma ferrovia e pistas de pouso, de erigir qualquer tipo de edificação sem a supervisão do governo, abrir bancos, organizar uma força policial privada, dirigir escolas, extrair energia de quedas d’água e ‘represar o Rio de qualquer maneira que necessitarmos’. A empresa foi isenta de impostos de exportação, não apenas sobre borracha e látex, mas também sobre quaisquer produtos e recursos que a empresa quisesse enviar para o exterior: ‘peles e couros, óleo, sementes, madeira e outros produtos e artigos de qualquer natureza’. ‘Pensamos em muitas coisas das quais nunca havíamos ouvido falar’, disse Ide, e, ‘à medida que avançávamos, nós as íamos adicionando’.

Em troca da generosidade de Bentes, os negociadores da Ford obrigaram a empresa a apenas plantar 400 hectares de seringueiras no período de um ano. Eles fizeram isso para preservar a ‘simetria e o equilíbrio’ do contrato e dar uma demonstração de boa-fé de que a Ford pretendia realmente cultivar seringueiras e não apenas minerar a terra em busca de ouro ou fazer perfurações em busca de petróleo. Blakeley supunha que seria nomeado gerente da propriedade e que poderia facilmente limpar e plantar 1.200 hectares em poucos meses. Então McDowell ‘colocou o contrato na linguagem correta’ e mandou que fosse traduzido para o português. Quando a equipe passou-o ao governador Bentes, esperava que ele recusasse algumas solicitações. Mas ele apresentou a lei ao legislativo sem qualquer comentário, com tudo aquilo que tinha sido pedido pela equipe da Ford. ‘Muito mais’, escreveu Ide, ‘do que esperávamos obter’.

(...) Bentes era homem de palavra e, em 30 de setembro de 1927, o legislativo estadual ratificou a concessão exatamente como havia sido composta pelos homens de Ford.

(...) Resumindo, o Estado do Pará cedeu a Ford pouco mais de um milhão de hectares, um pouco menos que aquilo que o advogado de Dearborn havia delineado no mapa, mas, sendo quase do tamanho do Estado de Connecticut, um vasto território. Metade dele provinha da reivindicação de Villares, pela qual a Ford deveria pagar US$125 mil, uma ninharia considerando-se a enorme riqueza da família. A outra metade era de terras públicas, que Ford recebeu de graça”. (GRANDIN)

Villares lucrou na negociata 125 mil dólares em terras que o governo paraense pretendia doar à empresa americana. O projeto começara mal e antes de Ford partir para a concretização de seu grande projeto amazônico foi informado de que o cartel da borracha estava desmoronando, porque os holandeses não haviam aderido a ele, mesmo assim o destemido empresário manteve sua decisão. Fordlândia fruto de um golpe arquitetado por um corrupto brasileiro, seria implantada em um terreno montanhoso e impróprio para seringueiras, próxima a cidade de Santarém, no Estado do Pará, à margem direita do Rio Tapajós, na bacia do Rio Cupari, nos municípios de Aveiro e Itaituba, numa comunidade denominada Boa Vista.

Fordlândia

“O primeiro cuidado dos engenheiros encarregados foi lançar as primeiras fundações, tendo-se agasalhados parte deles na antiga casa de Boa Vista, que foi remodelada. Depois mandaram construir o Barracão Central que serve de escritório, consultório médico e dentário, farmácia, armazém de mercadorias, refeitório, etc., iluminado a luz elétrica, com telefone e ventiladores elétricos”. (Jacob Cohen - Fordlândia)

“A chegada dos americanos ao Tapajós causou uma verdadeira revolução em todo o Rio. Aqueles homens muito brancos, louros, de olhos azuis, falando uma língua diferente era a mesma coisa que a Terra fosse invadida por seres de outro planeta”. (Eymar Franco - O Tapajós que eu vi)

Blakeley e Villares, agora membro da equipe da Ford, montaram um acampamento próximo à vila de Boa Vista. O local permitiria, futuramente, a construção de um futuro cais sem a necessidade de dragagem do Rio e o terreno alto levava a supor que estariam livres dos mosquitos e outros insetos. Depois de resolverem os problemas legais de desapropriação de 125 famílias que moravam na área da concessão, além de alguns grupos indígenas esparsos, deram início ao desmatamento. O empreendimento trazia consigo um alento de esperança para o desenvolvimento daquela região tão esquecida baseado na admiração que todos nutriam pela indústria americana e do aporte de capital que adviria. Em contrapartida havia certa desconfiança em relação às reais intenções de Washington, pois, enquanto Ford arquitetava seu megalômano Projeto, os fuzileiros navais americanos invadiam e ocupavam a Nicarágua, o Haiti e a Republica Dominicana. Ontem, como hoje, os políticos entreguistas só pensam nas benesses que podem auferir sem considerar os prejuízos que suas ações podem acarretar para a soberania nacional.

“O fato de Ford ser obrigado a plantar seringueiras em somente 400 hectares, dos mais de um milhão concedido, levou algumas pessoas a sugerir que o ‘ianque milionário’ estava na realidade interessado não em látex, mas em petróleo, ouro e influência política. Grande parte destas críticas iniciais era, na verdade, um ataque ao homem que dera a concessão, o Governador Dionysio Bentes, um poderoso político local com muitos amigos, alguns inimigos e aspirações políticas mais altas. Foram criticados o sigilo sob o qual a concessão havia sido negociada e as generosas isenções fiscais. Foi observado que o banco autônomo, as escolas e a força policial da propriedade violavam a soberania do Brasil. Era, diziam, como se Ford tivesse o direito de governar a Fordlândia como um estado separado”. (GRANDIN)

Blakeley havia se instalado, com certo conforto, em uma velha fazenda nos arredores de Boa Vista, seus capatazes em um barracão improvisado e os trabalhadores dormiam em redes, ao relento, ou em improvisados tapiris. Blakeley e Villares haviam iniciado, precariamente, os trabalhos de desmatamento na época das chuvas e precisavam usar grande quantidade de querosene para queimar a mata derrubada. Alguns incêndios duravam dias.

“Aquilo me aterrorizou. Parecia que o mundo todo estava sendo consumido pelas chamas. Uma grande quantidade de fumaça subia ao céu, cobrindo o sol e tornando-o vermelho. Toda a fumaça e as cinzas flutuavam pela paisagem, tornando-a extremamente assustadora e opressiva. Estávamos a três quilômetros de distância, do outro lado do Rio, mas mesmo assim cinzas e folhas em chamas caíam sobre nossa casa”. (Eimar Franco)

Os igarapés próximos haviam sido transformados em depósitos de lixo onde os insetos proliferavam. Blakeley foi, finalmente, dispensado e sua partida para Dearborn provocou uma crise de autoridade que gerou uma série de desavenças no acampamento. A incompetência dos encarregados, a falta de equipamento adequado, as péssimas condições de trabalho, o ataque de animais peçonhentos, as doenças e a alimentação deteriorada culminaram com uma revolta e os trabalhadores perseguiram os americanos, armados de facões e machados, que se refugiaram na mata. A calma foi restabelecida e Villares tentou convencer aos americanos que o mérito era seu, mas os americanos estavam cada vez mais convencidos que Villares era um grande e incompetente falastrão. Em 1929, a imprensa nacional trouxe a história dos subornos a público resultando no afastamento definitivo do sobrinho de Santos Dumont da Ford Company.

Ford enviou os navios Lake Ormoc e o Lake Farge, embarcações de setenta e cinco metros de comprimento por quinze de largura, para o Pará. O Lake Ormoc serviria de base de operações durante a construção de Fordlândia e estava equipado com hospital, laboratório, frigoríficos, lavanderia, biblioteca, sala de estar e camarotes. O Farge, transformado em barcaça, foi usado para transportar víveres, uma escavadeira, geradores, tratores, uma britadeira, máquina de fazer gelo, equipamento hospitalar, betoneiras, uma serraria, bate-estacas, destocadores, rebocadores, lanchas, locomotiva, trilhos, prédios pré-fabricados, material de construção, de escritório e mudas de seringueira. Ao chegarem à foz do Tapajós os comandantes foram informados de que o Rio tinha somente noventa centímetros de calado, na época da seca, impedindo que os navios chegassem ao porto de Fordlândia. O capitão Einar Oxholm, que havia assumido o comando na ocasião da chegada dos navios ao Brasil, decidiu, então, transportar o material em balsas alugadas. A transferência atrasou tendo em vista que os guindastes necessários para realizar a operação tinham sido carregados primeiro e estavam sob todo o resto da carga dos navios. A propalada ‘eficiência’ americana mais uma vez dava mostras de sua fragilidade tanto sobre a omissão de informações importantes sobre as condições de navegabilidade do Rio como no carregamento dos navios. Oxholm era um homem honesto, mas não tinha qualquer experiência em botânica ou gerência.

Os operários orientados, agora, por Oxholm, iniciaram a construção da cidade que em pouco tempo se transformaria na terceira mais importante cidade da Amazônia. Uma das embarcações foi preparada para suprir temporariamente a aldeia de energia e servir de hospital. Grande parte da área foi ocupada pelos seringais, divididos de maneira extremamente regular. As condições de trabalho e o salário superior ao de outras cidades da região, pago quinzenalmente em espécie, provocou uma verdadeira corrida no posto de recrutamento da empresa. A mídia convocava trabalhadores, mas metade deles não passava no exame médico. Mas apesar disso a rotatividade dos milhares de empregados contratados por Oxholm era muito grande forçando os gerentes e capatazes a perder muito tempo no treinamento dos novos funcionários. Os trabalhadores assim que juntavam algum dinheiro voltavam para suas famílias e suas plantações.

“Oxholm tinha problemas para manter aceso o cordão de lâmpadas penduradas sobre as poucas ruas sujas que ele havia tirado da selva. Equipamentos e ferramentas descarregados do Ormoc e do Farge estavam espalhados pelo chão, e não houve nenhuma tentativa de fazer um inventário ou estabelecer um sistema de inspeção. Os roubos eram desenfreados. Oxholm não tinha construído uma doca permanente ou um edifício central de recebimento; assim, os materiais adicionais enviados de Belém ou Dearborn se amontoavam na margem do rio, igualmente sem supervisão. Sacos de cimento jaziam na margem ‘duros como pedra’.

As árvores tinham sido cortadas na margem do Rio, mas os arbustos permaneciam intocados. Nos poucos mais de 400 hectares desmatados e queimados para plantar, tocos carbonizados que Oxholm não se deu ao trabalho de arrancar se misturavam, como túmulos escuros, às mudas de seringueira que cresciam, fazendo com que a plantação parecesse um cemitério. O Capitão havia construído algumas casas, mas em quantidade insuficiente para atender às necessidades dos trabalhadores ou dos gerentes e suas famílias. O edifício do hospital tinha ‘afundado sobre seus alicerces e apresentava muitas rachaduras’.

(...) Os madeireiros descobriram em pouco tempo que as árvores potencialmente lucrativas nunca estavam grupadas, mas espalhadas por toda a floresta. E a floresta era tão densa de árvores, trepadeiras e cipós que teriam de ser cortadas quatro ou cinco árvores antes de ser aberta uma clareira para uma queda livre. ‘Custa caro demais’, lembrou um madeireiro, ‘ir aqui e ali pela floresta para obter uma espécie de madeira que valha a pena. Não se consegue andar três metros nesta selva sem ter de abrir seu próprio caminho. Isto é uma massa de árvores e cipós’.

(...) Oxholm começou a comprar madeira para suas necessidades de construção, o queria dizer que a plantação não só estava deixando de gerar receita com madeira, mas também perdia dinheiro para comprá-la. (...) A Ford Motor Company podia estar trazendo para a Amazônia as técnicas de produção industrial em massa, sincronizada e centralizada, mas, ao menos por algum tempo, baseou-se em lenhadores na selva usando pouco mais que machados para suprir sua futura plantação com madeira”. (GRANDIN)

Aos trancos e barrancos a cidade foi crescendo e a enorme caixa d’água de 50 metros de altura e com capacidade de 570 mil litros, símbolo da presença do Ford na Amazônia, foi colocada em ponto estratégico de onde pudesse ser vista por todos que chegassem à Fordlândia. No final de 1929, tinham completado a limpeza e o plantio de 400 hectares, bem aquém da especificada pelos administradores da Companhia Ford Industrial do Brasil. Nos dois anos que se sucederam, mais 900 hectares foram desmatados. Apesar disso as coisas evoluíam ainda que lentamente. A cidade possuía o melhor sistema de saúde da região e as casas dos administradores, na Vila Americana, jardins cuidados, gramados para golfe, quadras de tênis, piscina, campos de futebol, clube e cinema.

A Revolução ‘Quebra-panelas’

No final de 1930, Fordlândia parecia ter superado os principais óbices, a maior parte das instalações tinha sido concluída, a limpeza de novas áreas estava em andamento, estradas construídas e a plantação de mudas de seringueiras prosseguiam. No entanto os trabalhadores brasileiros não estavam satisfeitos com o regime espartano imposto pelos capatazes americanos o que provocava uma enorme rotatividade entre os trabalhadores. A pontualidade, a proibição da ingestão de bebidas alcoólicas no perímetro da empresa, a alimentação tipicamente norte-americana, e a sujeição a uma forma de gestão a que não estavam habituados, gerava conflitos e diminuía a produtividade. Os brasileiros acostumados a organizar sua jornada de trabalho, de acordo com o Sol e seguindo o ritmo determinado pelos períodos de chuva ou estiagem tinham dificuldade de se habituar aos horários ditados por uma estridente sirene e o controle rígido dos cartões de ponto. Em cada detalhe ficava clara a falta de compreensão entre os dois mundos. Os trabalhadores solteiros foram proibidos de sair da propriedade para freqüentar bares e bordéis. Em Fordlândia era vedado o uso de bebidas alcoólicas, a “lei seca” fora exportada para a Amazônia. O jeitinho brasileiro incrementado pelo repentino influxo de dinheiro deu origem, ao estabelecimento, nas cercanias da cidade “americana”, de bares, casas de jogos e bordéis. Os solteiros de Fordlândia usavam de todo o tipo de artifício para contrabandear bebidas e dar uma “fugida” até a “ilha dos inocentes” onde encontravam bebidas e prostitutas vindas de Santarém e de Belém.

Não tardou para que a insatisfação com as normas americanas provocasse uma grande confusão. O conflito teve início no novo refeitório, uma estrutura de teto baixo, construída de metal, piche e amianto, mal ventilada que se assemelhava a um verdadeiro forno. Contrariando o acordado na ocasião do contrato os administradores decidiram que os operários teriam de pagar pelas refeições cuja dieta, estabelecida pelo próprio Ford, era constituída de farinha de aveia e pêssegos enlatados para o desjejum e espinafre enlatado, arroz e trigo integral para o jantar. A espera na fila era demorada tendo em vista que os funcionários do escritório tinham de registrar o número dos distintivos dos funcionários.

“Os cozinheiros tinham problemas para manter o fluxo de comida e os escriturários levavam tempo demais para anotar o número dos distintivos. Lá fora, os trabalhadores se empurravam, tentando entrar. Dentro, aqueles que esperavam pela comida se juntavam em torno dos atribulados servidores, que não conseguiam colocar o arroz com peixe nos pratos com rapidez suficiente. Foi então que Manuel Caetano de Jesus, um pedreiro de 35 anos do estado do Rio Grande do Norte, forçou sua entrada no refeitório e enfrentou. (...) Ostenfeld mandou Jesus voltar para a multidão e disse: ‘Tenho feito tudo por você; agora você pode fazer o resto’.

(...) A reação foi furiosa, lembrou um observador, como ‘atear fogo a gasolina’. O ‘terrível barulho’ de panelas, copos, pratos, pias, mesas, cadeiras sendo quebradas serviu de alarme, chamando mais homens para o refeitório, armados de facas, pedras, canos, martelos, facões e porretes. Ostenfeld, juntamente com Coleman, que havia presenciado a cena sem saber nada de português, pulou em um caminhão para fugir.

(...) Com Ostenfeld em fuga, a multidão ficou enlouquecida. Depois de demolir o refeitório, destruíram ‘tudo que pudesse ser quebrado que estivesse no seu caminho, o que os levou ao prédio do escritório, à usina de força, à serraria, à garagem, à estação de rádio e ao prédio da recepção’. Cortaram as luzes do resto da plantação, quebraram as janelas, atiraram uma carga de caminhão de carne no Rio e inutilizaram medidores de pressão. Um grupo de homens tentou arrancar os pilares do píer, enquanto outros atearam fogo à oficina, queimaram arquivos da empresa e saquearam o depósito. Em seguida, os desordeiros voltaram os olhos para as coisas mais intimamente associadas a Ford, destruindo todos os caminhões, tratores e carros da plantação. Pára-brisas e faróis foram espatifados, tanques de gasolina perfurados e pneus cortados. Vários caminhões foram empurrados para dentro de valas e pelo menos um foi jogado no Tapajós. Depois eles se voltaram para os relógios de ponto e os despedaçaram.

(...) Ladeado por soldados brasileiros armados, Kennedy reuniu os trabalhadores da plantação e lhes pagou ‘por todo o tempo até 22 de dezembro’. Em seguida demitiu toda a força de trabalho, com exceção de umas poucas centenas de homens.

Com a Fordlândia em ruínas e danos estimados em mais de 25 mil dólares, ele aguardou que Dearborn lhe dissesse o que fazer”. (GRANDIN)

Fracasso

A comercialização de madeira nobre, das áreas desmatadas, inicialmente, reduziu, o ritmo da limpeza das áreas. A madeira excedente que deveria ser exportada para a Europa e Estados Unidos, depois de ser beneficiada na maior serraria instalada na América Latina foi considerada de aproveitamento caro demais e os administradores optaram pela compra de toras extraídas da mata pelos ribeirinhos. A falta de critério técnico na escolha da área com topografia montanhosa e solo pobre e pedregoso dificultavam o cultivo mecanizado, elevando o custo de implantação do seringal. A despreocupação em relação ao setor agrícola era patente se observarmos a relação dos técnicos que vieram, em 1927, para a implantação do Projeto, haviam engenheiros, médicos, contabilistas, eletricistas, desenhistas, mas nenhum agrônomo, botânico ou fitotecnista fazia parte da equipe inicial. Os gerentes da Ford desconheciam os procedimentos elementares para a plantação de seringueiras, o plantio muito próximo das mudas, a umidade elevada, facilitou a disseminação das pragas agrícolas e principalmente do seu maior inimigo o “Mal das Folhas”, doença causada pelo fungo Microcyclus ulei. Estudos anteriores à implantação de Fordlândia indicavam que a floresta era capaz de proteger a árvore dessa praga. Isso porque a distância entre uma seringueira e outra diminuía a intensidade do ataque. Além da topografia e do clima, Fordlândia estava a quatro dias de barco de Belém, e no período da estação seca o Rio Tapajós baixa o nível de suas águas, não permitindo a entrada ou saída de grandes navios até o porto da Companhia.

Belterra

Só em 1932, depois do fracasso da baixa produtividade, a companhia decidiu contratar um especialista no cultivo de borracha o botânico James R. Weir, que havia trabalhado na American Rubber Mission. James reportou em seu relatório inicial uma série de omissões em aspectos elementares de gestão agrícola, e sugeriu como medida de urgência a importação do Sudeste Asiático, de clones de alta produtividade garantida e sugeriu a troca da área de Fordlândia por uma nova área, de 281 mil hectares, em Belterra, a 48 quilômetros de Santarém e que permitia a navegação regular de navios de grande calado durante todo o ano. Em Belterra o terreno era mais bem drenado, mais ventilado e menos úmido – condições desfavoráveis à propagação do “Mal-das-folhas”. Seis anos depois de ter chegado a Fordlândia, a Companhia reiniciava do zero seu projeto de produzir borracha na Amazônia.

“Weir ensinou o pessoal a fazer enxertos da forma correta. Mas o verdadeiro problema, disse o patologista, era que a Fordlândia não tinha espécimes seguros de onde tirar enxertos. Assim Edsel concordou com o pedido de Weir de viajar ao sudeste da Ásia, para Sumatra e Malásia, a fim de encontrar espécimes garantidos. Weir partiu, em junho de 1933, e obteve rapidamente 2.046 troncos enxertados de uma seleção garantida de árvores de alto rendimento. Embalados em serragem esterilizada, eles deixaram Cingapura no fim de dezembro, cruzaram o oceano Índico, passaram pelo Canal de Suez no início de 1934, atravessaram o Mediterrâneo e o Atlântico e subiram o Amazonas”. (GRANDIN)

Em 1934, chegaram os 53 clones selecionados por Weir. Apesar da melhor localização, salubridade e seleção das mudas o seringal também foi atacado pelo “Mal das Folhas”. Mas graças à utilização de práticas de manejo, seleção de sementes, emprego de mudas mais resistentes, enxertia de copa e controle com fungicidas, permitiram que o seringal passasse a conviver com o Microcyclus. Em 1941, as primeiras seringueiras plantadas em Belterra começaram a ser exploradas, mas a produtividade era extremamente baixa e os trabalhadores continuavam reclamando da alimentação e das normas americanas. Uma vila vizinha fazia o papel de “ilha dos inocentes.

Fim da Segunda Guerra Mundial

O surgimento de novas tecnologias que utilizavam os derivados do petróleo para a fabricação de pneus inviabilizou totalmente a desastrosa experiência de Ford na Amazônia tendo como resultado um prejuízo de mais de vinte milhões de dólares.

“Com o fim da Segunda Guerra Mundial, muita coisa havia mudado. O principal – e determinante – fator para o fim do sonho de Ford no Brasil foi o surgimento da borracha sintética, que passou a ser largamente produzida em países como Japão, Alemanha e Rússia e que tornou a borracha natural menos interessante. Além disso, a idéia de terceirização surgia e já não era mais necessário se preocupar com o todo da produção de um automóvel. Em 1945, Henry Ford, sem nunca ter pisado em suas terras brasileiras, resolveu deixar de lado a Amazônia e vendeu por 250 mil dólares as cidades ao governo brasileiro, com tudo o que restava nelas. Hoje, Fordlândia está praticamente abandonada, tomada pelo mato. Belterra, pela proximidade com Santarém, tornou-se um município um tanto maior, com cerca de 17 mil habitantes”. (Maria Fernanda Ziegler)

A retirada

“Foram dezoito anos em que a Companhia exerceu os direitos de concessão de uso de um milhão de hectares na Amazônia, quando resolveu se retirar ‘entregando’ terras e benfeitorias ao Governo Brasileiro. Pelo Decreto Lei 8.440 de 24 de dezembro de 1945, o Governo Federal estabeleceu normas para a aquisição do acervo da Companhia Ford Industrial do Brasil, operação que se efetivou através do Banco de Credito da Borracha S.A, atual Banco da Amazônia, pagando por ele o preço simbólico de cinco milhões de cruzeiros (250 mil dólares). Segundo Warren Dean, valor que a empresa devia a seus trabalhadores de acordo com as leis brasileiras relativas ao aviso prévio. Segundo estimativas, as duas plantações custaram à Companhia Ford um investimento de mais de vinte milhões de dólares. Por esse valor simbólico, o Governo Federal recebeu seis escolas (quatro em Belterra e duas em Fordlândia), dois hospitais, patrulhas sanitárias, captação, tratamento e distribuição de água nas duas cidades, usinas de força, mais de 70 quilômetros de estradas bem conservadas; dois portos; estação de rádio e telefonia; duas mil casas para trabalhadores; trinta galpões; centros de análise de doenças e autópsias; duas unidades de beneficiamento de látex; vilas de casas para a administração; departamento de pesquisa e análise de solo. Além de mais de cinco milhões de seringueiras plantadas: 1.900.000 em Fordlândia e 3.200.000 em Belterra”. (Cristovam Sena)

Fontes: FRANCO E. O Tapajós que eu vi. Santarém: Editora ICBS, 1998.

GRANDIM, Greg. Fordlândia: Ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

SENA, Cristovam. Fordlândia: Breve relato da presença americana na Amazônia.

Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA); Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS); Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB); Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS); Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.

Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br

E–mail: hiramrs@terra.com.br

Imagens da Internet - fotoformatação (PVeiga).

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