sábado, 29 de maio de 2010

A GRANDE PROSTITUTA

Leitura para curtir aos poucos durante o fim de semana.
Desvendando mais um "mito cultural" brasileiro.

por Janer Cristaldo
(Idealizado pela editora Cia. das Letras o seminário Acadêmico Internacional sobre Jorge Amado promove hoje (24/5) e amanhã (25/5) palestras sobre o universo do escritor baiano e sua criação literária.
Coordenado pelo departamento de Antropologia da FFLCH/USP, Prof. Dr. Júlio Assis Simões, Profa. Doutora Heloísa Buarque de Almeida e Profa. Doutora Laura Moutinho.

Claro que nenhum dos professores doutores vai abordar o passado nazista e stalinista de Amado.
Para que a memória não se perca, aqui vai minha singela contribuição ao evento.
Este artigo foi publicado na revista Brazzil, em Los Angeles, 1998.
Jamais seria publicado na imprensa brasileira).

A palavra bordel, para quem não sabe, nasce em Paris. Na época em que as "maisons closes" ficavam às margens do Sena, quando alguém ia em busca de mulheres, dizia eufemisticamente: "j'vais au bord'elle". Sena, em francês, é palavra feminina, la Seine. Portanto, quando alguém dizia "au bord'elle", queria dizer "au bord de la Seine". Daí, bordel. Não é de espantar que a capital que deu ao mundo esta palavra queira homenagear, nos dias 20 e 25 de março próximos, no 18º Salão do Livro de Paris, a prostituta maior das letras contemporâneas.
O Brasil será o país homenageado do Salão e terá como convidado de honra e representante de nossas Letras, Jorge Amado, o mais vendido escritor nacional, que começou sua carreira como estafeta do nazismo, continuou como agente do stalinismo e hoje é roteirista oficioso de Roberto Marinho. Amado ainda receberá, na ocasião, o título de Dr. Honoris Causa por uma universidade parisiense. Nada de espantar: os parisienses, de longa tradição colaboracionista e stalinista, não perderiam esta oportunidade de homenagear, neste século que finda, o colega que desde a juventude militou nas mesmas hostes.

Do nazismo ao stalinismo
Autor brasileiro mais divulgado no exterior, com traduções em mais de 40 idiomas, colaborador de publicações nazistas, ex-militante do Partido Comunista, deputado constituinte em 46, Oba Otum Arolu do candomblé Axé Opô Afonjá na Bahia, membro da Academia Brasileira de Letras, Amado nasceu em uma fazenda de cacau, em 10 de agosto de 1912, no então recém-criado município de Itabuna, na Bahia, filho de pai sergipano e mãe baiana de ascendência indígena.
Em 1936, é preso no Rio, em conseqüência da Intentona de 35, tentativa de tomada do poder ordenada pelo Kremlin e liderada no Brasil por Luís Carlos Prestes. Em 1940, durante a vigência do pacto de não-agressão germano-soviético, assinado por Stalin e Von Ribbentrop, assume a edição da página de cultura do jornal pró-nazista Meio-Dia. Em uma reunião do Partido Comunista, é denunciado por Oswald de Andrade como "espião barato do nazismo" e instado pelo escritor paulista a retirar-se de São Paulo. Quando interrogado sobre o trabalho sujo deste período, Amado diz simploriamente: “Não me lembro”. Mas Oswald de Andrade lembra. Em antiga entrevista, republicada mais recentemente, em Os Dentes do Dragão, dizia Oswald:
"Diante de tantos erros e mistificações, retirei a minha inscrição do partido. Numa reunião da comissão de escritores, diante de quinze pessoas do PC, apelei para que o sr. Jorge Amado se retirasse de São Paulo e denunciei-o como espião barato do nazismo, antigo redator qualificado do Meio-Dia. Contei então, sem que Jorge ousasse defender-se, pois tudo é rigorosamente verdadeiro, que em 1940 Jorge convidou-me no Rio para almoçar na Brahma com um alemão altamente situado na embaixada e na agência Transocean, para que esse alemão me oferecesse escrever um livro em defesa da Alemanha. Jorge, depois me informou que esse livro iria render-me 30 contos. Recusei, e Jorge ficou surpreendido, pois aceitara várias encomendas do mesmo alemão".
Em 45, Amado é eleito deputado federal pelo Partido Comunista e publica Vida de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, uma apologia ao líder comunista gaúcho e membro do Komintern. O panfleto, encomendado pelo Kremlin, foi traduzido e publicado nas democracias ocidentais e nas ditaduras comunistas, como parte de uma campanha para libertar Prestes da prisão, após sua sangrenta tentativa, em 1935, de impor ao Brasil uma tirania no melhor estilo de seu guru, o Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, mais conhecido como Stalin. Para Amado, Prestes, é o “Herói, aquele que nunca se vendeu, que nunca se dobrou, sobre quem a lama, a sujeira, a podridão, a baba nojenta da calúnia nunca deixaram rastro".
Prestes preso, segundo o escritor baiano, é o próprio povo brasileiro oprimido: “Como ele o povo está preso e perseguido, ultrajado e ferido. Mas como ele o povo se levantará, uma, duas, mil vezes, e um dia as cadeias serão quebradas, a liberdade sairá mais forte de entre as grades. ‘Todas as noites têm uma aurora’, disse o Poeta do povo, amiga, em todas as noites, por mais sombrias, brilha uma estrela anunciadora da aurora, guiando os homens até o amanhecer. Assim também, negra, essa noite do Brasil tem sua estrela iluminando os homens, Luís Carlos Prestes. Um dia o veremos na manhã de liberdade e quando chegar o momento de construir no dia livre e belo, veremos que ele era a estrela que é o sol: luz na noite, esperança; calor no dia, certeza”.
Em 46, como constituinte, Amado assina a quarta Constituição Brasileira. Dois anos depois, seu mandato é cassado em virtude do cancelamento do registro do PC. Neste mesmo ano, 1948, fixa residência em Paris, onde convive, entre outros, com Sartre, Aragon e Picasso. Em 1950, passa a residir no Castelo da União dos Escritores, em Dobris, na ex-Tchecoslováquia, onde escreve O Mundo da Paz, uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja. No ano seguinte, quando o livro é publicado, recebe em Moscou o Prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto de sua obra, condecoração geralmente omitida em suas biografias.
Esta década é marcada por longas viagens, entre outras, à China continental, Mongólia, Europa ocidental e central, à ex-União Soviética e ao Extremo Oriente.
Vós sabeis, amigos, o ódio que eles têm - os homens de dinheiro, os donos da vida, os opressores dos povos, os exploradores do trabalho humano - a Stalin. Esse nome os faz tremer, esse nome os inquieta, enche de fantasmas suas noites, impede-lhes o sono e transforma seus sonhos em pesadelos. Sobre esse nome as mais vis calúnias, as infâmias maiores, as mais sórdidas mentiras. ‘O Tzar Vermelho’, leio na manchete de um jornal. E sorrio porque penso que, no Kremlin, ele trabalha incansavelmente para seu povo soviético e para todos nós, para toda a humanidade, pela felicidade de todos os povos. Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem os dentes. Mas até Stalin se eleva o amor de milhões, de dezenas e centenas de milhões de seres humanos. Não há muito ele completou 70 anos. Foi uma festa mundial, seu nome foi saudado na China e no Líbano, na Romênia e no Equador, em Nicarágua e na África do Sul. Para o rumo do leste se voltaram nesse dia de dezembro os olhos e as esperanças de centenas de milhões de homens. E os operários brasileiros escreveram sobre a montanha o seu nome luminoso”.
Em função de sua militância no PC, no início de sua trajetória foi traduzido na China, Coréia, Vietnã e ex-União Soviética. Só depois então é puxado para os países ocidentais, pelas mãos de seu tradutor para o alemão. Em Munique, em 1978, entrevistei Curt Meyer-Clason, o responsável pela introdução de Amado na Europa ocidental. O baiano invade com sua literatura o mundo livre, que tanto caluniou, através da finada República Democrática Alemã. “Devido à proteção do PC, a RDA incumbiu-se da publicação de todos os seus livros, já nos anos 50” -disse-me Meyer-Clason -. “Depois, por meu intermédio, passou diretamente à República Federal da Alemanha”. Não por acaso, Meyer-Clason acaba de ser denunciado, pela revista alemã Der Spiegel, como espião do Terceiro Reich no Brasil.
Da mesma forma que nega seu passado nazista, Amado não comenta seu passado stalinista. Em seu último livro, Navegação de Cabotagem, declara:
"Durante minha trajetória de escritor e cidadão tive conhecimento de fatos, causas e conseqüências, sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva. Deles soube devido à circunstância de militar em partido político que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade, desenvolvendo inclusive ações subversivas. Tantos anos depois de ter deixado de ser militante do Partido Comunista, ainda hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a atividade do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo real chega a seu triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso assumido de não revelar informações a que tive acesso por ser militante comunista. Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância e não traga conseqüência alguma, mesmo assim não me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança. Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotações, morrem comigo".

Realismo Socialista
Em 1954, julgando talvez insuficiente a defesa do stalinismo feita em O Cavaleiro da Esperança e O Mundo da Paz, Amado publica os três tomos de Subterrâneos da Liberdade, onde pretende narrar a saga do Partido Comunista no Brasil. Só em 58, com Gabriela, Cravo e Canela, deixará de lado sua militância comunista e passará a fazer uma literatura eivada de tipos folclóricos baianos, que mais tarde será transposta em filmes nacionais e novelas da Rede Globo.
O romancista baiano foi o introdutor nas letras brasileiras do realismo socialista, também conhecido como zdanovismo, fórmula de confecção literária para a pregação do ideário comunista, concebida pelos escritores russos Maxim Gorki, Anatoli Lunacharski, Alexander Fadéev, e sistematizada pelo coronel-general Andrei Zdanov.
Nos países em que foi traduzido, Amado é visto como um escritor que faz literatura brasileira. Em verdade, obedecia a uma fórmula tosca, mais panfletária que estética, produzida por teóricos em Moscou. Wilson Martins, em A História da Inteligência Brasileira, traduz em bom português as características do novo gênero:
De um lado, os bons, ou seja, os que se incluem na “chave” mística do “trabalhador”, do “operário”; de outro lado, os maus, isto é, todos os outros mas, em particular, o “proprietário” e a “polícia”, as duas entidades arimânicas deste singular universo. Os primeiros são honestos, generosos, desinteressados, amigos da instrução e do progresso, patriotas, bons pais de família, sóbrios, artesãos delicados, técnicos conscienciosos, empregados eficientes (embora revoltados), imaginativos e incansáveis, focos de poderoso magnetismo pessoal, cheios de inata vocação de comando e, ao mesmo tempo, do espírito de disciplina mais irrepreensível, corajosos, sentimentais, poetas instintivos, sede de paixões e violências (oh! no bom sentido!), modelos de solidariedade grupal, argumentadores invencíveis, repletos, em suma, de uma nobreza que em torno deles resplandece como um halo. O “trabalhador” é o herói característico desses romances de cavalaria: sem medo e sem mácula, ele tem tantas relações com a realidade quanto o próprio Amadis de Gaula.
Já o “proprietário” é um ser asqueroso e nojento, chafurdando em todos os vícios, grosseiro, bárbaro, corrupto, implacável na cobrança dos seus juros, lascivo na presença das viúvas jovens e perseguidor feroz das idosas, barrigudo, fumando enormes charutos, arrotando sem pudor, repleto de amantes e provavelmente de doenças inconfessáveis, membro da sociedade secreta chamada “capitalismo”, onde, como todos sabem, é invulnerável a solidariedade existente entre seus membros; indivíduo que favorece todos os deboches, inclusive dos seus próprios filhos; covarde, desonesto, egoísta, ignorante, vendido ao dólar americano, lúbrico, marido brutal e pai perverso, irritante e antipático, rotineiro, frio como uma enguia, incapaz de sinceridade, sem melhores argumentos que a força bruta, verdadeira encarnação contemporânea dos demônios chifrudos com que a Idade Média se assustava a si mesma.
Wilson Martins continua enumerando detalhadamente os demais estereótipos utilizados neste tipo de romance, entre eles a polícia, o tabelião, o posseiro, o governador, o latifundiário, o camponês. Seria por demais monótono continuar a descrição deste universo maniqueísta, como tampouco teria sentido acompanhar a repetição - ad nauseam - de uma fórmula primária de fabricar livros.
Vamos então enfiar logo as mãos no lixo. Os Subterrâneos também foi escrito em Dobris, no mesmo castelo da União de Escritores Tchecoeslovacos onde Amado produzira O Mundo da Paz, de março de 1952 a novembro de 1953, ou seja, no período imediatamente posterior à obtenção do Prêmio Stalin. Como pano de fundo histórico temos, como não poderia deixar de ser, a Revolução de 1917.
Outras datas e fatos posteriores determinarão poderosamente a construção dos personagens. Em 1935, ocorre no Brasil a Intentona Comunista. Em 36, Prestes é preso, e sua mulher Olga Benário, judia alemã que é oficial do Exército Vermelho, é deportada para a Alemanha de Hitler. Getúlio Vargas consegue persuadir o Congresso e criar um Tribunal de Segurança Nacional para punir os insurgentes.
Ainda neste ano de 36, eclode na Espanha a Guerra Civil, confronto que envolveu todas as nações européias e constituiu uma espécie de ensaio geral para a Segunda Guerra, detonada em 1939, circunstância amplamente explorada por Amado. Em 1937, os integralistas lançam Plínio Salgado como candidato às eleições presidenciais de janeiro do ano seguinte, abortadas a 10 de novembro pelo golpe com que Getúlio consolida o Estado Novo. Para desenvolver sua história, Amado fixará um dos mais turbulentos períodos deste século, que até hoje continua gerando rios de bibliografia. A ação de Os Subterrâneos situa-se precisamente entre outubro de 37 (às vésperas do Estado Novo e em meio à Guerra Civil Espanhola) e finda aos 7 de novembro de 39, 23º aniversário da proclamação do regime soviético na Rússia.
Amado, escritor e militante, tem por incumbência várias missões. A primeira consiste na defesa dos ideais de 17, encarnado em Lênin e Stalin, potestades várias vezes invocadas ao longo dos três volumes. Segunda, fazer a defesa do Messias que salvará o Brasil, Luís Carlos Prestes, e não por acaso a trilogia encerra-se com seu julgamento. Missões secundárias, mas não menos vitais: denunciar o imperialismo ianque, condenar a dissidência trotskista, pintar Franco com as cores do demônio e fustigar Getúlio por ter esmagado a atividade comunista a partir de 35.
Seus personagens são títeres inverossímeis e sem vontade própria, embebidos em álcool se são burgueses, ou imbuídos de certezas absolutas, mais água mineral, se são operários ou militantes, estes sempre obedientes aos ucasses emitidos às margens do Volga. A obra, composta por três volumes - Os Ásperos Tempos, Agonia da Noite e A Luz no Túnel - constituiria apenas a primeira parte de uma trilogia mais vasta, com pretensões a ser o Guerra e Paz brasileiro. Os três tomos são publicados em maio de 1954, um ano após a morte de Stalin e dois antes do XX Congresso dos PCURSS, o que obriga o autor a interromper seu projeto. Pela segunda vez, na trajetória literária de Amado, sua ficção será determinada não por uma análise da realidade brasileira, mas por decisões tomadas em Moscou.

A onipresença do novo Deus
O personagem por excelência do romance é o Partido Comunista, onipresente como o antigo deus cristão e feito carne na figura de Stalin. A luta do PC é a luta - na ótica do autor - do povo brasileiro contra a tirania, no caso, Getúlio Vargas. Externamente, os inimigos são os Estados Unidos da América, a Alemanha, Franco e Salazar. Sem falar, é claro, na IV Internacional e nos trotskistas. O PC está infiltrado na classe dominante, disperso na classe média e fervilha nos meios operários. Invade as cidades e o campo, a pampa e a floresta, os salões burgueses, as fábricas e os portos, corações e mentes.
Quantos outros, do Amazonas ao Rio Grande do Sul”, - reflete o militante Gonçalo -“não se encontravam nesse momento na mesma situação que ele, ante problemas complicados e difíceis, devendo resolvê-los, sem poder discutir com as direções, sem poder consultar os camaradas? Gonçalo sabe que os quadros do Partido não são muitos, alguns mil homens apenas na extensão imensa do país, alguns poucos milhares de militantes para atender à multidão incomensurável de problemas, para manter acesa a luta nos quatro cantos da pátria, separados por distâncias colossais, vencendo obstáculos infinitos, perseguidos e caçados como feras pelas polícias especializadas, torturados, presos, assassinados. Um punhado de homens, o seu Partido Comunista, mas este punhado de homens era o próprio coração da pátria, sua fonte de força vital, seu cérebro poderoso, seu potente braço. Esta onipresença extrapola o país, manifesta-se onde quer que andem os personagens, no Uruguai, França, Espanha, no planeta todo. Inevitáveis as referências à foice e ao martelo. E a Stalin, naturalmente, guia, mestre e pai.
A litania dirigida ao grande assassino tem por vezes características de humor negro: “- Quantos mais formos” - diz a militante Mariana - “mais trabalho terão os dirigentes. Pense em Stalin. Quem trabalha no mundo mais que ele? Ele é responsável pela vida de dezenas de milhões de homens. Outro dia li um poema sobre ele: o poeta dizia que quando todos já dormem, tarde da noite, uma janela continua iluminada no Kremlin, é a de Stalin. Os destinos de sua pátria e de seu povo não lhe dão repouso. Era mais ou menos isto que dizia o poeta, em palavras mais bonitas, é claro...” O poeta em questão é Pablo Neruda, já citado em O Mundo da Paz: “Tarde se apaga a luz de seu gabinete. O mundo e sua pátria não lhe dão repouso.
Consta de uma ode a Stalin, subtraída às Obras Completas do poeta chileno, onde, por enquanto, ainda se pode encontrar uma “Oda a Lenin”. Hoje, temos uma idéia precisa do que planejava Stalin nas madrugadas tardias de seu gabinete.
Quando Apolinário Rodrigues, por exemplo, (personagem calcado em Apolônio de Carvalho, oficial brasileiro exilado que participara da Intentona de 35) chega a Madri, sente-se em casa pois, para onde quer que se vire, lá está o Partido. A única cor local da capital espanhola parece ser a luta pela libertação de Prestes:
Quando chegara à Espanha, vindo de Montevidéu, vivera dias de intensa emoção, ao encontrar por toda a parte, no país em guerra, nas ruas bombardeadas das cidades e aldeias, nos muros da irredutível Madri, as inscrições pedindo a liberdade de Prestes. Cercava-o o calor da intensa solidariedade desenvolvida pelos trabalhadores e combatentes espanhóis para com os antifascistas brasileiros presos e, em particular, para com Prestes. (...) Era uma única luta em todo o mundo, pensava Apolinário, ante essas inscrições, o povo espanhol o sabia, e em meio às suas pesadas tarefas e múltiplos sofrimentos, estendia a mão solidária ao povo brasileiro.
A coincidência da instituição do Estado Novo com a explosão da Guerra Civil Espanhola é uma oportunidade única para Amado de inserir seus personagens no conflito internacional que redundaria na II Guerra, expondo ao mesmo tempo a linha do Partido. Tão única é esta oportunidade e tanto o autor quer aproveitá-la, que chega a deslocar para 1938 uma greve dos portuários de Santos, efetivamente ocorrida em 1946, o que aliás provocou um certo debate. Estaria Amado realmente sendo fiel ao método que “exige do artista uma representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário”, conforme proclamavam os estatutos da União de Escritores Soviéticos? Ao autor isto pouco importa.
Deslocando a greve para 38, pode criar um navio alemão que vem buscar, no Brasil, café para a Espanha. De uma só tacada, Amado fustiga Hitler, Getúlio e Franco:Em algumas palavras (o velho Gregório) historiou o motivo por que a direção do sindicato havia convocado essa sessão: o governo oferecera ao general Franco, comandante dos rebeldes espanhóis (“um traidor”, gritou uma voz na sala), uma grande partida de café. Agora se encontrava no porto um navio alemão (“nazista”, gritou uma voz na sala) para levar o café.” Na Guerra Civil Espanhola, segundo Amado, há apenas “nazistas alemães e fascistas italianos”.
Tão pródigo em elogios à Stalin e à União Soviética, em sua trilogia o autor silencia sobre a presença russa na Espanha, constituída por pilotos de guerra, técnicos militares, marinheiros, intérpretes e policiais. A primeira presença estrangeira em terras de Espanha foi a soviética, com o envio de material bélico e pessoal militar altamente qualificado, em troca das três quartas partes (7.800 caixas, de 65 quilos cada uma) das reservas de ouro disponíveis pelo Banco de España. Pagos adiantadamente. Silêncio de Amado: a representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário pode esperar mais um pouco.
A presença do Partido permeará a trilogia das primeiras páginas de Os Ásperos Tempos às últimas de A Luz no Túnel. Nestas, a militante Mariana, antes de presa, assiste ao julgamento de Prestes. A voz do líder comunista é “a voz vitoriosa do Partido sobre a reação e o terror”:
Eu quero aproveitar a ocasião que me oferecem de falar ao povo brasileiro para render homenagem hoje a uma das maiores datas de toda a história, ao vigésimo terceiro aniversário da grande Revolução Russa que libertou um povo da tirania...
Seria monótono e redundante perseguir esta onipresença do Partido na trilogia de Amado. Neste universo imperam o bem e o mal absolutos. O bem, evidentemente, é representado pelo novo Deus, o proletariado. O mal, pela burguesia detentora do capital. Entre um universo e outro transitam eventualmente seres camaleônicos, “traidores de classe” ou traidores do Partido. Dividir o universo em duas metades, uma boa e outra má, nada tem de novo e original.
Tal princípio vem do século III, através da doutrina do persa Mani. O espantoso é que continue a viger em pleno século XX, e mais: impondo gostos, comportamentos e até mesmo filiação partidária aos personagens de um romance. Os representantes do Bem amam. Os representantes do Mal têm amantes. Os bons bebem café ou água mineral. Os maus bebem cachaça ou uísque. Os bons são magros e idealistas. Os maus são gordos e mesquinhos. Os bons têm gargalhar sadio, os maus têm dentes podres. Os bons não têm posses. Os maus são proprietários. Os bons são pobres, os maus ricos. Os bons pertencem ao Partido ou com ele colaboram. Os demais são maus. Os bons, diga-se de passagem, estão aprisionados em tal camisa-de-força ideológica que sequer podem se dar ao luxo de gostar de pintura surrealista ou naïve.
Até 1954, Amado traduzirá em sua literatura as determinações do Partido Comunista russo. Em entrevista para Isto é (18/11/81), Amado reconhece seu stalinismo:
Não sei se o termo “realismo socialista” se aplica a todos os meus livros daquela época. Estariam em face do realismo socialista, mas o fato é que Jubiabá (1935), Mar Morto (1936) e Capitães de Areia (1937), do período ao qual você se refere, só puderam ser publicados em russo depois da morte de Stalin. Acredito que a classificação seja justa para Terras do Sem Fim (1943), Seara Vermelha (1946) e Subterrâneos da Liberdade (1954). Se existe um livro meu totalmente influenciado pelo stalinismo, é Subterrâneos da Liberdade, que reflete uma posição totalmente maniqueísta.
Denunciados os crimes do stalinismo por Kruschov, em 1954, dois anos depois Amado molha o dedinho na língua e o ergue ao ar, para sentir de onde sopram os ventos: o sentido da História é agora uma literatura popularesca, ao estilo da rede Globo. Passa então a produzir uma literatura de evasão em torno a motivos baianos. Não sem antes fazer um tímido e discreto mea culpa, publicado em 10 de outubro de 1956 pela Imprensa Popular:
Aproximamo-nos, meu caro, dos nove meses de distância do XX Congresso do PCUS, o tempo de uma gestação. Demasiado larga essa gravidez de silêncio e todos perguntam o que ela pode encobrir, se por acaso a montanha não vai parir um rato. Creio que devemos discutir, profunda e livremente, tudo o que comove e agita o movimento democrático e comunista internacional, mas que devemos, sobretudo, discutir os tremendos reflexos do culto à personalidade entre nós, nossos erros enormes, os absurdos de todos os tamanhos, a desumanização que, como a mais daninha e venenosa das árvores, floresceu no estrume do culto aqui levado às formas mais baixas e grosseiras, e está asfixiando nosso pensamento e ação. (...) Sinto a lama e o sangue em torno de mim, mas por cima deles enxergo a luz do novo humanismo que desejamos acesa e quase foi submergida pela onda dos crimes e dos erros.
Como se o simples fato de sentir “a lama e o sangue” em torno a si o redimisse das cumplicidades passadas. Mas as denúncias dos crimes do stalinismo não geraram nenhum tribunal de Nuremberg e Jorge Amado sente-se como um ingênuo, enganado pelos ventos do século. No entanto, não mais permite a reedição de O Mundo da Paz. Quanto à sua obra ficcional, embasada no realismo socialista, esta continua sendo reeditada e traduzida. Mas o agitprop baiano se vê obrigado a mudar de rumos e publica, em 1958, Gabriela, Cravo e Canela.
Em 61, lança Os Velhos Marinheiros, considerado um dos melhores momentos de sua literatura. Neste mesmo ano, é eleito membro da Academia Brasileira de Letras, instituição que havia apedrejado e insultado em sua juventude. No discurso de posse, com a inocência de um moleque que relembra travessuras passadas, reitera sua oposição à Casa que o recebe:
"Chego à vossa ilustre companhia com a tranqüila satisfação de ter sido intransigente adversário desta instituição naquela fase da vida em que devemos ser necessária e obrigatoriamente contra o assentado e o definitivo. Ai daquele jovem, ai daquele moço aprendiz de escritor que no início de seu caminho, não venha, quixotesco e sincero, arremeter contra as paredes e a glória desta Casa. Quanto a mim, felizmente, muita pedra atirei contra vossas vidraças, muito adjetivo grosso gastei contra vossa indiferença, muitas vaias gritei contra vossa compostura, muito combate travei contra vossa força".
Em resposta aos que o condenam, diz o escritor: "Mas tudo na vida obedece a formalidades e se eu sou socialista não quer dizer que ignoro o mundo formal que me rodeia". De Moscou, recebe o apoio de Ilya Ehremburg: "Amamos Jorge Amado e temos confiança nele. Eu só o vi numa fotografia levemente mais gordo, em fardão de acadêmico. Olhei e sorri. Aos acadêmicos brasileiros dão um luxuoso fardão. Além disso usam espadas como seus colegas franceses. Não há nada de mal em que o homem simples de ontem apareça uma vez por ano na roupagem de imortal".

De amores com o imperialismo ianque
Com a transposição de seus romances para as novelas televisivas, o revolucionário aposentado torna-se uma espécie de roteirista da Rede Globo. Gaba-se até hoje de seu passado esquerdista. Mas foi o primeiro escritor brasileiro a felicitar pessoalmente Fernando Collor de Mello por sua vitória. Claro que não foi apoiá-lo durante o impeachment. Com a nova guinada, seus livros começam a ser publicados nos Estados Unidos.
Em depoimento autobiográfico, concedido em 1985 à tradutora francesa Alice Raillard, em sua mansão na Bahia, de inimigo incondicional do capitalismo, Amado vira sócio:
"Sim, esta casa... Esta casa, eu digo sempre que foi o imperialismo americano que me permitiu construí-la! Era um velho sonho meu ter uma casa na Bahia. (...) Construir uma casa na Bahia? Eu tinha vontade, mas não o dinheiro. Foi então que vendi os direitos para o cinema de Gabriela à Metro Goldwin Mayer".
Em uma entrevista concedida à Folha de São Paulo, em dezembro de 94, expõe ao repórter a mansão comprada graças aos dólares da Metro Goldwin Mayer:
"Esse é o quarto do casal. Passei a vida a xingar os americanos, mas tudo o que temos é graças ao dinheiro dos imperialistas ianques. Compramos essa casa em 63 com a venda dos direitos de Gabriela para a MGM, rodado 21 anos depois. Cobrei barato, só US$ 100 mil”.
A parceria com o inimigo capitalista se revela lucrativa e permite a Amado a realização de outro sonho, morar na Paris que tanto insultou quando marxista:
Em 86, os americanos me pagaram um adiantamento alto pelos direitos de tradução de Tocaia Grande: US$ 250 mil. Juntamos com os guardados de Zélia e compramos nossa mansarda no Marais, em Paris”.
Este senhor, que empunhou com entusiasmo as piores e mais assassinas bandeiras do século, que no final da vida confessa sem nenhum pudor seu venalismo, é quem hoje representa o Brasil no Salão do Livro em Paris. Em verdade, tal fato não é espantar: Amado vende à Europa uma imagem que a Europa aceita como sendo a do Brasil.

Ainda segundo Wilson Martins:
A verdade é que a nossa literatura é sempre encarada como algo de exótico, de tropical. É por isso que Jorge Amado é extremamente popular nos outros países, ele oferece esse estereótipo da violência, da conquista da terra, da luta de classes e da opressão racial. Essa idéia exótica, uma espécie de ilha dos mares do sul, todos de tanga pelas ruas, armados de arco e flecha, e caçando onças na Avenida Rio Branco. Quando aparece um brasileiro branco e com grande cultura internacional, ele causa um espanto extraordinário. Nós alimentamos esse preconceito com todas as forças. Fazemos questão de mostrar que somos tropicalistas, que isto aqui é um país tropical, que somos mestiços, que branco aqui não tem vez. Quem defende tudo isso são esses grupos dos baianos e dos novos baianos, dos trios elétricos. É até um preconceito contra a cultura, no sentido ecumênico da palavra”.
Interrogado recentemente sobre como gostaria de ser lembrado em uma enciclopédia daqui a 50 anos, a grande cortesã responde com a candura dos inocentes: "Um baiano romântico e sensual. Eu me pareço com meus personagens - às vezes também com as mulheres".
Talvez seja um de seus personagens femininos o que melhor representa a ambivalência do “baiano romântico e sensual”: Dona Flor, a que administrava tranqüilamente dois maridos. Ao homenagear Amado, em verdade Paris está condecorando um escritor venal, que prestou os piores desserviços ao Brasil ao lutar para transformá-lo em mais uma republiqueta soviética, em nome de uma rápida ascensão literária e fortuna pessoal.

COMENTO: é outro exemplar de "comunista loco por grana" como os citados em outro texto de dias atrás. "Comunista brasileiro? Pfuuu!"

copiei do: Mujahdin Cucaracha

Um comentário:

Anatoli. disse...

Caro Pedro da Veiga:

Excelente matéria. Desmascara um vendilhão da pátria brasileira, cultuado por aqueles que não conhecem a verdadeira história.
Finalmente, alguém com coragem coloca a verdade em pratos limpos.
Chega de idolatrar falsos heróis !!!