Essa gente deveria legislar para coibir a prática de crimes, não se entregar a ela.
Após se enredar em corrupção, improbidade administrativa, tráfico de influência, nepotismo, desvio de recursos públicos e outros crimes pomposos, o Senado fornece mais um indício da deterioração da qualidade dos homens públicos brasileiros. Dessa vez, um grupo de pelo menos 20 senadores é acusado de cometer um delito rasteiro: a pirataria. Eles são suspeitos de ter se apropriado de um livro escrito por um consultor legislativo. Segundo alegação do autor, inicialmente aceita pela Justiça, fizeram várias edições da obra na gráfica do Senado, puseram suas fotos na capa e a distribuíram país afora. Tudo sem o conhecimento ou autorização do escritor, que está processando a União para receber direitos autorais, numa conta que pode ultrapassar R$ 13 milhões.
Entre os acusados, estão dois ex-presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) e Tião Viana (PT-AC), além de parlamentares de diversos partidos e estados: o primeiro-secretário da Casa, Heráclito Fortes (DEM-PI), os líderes do DEM, José Agripino Maia (RN), e do PDT, Osmar Dias (PR), Valdir Raupp (PMDB-RO), Lucia Vânia (PSDB-GO), Paulo Paim (PT-RS), Mário Couto (PSDB-PA) e Sérgio Zambiasi (PTB-RS). Em decisão preliminar, a juíza Maria Cecília de Marco Rocha, da 6ª Vara da Justiça Federal em Brasília, deu razão aos acusadores. Determinou a suspensão da edição e da distribuição do livro, além de sua retirada da página do Senado na internet.
“Os documentos evidenciam, até segunda ordem, que a obra foi indevidamente reproduzida por parlamentares, que nela anotaram seus nomes e inseriram suas fotografias, e disponibilizada no site do Senado (visitei a página e a obra ainda está disponível)”, escreveu a juíza em 9 de março. Ela reconheceu que, ao contrário do que argumentam os senadores e a Advocacia-Geral da União (AGU) em sua defesa, existem provas mais do que suficientes de que o consultor é autor do livro. Deferiu o pedido liminarmente para evitar a “perpetuação do dano”, com a possível distribuição do livro, em ano eleitoral, por outros parlamentares. A juíza estabeleceu uma multa diária de R$ 100 por descumprimento da determinação.
O economista Edward Pinto da Silva, que já foi secretário do Trabalho do Distrito Federal, se aposentou como consultor legislativo do Senado. Na época em que trabalhava no gabinete do então senador Henrique Santillo, em 1983, escreveu o “Manual do vereador”. A obra didática era dedicada a variados temas de interesse dos parlamentares municipais, passando pelas atribuições constitucionais dos vereadores, o processo legislativo, a redação de projetos, resoluções e pareceres e até a organização de fóruns comunitários. O livro é tido como referência imprescindível na área e já sofreu várias atualizações, com as últimas versões denominadas “Guia do vereador do terceiro milênio”.
“O manual tem uma aceitação extraordinária porque muitos vereadores recém-eleitos caem de paraquedas e não sabem fazer nada na Câmara”, diz um dos advogados do consultor aposentado, do escritório A.W. Galvão & Filhos. Alguns parlamentares, como o próprio Santillo, o então deputado Cunha Bueno, e o então senador Roberto Requião, pediram autorização para editar o livro e distribuí-lo nas suas bases eleitorais. Nesses exemplares, juntados ao processo, fica claro que a obra é mesmo do economista. Seu nome consta da ficha técnica como autor. Mais recentemente, o senador Demóstenes Torres (PMDB-GO) também foi autorizado por Silva a fazer edições, como ficou demonstrado nas ordens de serviço da gráfica do Senado.
Diante do sucesso do livro, Silva quis lançá-lo no mercado. Encontrou uma editora, que iria colocar a obra na praça a um preço de R$ 80 cada. A empresa desistiu na última hora, sob o argumento de que o texto estava, na íntegra, no site do Senado. O escritor, autor de vários outros livros sobre administração pública, garante que só aí percebeu o uso indevido da obra. Ao investigar, descobriu que o manual vinha sendo repetidamente impresso na gráfica do Senado. Os advogados já encontraram ordens de serviço de 132 mil exemplares sem o recolhimento de direitos autorais. Os parlamentares distribuem o guia para os vereadores de suas regiões, numa ação de marketing eleitoral.
Silva tentou receber administrativamente o dinheiro a que teria direito, mas a Mesa do Senado negou o pedido. O argumento, repetido na defesa feita pela AGU, é de que a elaboração do livro fazia parte das suas atribuições como funcionário do Senado, o que os advogados negam. “Ele é um autor conhecido na área. Sempre escreveu seus livros nos momentos de folga”, diz um deles. No entendimento da AGU, as cópias não autorizadas do manual não feriram a Lei 9.610, que protege os direitos autorais. Os advogados da União também argumentam que o trabalho de Silva foi apenas de atualização de um material originalmente escrito por Santillo. Para rebater essa alegação, o processo traz várias cartas atestando a autoria.
Uma delas foi escrita pelo então presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães (PMDB-SP). “Edward Pinto da Silva publica trabalho de indiscutível valia para a política e a administração dos municípios. É um roteiro seguro, traçado por mãos hábeis e de especializada erudição”, assinalou o deputado. Na apresentação dos exemplares distribuídos que mandou editar, o então senador Roberto Requião escreveu: “Agradeço a gentileza do Dr. Edward Pinto da Silva, (...), autor deste guia, em ceder os originais para que pudesse editá-lo, como agora o faço, e oferecê-lo aos vereadores do meu estado do Paraná”. A juíza preferiu acreditar nesses depoimentos, em detrimento dos argumentos da AGU.
Os advogados da União recorreram da decisão e o caso está em análise no Tribunal Regional Federal. Além da ação civil de indenização, a ser paga pelo contribuinte, os senadores estão sujeitos a um processo criminal, com base no artigo 184 do Código Penal, que prevê prisão de até um ano. A Lei de Direitos Autorais tipifica o que eles fizeram como contrafação. Em segredo, diversos consultores legislativos, ainda na ativa, torcem por Silva. De forma entusiasmada. Por um motivo simples: obras suas também foram usurpadas pelos senadores. Pelo que se sabe, isso é comum. Essa gente deveria legislar para coibir a prática de crimes, não se entregar a ela.
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