segunda-feira, 22 de agosto de 2011

EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU IV

Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 21 de agosto de 2011

Sois, portanto, a argamassa na construção de um risonho porvir. Sois os semeadores de cidades e vilas. (José Faria de Ribeiro)

- Em Busca Da Nova Capital

Fonte: Valdir Sanches

Índios kuikuro recebem roupas por ocasião do contato com a expedição Roncador-Xingu, dos irmãos Villas Bôas. Foto: Acervo Museu do Índio, década de 50

O Brasil Central era um branco no mapa. E, em plena II Guerra Mundial, a capital do País, o Rio, no litoral, era muito vulnerável. Por isso, o Presidente Getúlio Vargas decidiu, em 1943, desbravar o Oeste.

Em plena Segunda Guerra Mundial, o Brasil iniciou a sua conquista do Oeste. Criou a Fundação Brasil Central (FBC) e sua ponta de lança a Expedição Roncador-Xingu destinada a escolher locais para o florescimento de futuras cidades. Três paulistas loucos por mato logo acabaram no comando da expedição: os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Boas. Graças a eles, a ocupação teve uma característica rara: os ocupantes primitivos - os índios - não foram agredidos, como aconteceu no Oeste dos Estados Unidos, mas foram atraídos pacificamente. O resultado foi a abertura de 1.500 quilômetros de picadas e mil quilômetros de rios navegados, ao longo dos quais surgiriam 34 vilas e cidades. Hoje, aos 87 anos, Orlando, último sobrevivente do trio, narra a epopeia.

Dizem as pessoas que me conhecem, que tenho uma memória prodigiosa. E, felizmente, tenho mesmo. Lembro que na década de 20, quando eu e meus irmãos éramos meninotes, e viemos para São Paulo, um número muito grande da nossa família, de Botucatu, comprou terra no Brasil Central, onde seria a futura capital da República. Isso depois da I Grande Guerra, lá por 1920...

Aí o mundo inteiro entrou em calma e não se falou mais nisso. Até que em 1939 começou a Segunda Guerra e novamente voltou a ideia de que a capital do País não podia ficar na faixa litorânea, por ser muito vulnerável.

Desta vez, foi o próprio governo que tomou a si a concretização da marcha para o Oeste. E o Presidente Getúlio Vargas, nos primeiros meses de 1943, faz 50 anos, fez o primeiro pronunciamento dizendo que ia criar um órgão para desbravar o branco das nossas cartas geográficas. Para chefiar a FBC, Getúlio escolheu o ministro João Alberto Lins de Barros, aquele que tinha sido interventor em São Paulo, em 1932. Aí o Getúlio disse assim (imita a voz):

“Como nós estamos em plena guerra, não podemos pesar o erário, vocês vão a São Paulo e peçam donativos àquela gente que aquela gente é fácil para dar as coisas”.

Eram o João Alberto e o Coronel Flaviano de Mattos Vanique, o Chefe da guarda pessoal do Getúlio, que ele indicou para chefiar a Expedição Roncador-Xingu. Eles vieram para cá e ficaram no hotel Esplanada, atrás do Teatro Municipal. Quando os jornais anunciaram que a expedição estava sendo organizada, com essas duas figuras no hotel Esplanada, eu fui lá. Conversei com o Coronel e disse que gostaria de participar da expedição. O Coronel foi taxativo: “Absolutamente, não vou contratar gente da cidade. Vou contratar analfabeto, que analfabeto tem mais resistência”. Em vez de falar sertanejo, ele falava analfabeto. E não deu certo.

E havia uma crise incrível, porque a idéia do Chefe da expedição (Coronel Vanique) era contratar analfabetos... Eles contrataram aqui em São Paulo um cidadão chamado Frederico Laine. O Frederico estava criando a base, mas numa bananosa incrível, porque não tinha ninguém para auxiliar. Um dia um piloto atolou o avião no campo e chamou os dois trabalhadores mais próximos para ajudar a desatolar. Coincidiu serem o Cláudio e o Leonardo. Conversa vai, desatola, desatola, viram que não éramos analfabetos. No dia seguinte fui nomeado secretário da base, o Cláudio Chefe do Pessoal e o Leonardo Chefe do Almoxarifado. Nem imaginávamos que ia acontecer tanta coisa.

Contra os Xavantes, Tiros Para Cima.

Cláudio (esq.) e Orlando Villas
Boas no posto avançado de Serra
do Cachimbo da Expedição
Roncador/Xingu, no Rio das Mortes (9/04/1951)


No qual os Villas Boas descobrem que devem passar pelo território de várias tribos nativas e passam a doutrinar seus homens para que respeitem o índio.

O objetivo principal da expedição era determinar pontos ideais para futuros núcleos de povoamento. E o da Fundação Brasil Central, o órgão principal, seria o de implantar esses núcleos de povoamento nas áreas indicadas pela expedição.

Tocamos pela picada na mata. De Aragarças a Xavantina, meus dois irmãos foram por terra. Eu fiquei com o Coronel Vanique, para descer de barco o rio Araguaia. Descemos 100 léguas (600 quilômetros) do Araguaia, depois 80 léguas (480 quilômetros) do rio das Mortes. Xavantina era um ponto do rio das Mortes, alcançado pela expedição, no rumo de Manaus. Chamou-se São Pedro do Rio das Mortes, depois Xavantina.

Hoje é Nova Xavantina, uma cidade grande (25 mil habitantes). Nós criamos lá uma pequena base, que seria a base da Fundação Brasil Central. Na outra margem do rio das Mortes começavam os grandes brancos do Brasil Central. Os brancos das cartas geográficas. E nos preparamos: bom, então vamos começar a atravessar esses brancos. Era onde nós íamos estabelecer os pontos ideais de colonização. Mas começaram a surgir colunas de fumaça. Aí nos surpreendemos: então isso ai não é área desabitada, em branco. E o Coronel Vanique ficou muito preocupado. Ai começou-se a constatar, com vôos, de exploração aérea, que eram aldeias indígenas. Eram os Xavantes. Os afamados Xavantes...

Então a Fundação resolveu criar uma Vanguarda militar. Porque a expedição Roncador-Xingu era paramilitar. Tanto assim que nós recebíamos um mosquetão e 50 tiros. A Fundação conseguiu 12 soldados da polícia de Goiás, chefiados por um oficial. Iriam limpar o caminho da expedição. Afastar o índio de qualquer forma. Apavorados com o que poderia acontecer, escrevemos, em segredo, uma carta para o Marechal Rondon. O Marechal já estava aposentado, era o Presidente do Conselho Nacional de Proteção aos Índios. Mas era o grande Marechal, um grande humanista. Rondon recebeu a nossa carta, chamou o João Alberto e disse. “Eu não gostaria que a expedição tivesse uma frente militar”. O João Alberto acatou imediatamente. Em Xavantina, reuniu toda a expedição - o Major da Polícia Militar já estava lá - e disse: “Não vai ter mais a frente militar. Aconselho que a frente da expedição seja entregue aos irmãos Villas-Boas”. Aí assumimos a expedição.

O perigo da Amazônia não é esse negócio de cobra, de onça. O perigo é o inseto, que e uma coisa fantástica. E o pium, é o maruim, é o borrachudo, o catuquira, uma infinidade de coisas. Inclusive um, o da leishmaniose, derrubou 14 homens nossos.

Na área dos Xavantes, abrimos uma picada na serra do Roncador. Levamos 11 meses atravessando lá. Tínhamos que fazer grandes desvios de morro, não por causa do homem, mas por causa da tropa de abastecimento. Andar três quilômetros por dia já era resultado excelente. Os Xavantes hostilizavam a tropa, espantavam os burros... Nós tivemos 18 escaramuças com os Xavantes, que eram os mais bravos que havia. Livramo-nos bem, não demos um tiro em índio. Quando a coisa era muito séria atirávamos para cima. E assim conseguimos atravessar o território xavante.

Saindo da área xavante, descemos o rio Sete de Setembro, pegamos o Kuluene, um afluente do Xingu. Chegamos a uma praia muito bonita, e começamos a ver uma barreira e alguns índios em cima dela. Era uma fileira de índios que gritava, gesticulava. Os Kalapalos. Foi uma relação difícil, nós gritávamos daqui, eles gritavam de lá. Alguns deles quiseram nos manter a distancia, ameaçando com arco e flecha. Recuamos para a praia, porque éramos só o Cláudio, o Leonardo, eu e mais dois trabalhadores.

Aí, de repente, surge a figura de um índio mais destemido, no meio do barranco. Nós chegamos, ele nos aguentou na barranca. Era o Izarare, um índio grande de tamanho e de moral. Aí nós mantivemos contato com o Izarare e vimos que nessa barreira, que eles chamavam de rina, dava um ótimo campo de aviação.

Nós nos demos bem com esses índios. Mas, por maiores cuidados que tivéssemos, levamos gripe a eles. Um dia a índia mulher do Izarare ficou muito mal, quase para morrer. E nós mandamos buscar penicilina. Os índios já começavam a pintá-la para enterrar, quando o avião chegou com a penicilina. Nós demos uma injeção, quando foi na terceira injeção ela sentou. Aí os índios deram um trabalho incrível, por qualquer probleminha queriam tomar injeção...

Ali todo mundo dormia em rede. A fonte da nossa alimentação era o peixe e a caça. A gente vivia da anta, capivara, porco do mato. Uma ocasião, uma vara de porco do mato entrou no nosso acampamento, quase destruiu tudo. Tal o tamanho, a velocidade e a voracidade da coisa. O Kuluene é um rio altamente piscoso. E comíamos também o beiju, que o índio faz da raspa da mandioca brava, fervida e decantada para tirar o ácido cianídrico. Quando o avião começou a vir sempre, passou a levar arroz, feijão... Mas o abastecimento era muito falho. O avião saía de Xavantina, para chegar no Kuluene levava uma hora e meia. Um saco de arroz, já lotou o avião.

Malária? Bom, eu e o Cláudio tivemos umas 200. Sim, 200 cada um... Nós tínhamos 18 trabalhadores, que pescavam e caçavam, abriam o campo de aviação, a instalação dos postos. No início a gente tinha muito receio, de que essa gente fosse nos criar problemas. Porque vivíamos em uma aldeia de índios nus e esses homens eram chamados “os homens sem lei do Brasil Central”, que eram os garimpeiros. Uns com 20 mortes, outros com 15... O mais humilhado era o Antenor, um dos trabalhadores, que tinha oito. Quase todas as mortes eram conflitos de garimpo.

Mas nós começamos a treiná-los. O sertanejo se revelou uma coisa fantástica. Explicamos a eles que iriam entrar em contato com gente que tinha outro tipo de vida, nós não tínhamos o direito de intervir na família do índio. Dizíamos: “Você, se alguém mexer com uma irmã sua, o que você faz?” “Ih, meu Deus do céu, eu mato na mesma hora”. “Então, por que você acha que o índio não pode matar você, se não respeitar a família dele?”. Nunca tivemos uma dor de cabeça com eles.

“Explicamos a eles que iriam entrar em contato com gente que tinha outro tipo de vida, nós não tínhamos o direito de intervir na família do índio”.

Não demorou muito houve um conflito do Coronel Vanique com o marechal Dutra, que era o ministro da Guerra. Quando o Dutra assumiu o governo da República, em 1947, o primeiro ato dele foi destituir o Coronel Vanique. E fui nomeado.

Nós já estávamos no Xingu. O lema da expedição, de marcar pontos ideais para futuros núcleos de povoamentos, caiu por terra, porque aquilo era uma área indígena. Aí o brigadeiro Eduardo Gomes, o dono das rotas aéreas, abriu o mapa do Brasil, chamou o general Fortes, que era amigo dele, e disse: “Eu quero um campo aqui, aqui e aqui”. Na direção de Manaus.

Na época, a ligação aérea era feita pela faixa litorânea. Demorava seis horas a mais para chegar em Manaus. E ele queria fazer pelo Centro do País. Do Xingu fomos seguindo. Nós tínhamos combinado com a aviação que a cada 150 quilômetros a gente abriria campos de pouso para novo reabastecimento. Encontrávamos índios e fazíamos a aproximação. Presentes, não dávamos, porque nós quase não tínhamos nada. Éramos uma expedição muito pobre. Uma manhã, os homens não quiseram sair da rede, estavam com saudade de comer arroz. Nós estávamos comendo só macaco.

A Expedição Avança

No qual os irmãos montam o principal acampamento e começam a substituir seus trabalhadores por índios.

Avançamos com a expedição e chegamos ao Jacaré. Fizemos uma grande base em Jacaré. Começaram a descer aviões grandes, Douglas. Foi o ponto de apoio para explorações aéreas para o interior. A Luz del Fuego (conhecida vedete da época) queria fazer um filme, A Virgem do Roncador. Arranjaram autorização e começou a chegar avião com material. Aí meti uma cartinha para o Rondon e ele mandou suspender.

O Leonardo ficou tomando conta do Jacaré. O Cláudio e eu descemos, no rumo remoto de Cachimbo. Começamos a substituir os trabalhadores por índios. Chegamos a um lugar chamado Iararu. Era um lugar onde tinha índio bravo, tinha um Suyá bravo, um juruna bravo, e já começamos a ter notícia dos Txukarramães. Encontramos a foz de um rio, à direita, que era o Suyá-Missú. Pouco abaixo vimos um descambado; bonito, bom para fazer um campo.

E fizemos ali o Diauarum, que quer dizer onça preta na língua do índio. Isso já era em fins de 1947. No ano seguinte, 1948, estávamos no Rio Teles Pires. Ali nós fizemos a atração dos índios Kayabi. Nós íamos seguir depois, por um certo ponto, mas os Kayabis disseram para não ir, que não passava. Tinha os Ipeuí, que depois nós fizemos a atração e chamamos de Kree-akores, ou Paranás. Os Kayabis disseram: “Lá vocês não passam por que é muito difícil. Eles fazem armadilha. Eles pegam um pedaço de buriti, que é que nem uma rolha, e metem um espinho lá no meio, deste tamanho, e jogam folha em cima”.

Além de ficar com receio, não podíamos prescindir da colaboração dos Kayabis. Então, mandamos todos os trabalhadores embora e ficamos só com os Kayabis. Queríamos chegar lá em cima, na Serra do Cachimbo, para fazer o campo. Havia um empenho grande da Aeronáutica, de urgência. Fizemos uma exploração de avião, com um Norduyn, e vimos um lugar onde os índios tinham posto Fogo. O piloto, João Carlos, disse: “Eu desço, eu desço com o avião aí!”. E fizemos um plano de descer com o avião lá.

Saímos do Jacaré num avião menor, um Stinson. Na frente saiu o Norduyn. Mas esse aviãozinho maldito (o Stinson), quando ele está alto - e lá é sempre cheio de morro - faz gelo no carburador. Ele começa a cair. Então você baixa o avião, vai rente com a mata, o gelo derrete, ele anda, mas você encontra um morrote não pode subir. Quando nós chegamos em certa altura, o avião entrou em pane.

O Leonardo ia sentado no banco de trás, com um caixote que ia até o pescoço. Não podia nem olhar para fora. O Cláudio, sentado ao seu lado. Eu na frente com o piloto. Aí o avião entrou em pane, começou a cair.

A gente falava com o Norduyn, pelo rádio: “Estamos caindo”. Para disfarçar um pouco o medo, fui transmitindo meu testamento: a distribuição das coisas que eu tinha no campo, em Jacaré. Com a perda de altura, junto da mata, perdemos o Norduyn de vista. Nós não tínhamos bússolas e eles é que estavam dando a direção. O nosso piloto conseguiu fazer a volta. Uma hora, depois de quase bater num morro, ele disse: “Vou placar, segura, que vou placar!”. E caímos, bem no campo do Jacaré.

Aí a coisa ficou ruim. Como é que nós vamos descer no Cachimbo? Nós tínhamos um outro avião chamado Fairchild, e que era a menina dos olhos da nossa aviação. Resolvemos tentar com ele. Esse tinha bússola, tinha tudo. Nós resolvemos consultar o brigadeiro Amorim, o responsável. Mandamos um rádio muito simples, pedindo licença para uma aterrissagem de emergência. O brigadeiro respondeu ao rádio: emergência, é uma coisa imprevista, você não pode pedir autorização para um imprevisto. Aí o Amorim passou um rádio pra gente, duro. Na ultima linha, disse: “Confio no discernimento de vocês”.

Lá fomos nós com a menina dos olhos da aviação. Chegamos na queimada, ele pum, desceu, foi, foi, foi, parou. Parou, nós pulamos fora e já com o facão limpamos todos os obstáculos que o piloto havia sentido. Dali a pouco chegou o Norduyn. Desceu, descarregou as coisas para o acampamento. Pouca coisa, que eles ficaram com medo por causa da aterrissagem. Depois todos foram embora. Ficamos o Cláudio, o Leonardo, eu, um índio adulto e um menino, o Piunin. Há uns 30, 40 metros tinha um córrego. E claro que nós fomos lá tomar água. O Leonardo pegou e pendurou o facão dele num arbusto. Quando voltamos não estava mais o facão. Tinha índio escondido ali. Eram os Kreen-akores.

“O Leonardo pegou e pendurou o facão dele num arbusto. Quando voltamos não estava mais o facão. Tinha índio escondido ali”.

Aí tínhamos que subir a serra, porque o campo seria lá em cima. A serra do Cachimbo é um descampado. Transportamos a carga, chegamos lá, fizemos o acampamento. Então começamos a fazer o campo. Nós três, porque o Piunin era menino, o outro índio ficava na cozinha tomando conta do rancho. Nós vimos aquele descampado e ficamos contentes. Eh, aqui nós fazemos um campo em dois dias! Aqui pusemos fogo no capim, apareceu aquele chão, parecia uma cara de catapora, tanta pedra. A sorte é que nós tínhamos levado marreta.

Começamos a quebrar pedra, na marreta. Mas durante o dia não era possível. A quantidade de pium (tipo de inseto) era tão grande que nós trabalhávamos com um saco de estopa na cabeça, com dois furos para poder enxergar. Mais aí acabou não dando mesmo, porque o calor no Cachimbo é uma loucura. Então trabalhávamos à noite, quando o pium não ataca.

E nós quebrávamos pedra, quebrávamos, quebrávamos. A comida começou a acabar. Aí terminou de vez. Eu falei: “Vamos tocar fogo naquele capinzal, daqui a três dias começa a vir broto e vem bicho para comer esse broto”. Um dia, cedinho, sete horas da manhã, de repente a gente olha tem um veado no meio do campo. O Leonardo saiu agachado, passou a mão na 22 e saiu margeando o campo. E a gente aqui torcendo. O Leonardo chegou pertinho do veado. Foi indo, indo e não atirava. E a gente: é um imbecil. Um imbecil, em vez de ele dar um tiro no veado, já está quase na bunda do veado. De repente o Leonardo levantou. O veado olhou para ele e deu no pé.

Saíram cinco índios de trás da moita atrás do veado. Ai o Leonardo voltou: “Eu não atirei no veado, por que estava com imbira (colar) no pescoço. Era um veado manso de índio”.

Deu para viver, catando côco, comendo tatu, um ou outro veadinho. De vez em quando, peixe. Os índios não queriam atacar, estavam só vigiando. O campo ficou com 800 metros. Depois que terminamos o Cachimbo, em seis meses, eu e o Cláudio voltamos para o rio Teles Pires. Encontramos umas áreas de mata muito bonita, perto de um rio. Ali nasceu Alta Floresta (hoje com 67 mil habitantes). Terminado o campo de Cachimbo, veio a grande reivindicação. Eles queriam uma estrada que ligasse o Cachimbo principalmente com o Norte. Cachimbo-Rio Tapajós, que ter navegação franca com bases militares. E queriam ligação com outro campo que iria surgir lá, Jacareacanga. A distância seria, por terra, uns 600 quilômetros até Jacareacanga.

Deram essa atribuição para o 9º Batalhão de Engenharia de Construção. Mas antes fixaram o plano de abrir ali uma picada, que seria o eixo da futura estrada. Talvez não fosse o mesmo lugar da estrada, mas seria o reconhecimento de toda a área. Essa picada começou no Cachimbo. O Cláudio, que tomou conta dela, foi tocando. Foi uma das fases mais duras da expedição, porque eram 600 quilômetros da base e não havia recursos. Terreno muito acidentado, muita mata.

Nessa altura, o Parque (Nacional do Xingu) já estava com uma dinâmica muito grande. Eu e o Leonardo já tínhamos saído para lá. Dez anos depois da picada pronta, o governo veio vindo com a estrada. Depois de Cachimbo, seguiu as informações que a picada tinha dado, até o Rio Tapajós. Era a Cuiabá-Santarém.

Parque Indígena do Xingu

No qual Orlando é nomeado diretor do Parque, Leonardo morre e em 1967, Orlando Villas Boas foi nomeado diretor do Parque Nacional do Xingu, criado pelo Presidente Jânio Quadros. Com a unificação do parque, ele e Cláudio passaram Para a Fundação Nacional do Índio, FUNAI. Leonardo morreu doente, em 1961, no Araguaia, onde vivia. Cláudio já em São Paulo, em 1998. Orlando é assessor especial da presidência da Funai, de onde já foi demitido (e readmitido) três vezes. Tem também uma pensão especial, dada pelo governo do Estado de São Paulo. Vive na Lapa, em uma casa com grande quintal. Mas morre de saudades do mato.

História um Sonho que Vinha da Colônia

A Marcha para o Oeste já era um forte sentimento no Brasil Colônia. E não se tratava só de ocupar essa banda remota do País. Mas de mudar a capital. Qualquer aprendiz de estrategista sabia que o Rio era uma cidade vulnerável, à beira-mar.

Às portas da República, na década de 1870, Luiz Cruz, um especialista, fez estudos profundos e deu por inteiramente viável a ocupação do Oeste. Situou a futura capital em Goiás, mais ou menos onde hoje está Brasília. Mas não havia dinheiro para a empreitada. Durante a Segunda Guerra, os japoneses tomaram as fontes de produção látex da Ásia, que abasteciam o Ocidente. A Amazônia brasileira, que desde a Primeira Guerra perdera a primazia do mercado, passou a ser o celeiro da borracha necessária às tropas aliadas. “Com isso, voltou-se a discutir a idéia de o Brasil se interiorizar” - ensina o professor Edgard Carone, do Departamento de História da USP. E Getúlio Vargas baixou as ordens que resultaram na Expedição Roncador-Xingu. “A expedição teve um valor histórico. A marcha prenunciou a ocupação posterior, que vai ser de Juscelino Kubitschek”.

Carone diz que o primeiro passo de projetos desse tipo é muito importante: “O problema de continuidade sempre depende das circunstâncias” Hoje, afirma, a ocupação é rápida. Mas antes era demorada, tudo era muito difícil, pois os recursos eram menores Carone considera que João Alberto Lins de Barros, nomeado por Getúlio Vargas para comandar a marcha para o Oeste, “tentou desenvolver na prática a idéia de ocupar o máximo possível essas regiões”. João Alberto era o ministro plenipotenciário da coordenação da mobilização econômica no tempo da guerra. A ocupação posterior, de Kubitschek, diz Carone, foi possível devido a vários fatores. “O Estado precisou esperar o desenvolvimento da indústria siderúrgica, de carros, e outras para ter condições de promover a ocupação”. O professor Carone considera importante a atuação dos Irmãos Villas

Boas na expedição: “Eles são notáveis”.

Casos do Centro-Oeste

1. Mané Baiano, um dos sertanejos, contava histórias de reis. Não repetia história. A princesa ficou doente e o rei prometeu dá-la em casamento a quem a curasse. Mas se o pretendente falhasse na cura, morria. Muitos tentaram e morreram. Um dia vem um príncipe como remédio certo. Quando chega na porta do palácio, a bruxa vem correndo: “Príncipe, dá esse remédio para mim. A princesa é moça, resiste. Eu sou velhinha”... O Umbelino, o ouvinte mais atento, agarra no braço do narrador: “Mané, fala pro príncipe dá um tiro de 44 no peito dessa véia”. Os outros: “Fica quieto, Umbelino, não tá vendo que é causo?”. Umbelino: “É causo, sei. Mas não tem quem guente”.

2. O Presidente Getúlio Vargas ia visitar o acampamento. Orlando foi incumbido de organizar as boas-vindas. Reuniu os homens e explicou que o Presidente ia chegar, precisavam ensaiar uma recepção. “Quando o Presidente aparecer eu grito: ‘Viva o Presidente’. e vocês respondem: Viva”. Foram ensaiar. Orlando gritou “Viva o Presidente”. Ninguém respondeu. “O que está acontecendo?” - perguntou Orlando. “A gente espiou e não viu ninguém chegando” - justificou um dos homens. “Mas é só um ensaio” - replicou Orlando. Tentou de novo. Outra vez ninguém respondeu. Orlando não desanimou. Explicou várias vezes. No dia da visita, diante de Getúlio Vargas, o sertanista enche os pulmões e grita: “Viva o Presidente!” Ninguém respondeu.

3. Os Villas Boas comemoraram as datas nacionais. Num Sete de Setembro, Orlando reuniu os sertanejos: “Hoje é Dia da Independência, ninguém trabalha”.

- Seu Villa, dá licença? - era o Umbelino.

- Diga - diz Orlando.

- É que eu conheci ela.

- Ela quem?

- A Dependença.

- Que dependência é essa?

- Melhor cadela pra correr paca que eu já vi.

No dia 1º de janeiro, Orlando anuncia que é “dia de todos os povos”.

- Licença, dia do que? - pergunta um trabalhador.

- Dos povos.

- Ah bom, tinha entendido dos ovos.

– Blog e Livro

Os artigos relativos ao “Projeto–Aventura Desafiando o Rio–Mar”, Descendo o Solimões (2008/2009), Descendo o Rio Negro (2009/2010), Descendo o Amazonas I (2010/2011), e da Travessia da Laguna dos Patos I (2011), estão reproduzidos, na íntegra, ricamente ilustrados, no Blog http://desafiandooriomar.blogspot.com.

O livro “Desafiando o Rio–Mar – Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS, na rede virtual da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura.com.br) e na Livraria Dinamic – Colégio Militar de Porto Alegre.

Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link: http://books.google.com.br/books?id=6UV4DpCy_VYC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false.

Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA); Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS); Vice-Presidente da Academia de História Militar Terrestre do Brasil/Rio Grande do Sul; Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS); Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.

Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br

E–mail: hiramrs@terra.com.br

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