domingo, 21 de agosto de 2011

EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU III

Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 20 de agosto de 2011

Sois, portanto, a argamassa na construção de um risonho porvir. Sois os semeadores de cidades e vilas. (José Faria de Ribeiro)

- Saga da Expedição Roncador-Xingú, Revivida por Orlando Villas Boas

Fonte: Ulisses Capozoli

Trilhando o Brasil Central

Os Irmãos Villas-Bôas Orlando (1914-2002),

Cláudio (1916-1998) e Leonardo Villas-Bôas (1918-1961),

foram importantes sertanistas brasileiros.

ARAGARÇAS, Goiás - Mais de meio século depois de seu primeiro contato com o sertão, Orlando Villas Boas, último sobrevivente dos três irmãos que lideraram a Expedição Roncador-Xingu para a conquista do Brasil Central, prepara-se para o retorno. Desta vez, o caminho não será feito a pé, abrindo picadas com machados e foices e construindo pistas de pouso com picaretas e enxadões.

Os caminhos que levam ao Brasil Central, o sertão inóspito e desconhecido até fins de 1943, quando a expedição começou a desvendá-lo, está cortado por estradas asfaltadas. As terras indígenas, ocupadas por tribos temidas como os xavantes, agora abrigam cidades. Rios que desencadearam corridas do ouro e diamantes, como Araguaia, Garças e Mortes, tiveram sua riqueza mineral exaurida por sucessivas levas de garimpeiros. Nesta época do ano, nem peixes em abundância eles têm.

“As terras indígenas, ocupadas por tribos temidas como os xavantes agora abrigam cidades.”

Memórias

Numa casa aconchegante no Alto da Lapa, cercado por objetos, imagens e lembranças do sertão, Orlando viaja no tempo. Fala de seus companheiros do passado: Salomão, Zé Goiás, Aramis, Zé Tropeiro, Dirceu Aquino, Zé Eufrásio, o médico Noel Nutels, o piloto Olavo, o Ministro João Alberto, o coronel Vanique. Alguns já morreram. Orlando sabe o paradeiro de uns poucos. A última perda do sertanista e indigenista foi muito próxima. Cláudio Villas Boas, seu irmão dois anos mais moço, morreu em março e o deixou só, com a lembrança das histórias que começaram no fim da primavera de 1943. Mais exatamente no dia 6 de dezembro de 1943, quando a expedição partiu do vilarejo de Barra Cuiabana, como então era conhecida o que é hoje a cidade de Barra do Garças.

“A última perda do sertanista e indigenista foi muito próxima. Cláudio Villas Boas, seu irmão dois anos mais moço, morreu em março e o deixou só, com a lembrança das histórias que começaram no fim da primavera de 1943.”

Aos 84 anos e depois de ter contraído malária mais de 200 vezes, Orlando Villas Boas tem uma memória e uma vitalidade invejáveis. Fala durante horas sobre sertanejos, índios, cobras e onças, verdades duras e mentiras capazes de enrubescer o mais falastrão dos contadores de casos. Há poucas semanas, ele fez um roteiro do caminho que ele percorreu no sertão e os nomes de antigos companheiros. A maioria dos sobreviventes, oito homens e uma mulher, vive em Xavantina, às margens do Rio das Mortes, em Mato Grosso.

A maior parte dos registros do que foi a expedição acabou nas águas do Araguaia. Rolos de filmes do cineasta Jean Manzon, fotos, textos, documentos, tudo foi atirado no rio por um antigo diretor da Fundação Brasil Central (FBC), órgão encarregado do “descobrimento” do sertão, quando a fundação se transformou na Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco).

Novas Filmagens

A tentativa de refazer parte do acervo perdido leva Villas Boas, acompanhado de uma equipe da produtora Beta filmes e esse repórter a refazer a trilha da expedição Roncador-Xingu. Partimos numa picape com alguns apetrechos que não serão utilizados: facão, pá dobrável e um rolo de corda. Orlando, sua mulher Marina, Noel, um dos seus dois filhos e o pessoal da Beta, Nilson, Laércio e Celso, estão presentes.

À noite, a picape desliza pela SP-330 a caminho de Uberlândia, a primeira parada. Clarões avermelhados no céu denunciam a queimada de cana para a colheita manual. O crepitar das chamas é o único som na noite silenciosa. Essa é a primeira zona de transição para o sertão. Os canaviais, com o cheiro adocicado da garapa, ficam logo para trás. As terras planas do Triângulo Mineiro abrigam outra riqueza: as manchas brancas do nelore mocho que se espalham a perder de vista.

“As terras planas do Triângulo Mineiro abrigam outra riqueza: as manchas brancas do nelore mocho, que se espalham a perder de vista.”

Quando os irmãos Villas Boas integraram a expedição, Uberlândia era considerada a “boca do sertão”. Dali, conta Orlando, um precário caminho de terra batida levava a expedição com dificuldades até Barra Goiana, como então se chamava Aragarças, e Barra Cuiabana, atual Barra do Garças, na margem oposta do Araguaia.

A expedição Roncador-Xingu partiu da capital da República, então no Rio. O trem que levava material, abastecimento e pessoal fez uma parada em São Paulo, onde senhoras da sociedade bordaram uma bandeira com fios de ouro para estimular os desbravadores. O advogado Godofredo da Silva Telles fez um discurso eloquente, exaltando o patriotismo. De São Paulo, com algumas baldeações, a expedição seguiu até Uberlândia e perdeu um vagão, que se incendiou. Com ironia sutil, Orlando conta que “a partir de então, todo material que faltasse era atribuído ao vagão queimado”.

Cobiça Externa

O Ministro João Alberto, da Coordenação da Mobilização Econômica do governo Getúlio Vargas, já conhecia o sertão. Entre 1925 e 1926, como integrante da Coluna Prestes, ele testemunhara as agruras dessas terras ermas. No governo Vargas, era o encarregado do desbravamento de áreas cobiçadas por países europeus para assentamento de seus excedentes populacionais, segundo a tese do “espaço-vital”.

“NO GOVERNO VARGAS, JOÃO ALBERTO ERA O ENCARREGADO DAS ÁREAS COBIÇADAS POR PAÍSES EUROPEUS PARA ASSENTAMENTO DE SEUS EXCEDENTES POPULACIONAIS, SEGUNDO A TESE DO “ESPAÇO VITAL”.

PROPOSTA EM 1937 À SOCIEDADE DAS NAÇÕES - O EMBRIÃO DA ONU - POR UM REPRESENTANTE JAPONÊS, A TESE PROPUNHA QUE AS NAÇÕES QUE DISPUSESSEM DE ÁREAS INEXPLORADAS, SEM DESFRUTE DE RECURSOS NATURAIS, DEVERIAM PERMITIR SEU APROVEITAMENTO RACIONAL POR PAÍSES CAPAZES DE EXPLORÁ-LAS “PARA O BEM COMUM DOS POVOS”.

Ao contrário do Ministro João Alberto, o coronel Flaviano de Matos Vanique, o chefe da expedição, era um homem afeito aos banhados do Rio Grande do Sul, onde caçava marrecos com amigos. O coronel integrava a guarda pessoal do presidente Getúlio Vargas. Entretanto, uma briga no Palácio do Catete tirou-o do centro do poder. No sertão, um acontecimento mais dramático, o suicídio de sua mulher, Alda Vanique, exauriu suas energias, levando-o a um retiro definitivo no Sul.

Em Uberlândia, onde as cargas remanescentes foram transferidas do trem para caminhões, um comerciante influente, Pedro Martins, convenceu o Ministro a trocar o povoado de Leopoldina por Barra Goiana como base de lançamento da expedição. Leopoldina havia sido escolhida pelo general Couto de Magalhães, no século passado, como sede de navegação do Araguaia. Para alguns, problemas políticos e não só razões logísticas estavam por trás das palavras do comerciante.

O que os documentos históricos registram é que, em 10 de setembro de 1943, o padre italiano Vitório Lovato rezou uma missa no “marco zero” da expedição, em Barra Goiana, fincando uma cruz no local. O marco deixou uma vítima. Raimundo Nonato, um dos trabalhadores, teve o fêmur quebrado por um resvalo da madeira da construção e sua perna foi amputada. Imprestável para o trabalho braçal, ele tornou-se alcoólatra e passou a ser conhecido como Raimundo Perneta.

“Em 10 de setembro de 1943 o padre italiano Vitório Lovato rezou uma missa no ‘marco zero’ da expedição, em Barra Goiana, fincando uma cruz no local” .

Documentos

Valdon Varjão, ex-prefeito de Barra do Garças, deputado e senador, trabalhou nos primeiros tempos da fundação e lá teve contato com os irmãos Villas-Boas. Ele, certamente, detém o maior número de documentos da expedição Roncador-Xingu, embora não tenha participado diretamente dela. Os documentos, fotografias e cópias de decretos presidenciais estão guardados numa edícula.

Autor de vários livros, Varjão é dono de um cartório na cidade. Uma porta liga os escritórios à sala de estar de sua casa, nos fundos. Ali, ele recebe visitas mais íntimas, como os enviados de Orlando. Mas, antes, confere por telefone se os recém-chegados são os mesmos mencionados no dia anterior pelo sertanista.

O cearense Varjão, de 75 anos, primeiro senador negro do Brasil, é parte de uma história que deixou resquícios. Na sala, atentos aos seus gestos, estão três de seus agregados. São empregados informais, memória de uma outra ordem social. Vigilantes, os homens atendem aos seus desejos a um sinal.

Extraterrestres

Como prefeito de Barra do Garças, Varjão fez obras de interesse discutível, do ponto de vista prático. Uma delas foi construir um espaço-porto para a descida de discos voadores num maciço rochoso que circunda a cidade. Para fazer contato com os alienígenas, mandou construir uma réplica do que se imagina serem os discos voadores. A réplica, alojada numa das extremidades do espaçoporto, parece flutuar sobre o planalto central. O atual prefeito está terminando um pequeno edifício com a forma de estrela como sede do espaçoporto. Se ainda não atraiu extraterrestres, ao menos votos Varjão recolheu por conta do exotismo.

Como prefeito de Barra do Garças, Varjão construiu um espaço-porto para a descida de discos voadores num maciço rochoso que circunda a cidade.

Do espaçoporto é cativante a visão do encontro dos Rios Araguaia e Garças, que sugeriu ao ministro João Alberto o nome Aragarças para a antiga Barra Goiana. Para os rumos norte, leste e oeste o horizonte espalha-se por dezenas de quilômetros. Um observador mais atento tem a idéia clara da ligeira curvatura da Terra.

Ao norte, as irregularidades distantes são formadas pela mítica Serra do Roncador, onde o explorador inglês, coronel Percy Fawcett, desaparecido no fim dos anos 20, procurou conexões exóticas, partilhando da crença da eubiose, de que ali estão algumas entradas para Atlântida, o continente perdido.

Revolta Militar

Um pouco abaixo do encontro dos rios, numa área mais elevada, está o Aeroporto de Aragarças. Ali, em dezembro de 1959, a pista de terra batida registrou fatos bem menos fantasiosos: uma revolta de oficiais da Força Aérea Brasileira (FAB) contra o então presidente Juscelino Kubitscheck. A rebelião reconduziu a cidade às manchetes dos jornais. O movimento, liderado pelo coronel João Paulo Burnier, ficou conhecido como a Revolta de Aragarças. Uma bomba que não explodiu, o incômodo de um corpo que estava sendo levado para enterro em Belém e o bombardeio e incêndio de um avião do antigo Correio Aéreo Nacional (CAN) foi tudo o que sobrou da rebelião. Os revoltosos foram perdoados pelo presidente Juscelino Kubitscheck e tudo caiu no esquecimento.

O progresso também esqueceu Aragarças sob a tutela da burocracia oficial. Durante anos, impediu-se a construção de casas simples, no estilo garimpeiro. Os dissuadidos atravessaram o rio e instalaram-se em Barra do Garças, em Mato Grosso. Atualmente, Aragarças depende economicamente de Barra do Garças. Uma pequena multidão continua atravessando diariamente o rio. Essas pessoas vão trabalhar em Mato Grosso. No fim da tarde, retornam para dormir em Goiás.

Quando os homens da expedição Roncador-Xingu chegaram a Aragarças, em fins de 1943, a principal riqueza estava no leito dos rios: ouro e diamantes.

Garimpo

Quando os homens da expedição Roncador-Xingu chegaram a Aragarças, em fins de 1943, a principal riqueza estava no leito dos rios: ouro e diamantes. Com o esgotamento do garimpo e a ocupação das terras,houve incremento da agricultura. Nos últimos anos, os fazendeiros trocaram o arroz pelo gado e, assim, engrossaram o desemprego. Três ou quatro vaqueiros tocam rebanhos de 2 mil cabeças de nelore. Nervosos, os animais interrompem com frequência o tráfego das estradas que levam ao Xingu. Nos restaurantes da região, o churrasco é o prato mais comum. Um macio filé sai pela metade do preço de um peixe, nos poucos lugares em que esse prato é encontrado. Na época da expedição, conta Orlando, o alimento mais comum era o peixe. A carne vermelha era a da caça, quase sempre de anta e veado. Ou o jabá duro e salgado atirado do alto pelos aviões de abastecimento.

Novas Bandeiras

Abre-se a fronteira entre cerrado e floresta.

O sertão do Brasil Central que a Expedição Roncador-Xingu deveria conquistar no início de 1944 somava 1 milhão de quilômetros quadrados, área equivalente a 11 vezes o território de Portugal, 25 vezes a Suíça ou 30 vezes a Holanda.

Orlando Villas Boas, que, naquela época, em companhia de seus irmãos, Cláudio e Leonardo, assumiu a expedição com a morte da mulher do comandante oficial, o coronel Flaviano de Matos Vanique, delimita o sertão entre os Rios Araguaia - a leste - e Tapajós - a oeste -, os chapadões mato-grossenses - ao sul - e o paralelo de quatro graus de latitude sul, que passa um pouco abaixo de Manaus - ao norte.

Território desconhecido, a não ser por rápidas incursões - caso da Coluna Prestes ou das explorações bandeirantes que, no século 17, espalharam as primeiras notícias do ouro, especialmente na Serra do Roncador -, seu potencial justificava os temores do presidente Getúlio Vargas quanto às pretensões expostas na Europa sob a teoria do “espaço vital.”

A Fundação Brasil Central (FBC) foi o órgão criado pelo governo Getúlio Vargas para cumprir a missão de conquistar o sertão. A expedição foi sua linha de frente e os irmãos Villas Boas, impediram que os índios fossem exterminados pelo exército brasileiro e os sertanejos que integravam-na. Equipamentos e víveres reunidos no Rio, então a capital brasileira, seguiram para São Paulo, onde foram ampliados, e seguiram para Uberlândia, no Triângulo Mineiro, a “boca do sertão”. De Uberlândia, em caminhões, o que sobrou do incêndio de um dos vagões de carga seguiu para Barra Goiana, como era conhecida Aragarças.

Partida - A partida de Barra Cuiabana, na margem oposta do Araguaia - atual Barra do Garças -, ocorreu em 6 de dezembro de 1943, com uma preleção feita pelo coronel Vanique aos 65 homens, divididos entre pessoal de apoio - médico, mecânico, telegrafista, topógrafo -, aventureiros urbanos, sertanejos analfabetos e os três Villas Boas interioranos, aborrecidos com a cidade grande para onde se haviam mudado com a morte do pai, advogado e cafeicultor.

O roteiro oficial previa a conclusão do avanço em Santarém, no Pará, onde o Tapajós desemboca no Amazonas. Dois paulistas, o subchefe da expedição, Francisco Brasileiro, e o médico Inácio da Silva Telles, propuseram ao ministro João Alberto, responsável pela missão, alcançar o destino, estimado em 3 mil quilômetros - pela necessidade de contornar obstáculos geográficos -, ao fim de 10 meses da abertura de picadas.

O ministro considerou a idéia impraticável e os paulistas abandonaram a expedição. Vinte dos expedicionários retornaram a São Paulo, entre eles o padre Hipólito Chevelon. O ex-prefeito de Barra do Garças Valdon Varjão registrou no seu Aragarças, Portal da Marcha para o Oeste que, com a dissidência, a expedição ficou reduzida a “pouco mais de uma dúzia de homens”.

Recomposto com a adesão de sertanejos, o grupo iniciava o trabalho às 5h30 com um toque de sineta. As tarefas prolongavam-se até as 17h30, com intervalos para refeições e descanso. Em 26 de janeiro de 1944, a expedição já havia cruzado o alagadiço Rio Pindaíba, afluente do Mortes, quando chegou a notícia. Zacarias da Silva Barros, encarregado de uma tropa de abastecimento, morrera de um ataque de angina. O corpo do tropeiro foi enterrado às margens de um pequeno curso d'água, batizado de Ribeirão Zacarias, limite atual de Barra do Garças e Xavantina, cidade, na época, ainda não fundada. O divisor entre as águas do Rio das Mortes e do Xingu, de acordo com Orlando Villas Boas, é a mítica Serra do Roncador, “moradia secular dos xavantes”. Mais à frente está a extensa planície do Xingu, onde, “na parte sul, os varjões e os últimos cerrados marcam a transição dos descampados do Brasil Central para a mata compacta e contínua da hiléia amazônica” .

Quando as condições passaram do cerrado para a mata fechada, o coronel Vanique mandou que um dos homens escalasse uma árvore, um pau-de-óleo, segundo Orlando, para tentar localizar o Rio das Mortes. As águas claras do Mortes deslizavam a pouco mais de 500 metros de distância. O coronel avançou com um grupo menor e, em 25 de fevereiro de 1944, mandou cravar um marco de madeira assinalando, no local, “a presença de civilizados”.

O marco que assinalou a fundação de Xavantina não existe mais. Mas, na cidade, estão muitos sinais da passagem da expedição. Salomão Gomes de Souza, remanescente do grupo, apoiado em um pequeno monumento de concreto que substituiu o marco original, aponta alguns deles.

A menos de 100 metros está a primeira casa de alvenaria construída onde, no passado, foi o inacessível território xavante. A casa abrigou o coronel Vanique e sua mulher, Alda Vanique. Foi ali que, na tarde de 11 de setembro de 1944, ela fez um disparo de revólver contra o próprio corpo.

Memória Viva

Suicídio - Zé Goiás, outro dos sobreviventes da Roncador-Xingu, ainda mora há poucos metros da antiga casa do coronel. Ele passava por ali naquela tarde, quando o coronel, que se barbeava, saiu aos prantos pedindo ajuda. “O coronel chorava como uma criança e pediu que eu chamasse o Orlando para socorrer a dona Alda”, relata. Zé Goiás estava acompanhado por um garoto. Quando se aproximaram, ele ouviu uma confissão: “Não culpem o Vanique, foi eu mesma quem fez isso” .

Orlando chegou rapidamente. A mulher do coronel foi colocada num pequeno avião, a caminho de Aragarças, mas morreu logo depois da decolagem. Zé Goiás conta que enquanto a mulher era socorrida, mais uma testemunha foi convocada. Ainda hoje, ele balança a cabeça em desaprovação e pergunta-se: “Por que ela fez isso?”

O coronel Vanique ainda teve uma segunda casa em Xavantina, mas estava muito abatido para liderar a expedição. Foi assim que ela passou às mãos dos irmãos Villas Boas: Orlando, Cláudio e Leonardo.

O coronel Vanique ainda é um personagem forte em Xavantina. Salomão refere-se a ele e a seu temperamento difícil como se estivesse no passado, da mesma forma como Zé Goiás, Evaristo, Damásio, Aramis, João da Silva e Ascendino Gouveia, o Sapreaca, tido como um dos grandes mentirosos do sertão. Os homens dão um sorriso largo quando falam do coronel. Lembram quando reclamavam da carne seca dura e excessivamente salgada, preparada em latas pela cozinheira Macária, e o coronel retrucava, provocativo: “Vocês não estão acostumados a comer nem isso e ainda ficam reclamando” .

Memória Viva - Salomão, 68 anos, o mais jovem do grupo, é também o líder dos antigos pioneiros. Ele fundou uma associação para manter viva a memória da expedição, mas lamenta o descaso de seus companheiros. Eles costumavam reunir-se sob uma grande figueira, no ponto em que o coronel Vanique mandou assinalar a “presença de civilizados”. Mas, algum tempo depois, nem isso conseguiu fazer mais: “O pessoal é muito desanimado e a maioria não está ligando para nada”, queixa-se, com amargura.

Macária, a cozinheira da expedição, mora ao lado da praça, mas passa a maior parte do tempo deitada num sofá, alheia ao mundo. Dirceu Aquino, morto recentemente, não se dava ao trabalho de caminhar menos de 50 metros para encontrar seus companheiros. Evaristo Vencelento Soto, o mais velho, aos 86 anos, está abalado com a morte recente da mulher.

Ele tem claras as imagens dos primeiros tempos de sertão, antes mesmo de integrar a expedição, quando bamburrava diamantes do Araguaia. “Deu pro gasto”, conforma-se, com um sorriso tranquilo, sem lamentar a má sorte de nunca ter encontrado uma “pedra grande”, como viu acontecer com alguns de seus antigos companheiros de garimpo.

João da Silva, outro dos membros da expedição, voltou para a cidade há algum tempo e ocupa o que foi a segunda casa do coronel. Flores brotam de vasos improvisados na frente da casa que, segundo Salomão, “agora não tem dono”. A burocracia que envolveu o fim da Fundação Brasil Central deixou a casa de lado. “Estava ocupada por um órgão da prefeitura, na época”, lembra ele. Depois, ninguém voltou para reclamá-la e a construção ficou como um fantasma na beira do rio, até que “o João da Silva, com o preço alto dos aluguéis, resolveu tomar conta dela”, conta Salomão.

Uma varanda lateral, apoiada em grossos troncos de madeira, desaba lentamente sem que o morador recente da casa faça os reparos exigidos. A poucos metros, o Rio das Mortes corre cristalino. Garotos saltam de suas margens com a habilidade de acrobatas. Salomão leva seus visitantes para um pequeno passeio pelas águas do rio onde, no passado, o ouro e diamantes brotavam do cascalho sem atiçar a cobiça dos xavantes. Aos índios, com seus brincos de madeira, pele acobreada e característico corte de cabelo, interessa mais os jipes da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que alguns dirigem como funcionários.

Salomão é um simpático cicerone. Leva os recém-chegados para conhecer Damásio Rodrigues Ramos, 75 anos, outro dos remanescentes. Até recentemente, ele teve um bar. Depois fechou as portas. Sobrevive de uma aposentadoria da FBC. Damásio conta que muitas noites fecha os olhos e não consegue dormir. Suas lembranças o levam de volta ao passado, em meio à mata fechada, ao som das vozes de antigos companheiros, em número cada vez menor.

Há dois quilômetros do centro da cidade está a chamada “antiga base”. Lá, equilibram-se os restos da chaminé de alvenaria - onde eram cozidos telhas e tijolos para as construções - e também o barracão que serviu de centro cultural, abrigando o cinema, o teatro e as comemorações oficiais. Está tudo abandonado, coberto pelo silêncio. Velhos companheiros, os veteranos da expedição esperam que as novas filmagens, lideradas por Orlando Villas Boas, devolva um pouco da vida ruidosa do passado.

As lembranças não serão apenas dos homens que, com alguma frequência, confidencia Damásio, vêem Orlando em programas de TV falando sobre as histórias que viveram juntos.

Psicose

Orlando tem muito a recordar, como o dia em que um trabalhador, Ascendino, teve um surto psicótico, acontecimento nada raro a quem penetra nos isolamentos das matas e do sertão. Com uma velha garrucha em punho, Ascendino apontava a arma para um dos Villas Boas. Mariano, num salto rápido, enfiou o cano de sua 44 na cabeça do louco, já seguro por outros. Calmamente, virando-se para o lado, perguntou: “Mato o home, seu Cláudio?; é só arregaçá o dedo, posso?”

Feitiço

Dissuadido um e desarmado o outro, Ascendino correu para o lado e “calmo, como se nada tivesse acontecido”, rememora Orlando, “disse que tudo aquilo era culpa da velha de Caipônia”. Depois, acrescentou: “É uma velha danada. Chocou 12 ovos e saiu com 12 antinha e, quando chega gente, ela iscondi tudo embaixo da saia” .

Há casos engraçados. Orlando lembra-se de “uma nobre alemã que um dia aterrissou na margem do Mortes”. Com o jantar anunciado, rememora ele, “nossa visita vem lá toda empetecada, no seu vestido fla-flu, de brinco e pulseiras”. Foi quando uma arara de estimação pousou no seu ombro e, para equilibrar-se, agarrou-lhe a orelha. “Foi grito e sangue para todo lado”, diz Orlando. Quando a visita se levantou, exigiu ser levada embora de avião, mesmo com o risco de voar na boca da noite.

– Continuação

O número IV desta série reportará na íntegra a reportagem de Valdir Sanches que, sob o título “Em Busca da Nova Capital” fala, também da famosa Expedição.

– Blog e Livro

Os artigos relativos ao “Projeto–Aventura Desafiando o Rio–Mar”, Descendo o Solimões (2008/2009), Descendo o Rio Negro (2009/2010), Descendo o Amazonas I (2010/2011), e da Travessia da Laguna dos Patos I (2011), estão reproduzidos, na íntegra, ricamente ilustrados, no Blog http://desafiandooriomar.blogspot.com.

O livro “Desafiando o Rio–Mar – Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS, na rede virtual da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura.com.br) e na Livraria Dinamic – Colégio Militar de Porto Alegre.

Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link: http://books.google.com.br/books?id=6UV4DpCy_VYC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false.

Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)

Vice-Presidente da Academia de História Militar Terrestre do Brasil/Rio Grande do Sul

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS)

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional

Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br

E–mail: hiramrs@terra.com.br

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