domingo, 15 de julho de 2012

ANÁLISE DE DA VINCI, SEGUNDO REFERÊNCIAS PSICANALÍTICAS


 Por Igor Enkim
Introdução
O recente sucesso do romance que carrega seu nome reacende a polêmica sobre o Gênio e o Homem da Renascença. Durante o período de sua vida, Leonardo já tinha este poder de levantar polêmicas, e não à toa, já que tinha capacidades raríssimas. Esta figura excepcional exerce atração por sua genialidade e pioneirismo, e na mesma intensidade, pelo mistério que cerca sua vida, já que pouco se sabe de concreto a respeito do que pensava e o que sentia, a não ser por pequenas notas encontradas em uma espécie de diário codificado. A figura de Leonardo está presente em diversos mitos, como associações com seitas secretas, ou interpretações místicas a respeito de suas obras. Como se para um homem realizar grandes feitos, obrigatoriamente ele devesse ser portador de alguma vantagem que para nós é oculta, fato esse que colabora por gerar especulações falsas.
Sob o olhar de Freud e da Psicanálise, analisamos Leonardo “o homem” e sua vida, e com grande choque nos deparamos com uma história muito diferente da que nos é passada.
A obra Leda, de Da Vinci, foi escolhida entre diversas outras, por oferecer consistentes interpretações da vida de Leonardo, de acordo com a teoria psicanalítica e a análise de Freud sobre o autor. Uma curiosidade sobre este quadro é que é um dos únicos “nús” de toda obra de conhecida de Da Vinci, senão o único. Assim como o mistério acerca de Leonardo, esta obra também está envolta em névoa, e uma história particularmente controversa faz com que os estudiosos removam esta pintura do conjunto de obras do Mestre. A história conta que Leda é uma obra inacabada de Leonardo, que se perdeu, hoje apenas existindo reproduções da pintura feitas por discípulos de Da Vinci.  Por isso encontra-se mais de uma Leda. Existem aqueles que dizem ser a obra Leda original a pintura onde há dois infantes; outros afirmam ser ela a pintura onde há quatro infantes, nascidos de dois ovos. A primeira pintura teria sido encontrada na casa de Leonardo, por um de seus pupilos, Giacomo Salai, para quem Da Vinci teria deixado o conjunto de todas suas pinturas, falecendo 9 dias depois, em 1519. Salai então a finalizaria como “obra póstuma”.
É importante adicionar um breve trecho da história da relação de Leonardo com Giacomo Salai: adotado aos 10 anos por Leonardo, por volta de 1500, atribui-se a ele o papel de aprendiz, ou filho, ou servo (alguns arriscam dizer que foi também um amante), ou até mesmo um importante modelo para algumas de suas obras como, por exemplo, o Retrato de um homem velho e um jovem, João Batista e até mesmo Um Apostolo. Salai é um apelido para “pequeno demônio” e constam suas peripécias no diário codificado de Da Vinci. 
A tecnologia recente permitiu descobrir parte do mistério a respeito do quadro em questão. Análises de raio-X mostram que por baixo da Leda com dois meninos existe a configuração original do mito, os quatro filhos de Leda. Então, por consequência, sabemos que alguém pintou propositadamente por sobre o esboço de Leonardo uma imagem incorreta do mito.
Descrição da Obra
Uma mulher nua está em pé, com a cabeça abaixada, olhando para duas (ou quatro) figuras infantis. Parece sorrir, e  abraça um cisne. O cisne, ao lado dela, olha para a mulher, com as asas abertas. Uma das asas parece abraçar a mulher. Os infantes brincam ao lado de Leda. Eles retribuem seus olhares a ela, dando a entender que são sua prole.
Esta obra de Leonardo diz respeito a um mito da Grécia Antiga, no qual o deus Zeus se apaixona por Leda, enquanto esta se banha em um rio. Zeus assume a forma de um cisne, seduz a jovem, e ela o coloca no colo e o acaricia. Na mesma noite, ela deita-se com seu marido, Tíndaro, rei de Esparta. No mito grego, Leda dá à luz a dois ovos. Em um deles estão Helena de Tróia e Castor (como sendo filhos de Tíndaro, a parte mortal); do outro ovo nascem Pólux e Clitemnestra, filhos de Zeus, imortais.
Análise
Segundo a teoria psicanalítica e a análise de Freud, os artistas escolhem para suas obras imagens que são representações de seus impulsos mais secretos e inconscientes. Podemos identificar essa presença de impulsos inconscientes na obra de Leonardo principalmente quando ele imagens femininas que supostamente lhe foram importantes durante a vida. Segundo conta a história, Leonardo tem um encontro final com sua mãe antes da morte da mesma, fato quer determinou o conteúdo de suas obras posteriores, a começar pela famosa Monalisa, que seria um reavivar de toda história de sua infância ao lado de sua mãe. Suas obras posteriores retratam o que Freud chama de “perseverança”, atitude que revela a importância afetiva de um dado acontecimento. Na obra Leda, uma de suas últimas, devemos também olhar sob este aspecto, levando em conta que Leonardo calculava meticulosamente a posição das figuras de suas pinturas: pode-se deduzir que ela seja uma representação importante de uma mulher central em sua vida, pois ocupa o centro do foco do quadro. A partir dessa hipótese somos levados naturalmente a concluir que esta obra é de grande valia psicanalítica.
Tendo em mãos a informação de que Leonardo era filho ilegítimo de um “nobre” tabelião com uma camponesa, ganha mais força uma tentativa de análise sobre esta imagem. Vamos levar nossa atenção à figura feminina, Leda. Ela transmite através de seu sorriso claramente uma atitude maternal. Seu sorriso passa o sentimento de uma mãe que, com felicidade e amor, olha seus filhos enquanto brincam. Seria uma evolução do próprio sorriso de Monalisa, agora com ares mais definidos, como se o próprio sentimento que Leonardo carregava por sua saudosa mãe tivesse sido refinado com o tempo. Leda está nua: o único nú de toda sua obra (inconscientemente) retrata sua mãe, um reflexo inegável de seus sentimentos eróticos primitivos por esta mãe que, graciosa e fortemente desejada, mas inalcançável, determinou seu destino para sempre. E porque não? Agora já no fim de sua vida, escapa-lhe o controle de suas repressões, encontrando sua expressão nesta pintura.
Leda está de braços envoltos no pescoço do cisne que é Zeus disfarçado. O cisne por sua vez, a acolhe com sua grande asa. Podemos encontrar um paralelo na imagem com a descrição do pai de Leonardo, tido como um homem de grande energia, próspero, com 4 casamentos e pai de 11 filhos e duas filhas. Muito podemos revelar ao assumirmos três fatos relevantes. Primeiro, que o tabelião esteve ausente durante a primeira infância de Leonardo, levando este a desenvolver uma relação especial com sua mãe. Desta forma, o cisne/deus, que é seu pai, não tem as obrigações de um pai comum: ele é ausente simplesmente por ser um deus. Qual seria o nível de identificação de Leonardo com este fato? Na época do mito grego, da união de uma mulher mortal com um Deus, se origina uma criança dotada de “poderes especiais”: era comum a crença nesta época de que homens excepcionais vinham ao mundo desta forma. Da Vinci, na sua época já reconhecido como gênio, tinha clara percepção deste fato.
Para confirmar esta identificação inconsciente com o mito, analisemos outros aspectos. Um segundo ponto é que seu pai, além de cortejar a pobre camponesa, anos mais tarde toma-lhe o filho, e o leva para morar em sua casa para satisfazer o desejo de ter um herdeiro, já que sua esposa (madrasta de Leonardo) era infértil. Ou seja, um homem que tem muito poder, forte o bastante para romper a relação de seu filho com sua mãe, segundo seus desejos.  O terceiro ponto é justamente a imagem que se forma a respeito deste pai e os desejos de superação do mesmo. Neste caso, pode se assumir que tal seria um feito impossível, pois o cisne, seu pai, é um deus todo poderoso, Zeus, rei do Olimpo. Na figura observamos o enorme pescoço do cisne, um claro símbolo fálico, ao qual Leda, sua mãe inalcançável, se abraça, enquanto aos infantes oferece apenas o olhar maternal.
Ainda sobre este pai/deus, acrescenta-se o fato da fantasia da infância de Leonardo. Sem importância se, de fato, a ave na fantasia era um abutre ou não, no quadro esta história é altamente relevante, pois a ave, que abraça a mulher como se fosse sua esposa, pode ser relacionada à frase de Da Vinci, onde ele se diz “destinado a estudar o voo das aves”. Da Vinci era obstinado por um dia poder imitar este voo o que, na análise de Freud, na verdade representa a ânsia de ser capaz de realizar o ato sexual. Nas frases de Leonardo, “o grande pássaro alçará o seu primeiro voo partindo do dorso do Grande Cisne, fará o mundo ficar maravilhado, será por todos descrito e será a glória eterna do ninho onde nasceu”. Nestes termos, fica clara a associação da imagem do cisne no quadro com a seu sonho de decolar das asas do “grande cisne”, seu pai. Que mundo é este a ficar maravilhado, se não ele próprio, conquistando a capacidade de realizar o ato sexual? Ainda para corroborar estas afirmações está o fato de que ao redor do mundo e inclusive na Itália de Leonardo, o órgão sexual masculino ser popularmente chamado de “pássaro”.
No mito original, dois ovos são gerados a partir de Leda. Um ovo contém a cria de Tíndaro, o rei mortal (Helena de Tróia e Castor), e no outro ovo está a prole de Zeus (Pólux e Clitemnestra). No quadro onde vieram dois infantes, atribuído a Giacomo Salai, existem dois garotos a brincar e um ovo não aberto, escondido no fundo. Nossos olhos veem apenas parte do mito representada, enquanto nas outras reproduções estão presentes os quatro filhos de Leda.
No quadro de Da Vinci os rebentos nascidos são do mesmo sexo. Parece difícil acreditar que Leonardo, um homem da Renascença, não soubesse a história original, onde nasce um casal de cada ovo. Como diria Freud, para o psicanalista qualquer mínimo detalhe é importante e pode ajudar a decifrar um processo oculto. Desta forma, podemos olhar para o quadro, e imaginar se este não é um ato falho de Da Vinci, na tentativa de reproduzir o mito. Os garotos que nasceram do mesmo ovo, se analisados sob esta luz, nos levam a refletir que, para Leonardo, um garoto também pode ser feminino, como parece indicar a história de vida do grande artista. Os garotos que brincam, de acordo com a análise de Freud, podem ser a imagem representativa que Leonardo guarda da beleza infantil de sua própria infância.
Conclusão
Estudar os fatos por trás da historia de vida de um homem é um trabalho nobre. Mistificamos aquela figura que nos atrai, muitas vezes por expectativas pessoais, e por fim criamos um mito que não corresponde com a verdade. Em nossa sociedade, ocorre o extremo valor a tudo que é “BOM” e “ótimo”, colocando para debaixo do tapete tudo que nos parece estranho. Para olhar para este homem e poder interpretar dados que chegam a ser “desconfortáveis” à nossa própria psique, é necessário coragem. O grande homem que foi Leonardo jamais pode ser destruído, e um estudo como este apenas aumenta a beleza da vida do Gênio, que humano como nós, também sofreu, padeceu, testou, brincou e pesquisou, construindo a si mesmo.
Desta forma, travamos uma luta contra nossa hipocrisia, um golpe em nosso narcisismo, valorizando também o que há debaixo do tapete. Somos forçados a admitir que, onde hoje vemos “impureza lamacenta”, também brotam flores com perfumes inebriantes.

Bibliografia
Freud, Sigmund.  “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910)” in: Obras psicológicas completas : edição standard brasileira, Rio de Janeiro: Imago Editora,  1996.

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