domingo, 13 de fevereiro de 2011

AGOSTINHO E O CEPTICISMO

Gareth B. Matthews

Universidade de Massachusetts

Domínio Público-Santo Agostinho
início do século XIX, do Museu
da Inconfidência, série Museus
Brasileiros, edição banco Saf

Algumas pessoas descobrem a filosofia quando começam a levantar as grandes questões, a saber, se Deus existe ou se realmente temos livre-arbítrio. Outros descobrem a filosofia quando lhes ocorre, pela primeira vez, que nem sequer sabem com certeza se neste momento estão acordados. Algumas pessoas que chegam à filosofia levantando as grandes questões concluem, mais tarde, que é preciso responder ao cepticismo com que deparam quando procuram saber se têm sequer algum conhecimento, antes de considerarem os problemas de Deus e do livre-arbítrio. Agostinho parece ter seguido este caminho.

Por volta dos 18 ou 19 anos, Agostinho descobriu e leu um livro de Cícero, o Hortênsio. Esse livro, atualmente perdido, alterou

a vida de Agostinho. Como relata nas Confissões, este livro despertou o seu amor pela filosofia e fê-lo aspirar à sabedoria (III, 4, 7-8). No Diálogo sobre a Felicidade escreve: "Fiquei tal maneira inflamado pelo amor da filosofia que imediatamente me entreguei ao seu estudo" (I, 4).

Agostinho avançou para a leitura de outras obras de Cícero. Algumas apresentaram-lhe o cepticismo filosófico. Posteriormente, houve momentos na sua vida em que chegou a considerar a ideia de se tornar um céptico filosófico. No Livro V das Confissões declara: "Passou-me pela cabeça a ideia de que os filósofos a quem chamam "Acadêmicos" eram mais prudentes do que os outros; ensinavam que se devia duvidar de tudo e que a compreensão da verdade estava para além das capacidades do homem" (V, 10, 19).

Apesar de, durante longos períodos da sua vida, não considerar a vida do céptico filosófico uma opção atrativa, em todas as suas obras mais importantes Agostinho continuou a responder ao desafio do cepticismo.

A obra bastante precoce de Agostinho, Do Belo e do Apto (De pulchro et apto), não sobreviveu. Parece ter sido uma obra sobre estética e sobre a filosofia da mente na linha da tradição das grandes questões (ver Confissões IV, 14, 23-15, 24). Contudo, a mais antiga obra de Agostinho que sobreviveu, Contra Acadêmicos, é integralmente dedicada ao cepticismo da "Nova Academia", uma escola de filosofia fundada por Arcesilau (315-240 a.C.) e ao qual sucedeu Carnéades (214-129/128 a.C.). Agostinho conhecera as orientações destes filósofos através do Acadêmica, de Cícero.

Grande parte do Contra Acadêmicos é bastante misteriosa e difícil de entender. Mas dos três livros que o compõem, o terceiro torna a obra entusiasmante e filosoficamente fascinante. O projeto é determinar se algo pode ser conhecido. O critério de conhecimento é designado por "definição de Zenão" (referimo-nos a Zenão de Cítio (334-262 a.C.), e não ao Zenão dos paradoxos). Infelizmente, a definição de Zenão é exposta de diferentes modos no diálogo. Consequentemente, o pobre leitor passa um mau bocado a tentar determinar o que Agostinho entende por tal coisa. A citação seguinte do Acadêmica, de Cícero (II, 20, 66), já tinha sido citada no Livro II do Contra Acadêmicos:

T1. "A verdade que pode ser apreendida [percipi, percebida] está impressa na mente pela sua origem, de modo que não poderia advir de outra coisa a não ser daquilo que é a sua origem." (II, 5, 11)

Eis uma das formulações de Agostinho da definição de Zenão, no Livro III do Contra Acadêmicos:

T2. "Zenão afirma que o que aparece pode ser apreendido, se aparecer de modo a que não possa parecer uma falsidade." (III, 9, 21)

Vamos trabalhar com T2. A primeira coisa a considerar é o significado de "pode ser apreendido". A expressão latina utilizada por Agostinho, posse compreendi, sugere a tradução "pode ser captado". Contudo, no contexto, a questão principal parece ser a possibilidade de conhecer alguma coisa. Portanto, utilizemos "pode ser apreendido" para significar "pode ser conhecido".

A segunda coisa a considerar é o significado de "aparecer de modo a que não possa parecer uma falsidade". Esta expressão procura realizar a função de expressões ainda mais opacas que são utilizadas por Agostinho no Livro II, tais como "está impressa na mente por aquilo que é a sua origem, de tal modo que não poderia advir de outra coisa a não ser daquilo que é a sua origem." Esta expressão realmente intimidadora é, de fato, uma citação à letra do Acadêmico, de Cícero, em II, 6, 18. Temos de estar agradecidos por podermos trabalhar com T2 e não com a formulação de Cícero da definição de Zenão.

Ainda assim, é difícil saber o que significa "aparecer de modo a que não possa parecer uma falsidade". Suponhamos que, neste momento, tenho a impressão de que está uma rosa vermelha à minha frente. O que seria para a manifestação de estar uma rosa vermelha à minha frente "aparecer de modo a que não possa parecer uma falsidade"? Poder-se-ia pensar que isso significa que a manifestação de uma rosa vermelha à minha frente não poderia ser algo de ilusório. Nesse caso, seria de esperar que eu dissesse a mim mesmo "Isto não pode ser de forma alguma uma ilusão." Logo, a ideia será a seguinte: só posso saber que está uma rosa vermelha à minha frente se, e só se, a manifestação da presença de uma rosa vermelha à minha frente não pareça, de modo algum, uma ilusão. Contudo, esta interpretação não pode estar correta. Torna implausível a restante discussão. O conhecimento de algo não pode ser plausivelmente constituído a partir de uma impressão de que isso não parece ilusório.

Sugiro que "aparecer de modo a que não possa parecer uma falsidade" tem de significar o seguinte: aparece de um modo que o falso não pode aparecer. Considero que o resultado é o seguinte: quando sei real e verdadeiramente que p, não me pode parecer que p sem que seja realmente verdade que p. Uma impressão de p que garante o conhecimento é tal que não posso ter esse gênero de impressão de p sem ser verdade que p. Trata-se daquilo a que os antigos designavam como uma impressão "cataléptica".

Segundo a interpretação que proponho, e de forma esquemática, a definição de Zenão traduz-se no seguinte:

Z) A sabe que p se, e só se, i) parecer a A que p e ii) não poderia parecer a A que p a não ser que seja verdade que p.

Segundo Z, é bastante óbvio que não sei se está uma rosa vermelha à minha frente. Assim, segundo Z, sei que está uma rosa vermelha à minha frente se, e só se, i) me parecer que está uma rosa vermelha à minha frente e ii) não me poderia parecer que está uma rosa vermelha à minha frente sem estar uma rosa vermelha à minha frente. Desconfio que podemos concordar que, independentemente da vivacidade ou do fulgor da impressão que me diz que está uma rosa vermelha à minha frente, é sempre possível que eu padeça da ilusão de estar uma rosa vermelha à minha frente. Por exemplo, posso estar a sonhar. Posso, ainda, estar com alucinações, devido a uma dose de morfina ou de LSD. Ou posso, além disso, estar numa máquina de realidade virtual que me produz a ilusão de estar uma rosa vermelha à minha frente. Por isso, a segunda condição de Z não está satisfeita e eu não sei se está uma rosa vermelha à minha frente.

O projeto do Livro III do Contra Acadêmicos procura saber se, estando assente Z ou algo de muito semelhante, há outras coisas que conheço.

Como primeira alternativa, Agostinho debruça-se sobre a própria definição de Zenão. Não questiona a possibilidade de saber se a própria definição é verdadeira, mas apenas — e isto é um passo muito inteligente — se podemos saber, pelo menos, se a definição de Zenão é verdadeira ou falsa. Eis o passo:

T3. "O conhecimento ainda não nos abandonou, mesmo que não tenhamos a certeza quanto [à definição de Zenão]. Sabemos que a definição de Zenão ou é verdadeira, ou é falsa. Por isso, sabemos algo." (III, 9, 12)

Agostinho pressupõe aqui o Princípio de Bivalência, isto é, o princípio segundo o qual cada afirmação é verdadeira ou falsa. Acompanhemo-lo nesse pressuposto. Até muito recentemente, a maioria dos filósofos aceitava sem problemas o Princípio de Bivalência.

Pressupondo a Bivalência, parece que Agostinho pode saber, segundo Z, que Z é em si verdadeira ou falsa; a condição i) de Z está satisfeita. Além disso, não lhe pode parecer ser verdadeiro ou falso a menos que seja verdadeiro ou falso — pela razão de que não pode deixar de ser uma ou outra coisa. Por isso, Agostinho pode afirmar, e afirma de fato, que conhece algo.

Poder-se-ia considerar que esta aplicação de Z à afirmação "Z é verdadeira ou falsa", é batoteira. As impressões que o próprio Zenão tinha em mente são pretensamente "catalépticas", isto é garantem-se a si mesmas pela forma como são recebidas e, por isso, refletem com exatidão aquilo a que se referem enquanto impressões. O que ocorrerá na impressão de que uma afirmação S é verdadeira ou falsa que garanta que reflete corretamente aquilo do qual é uma impressão? O que garante que a impressão "S é verdadeira ou falsa" não poderia ser falsa não é simplesmente o fato de que "S é verdadeira ou falsa" é uma verdade lógica e, portanto, não poderia ser falsa? Assim, por mais débil e inadequadamente recebida que seja a impressão "S é verdadeira ou falsa", a frase em si não poderia pura e simplesmente ser falsa.

Talvez Agostinho devesse dizer que qualquer impressão correta de uma verdade lógica é garantidamente verdadeira. Não sei se isto é fazer batota com Zenão. Mas pelo menos faz sentido, atendendo ao contra-exemplo de Agostinho. De qualquer forma, sempre que uma proposição de que p exprime uma verdade necessária, não me pode parecer que p sem ser verdade que p.

O próximo exemplo de Agostinho sobre aquilo que afirma conhecer é um tanto ou quanto difícil de interpretar. Expomos aqui a passagem relevante do Livro III de Contra Acadêmicos:

T4. "Apesar de estar longe de ser um perito, conheço algumas coisas sobre a natureza. Estou certo de que o mundo ou é um [em número], ou não é — e, se não existe apenas um mundo, o número de mundos é finito ou infinito...

De igual modo, sei que este nosso mundo foi ordenado, tal como existe, pela natureza dos corpos ou por alguma providência; que sempre foi e será, ou que começou a ser e nunca findará; ou que não teve um começo no tempo, mas terá um fim; ou que começou a existir no tempo e não existirá para sempre." (III, 10, 23)

Sem dúvida Agostinho espera que

1) O mundo ou é um [em número], ou não é

seja considerado uma verdade necessária, como acontece com o exemplo precedente:

2) A definição de Zenão é verdadeira ou falsa.

Mas numa maneira comum de compreender 1, esta implica que

3) Existe um mundo,

o que não é uma verdade necessária. 1 implica 3 devido ao artigo definido à frente de "mundo", em 1. Porque 1 implica 3 e 3 não é uma verdade necessária, 1 não é também uma verdade necessária.

Contudo, antes de rejeitarmos este suposto exemplo de algo que podemos conhecer, devemos salientar que não há qualquer artigo definido no latim de Agostinho (certum enim habeo aut unum esse mundum aut non unum). Portanto, podemos lê-lo assim:

4) Ou existe um mundo, ou não existe um mundo.

Ora, penso que isto conta como uma verdade lógica.

Até este momento, Agostinho parece ter refutado o cepticismo generalizado através da apresentação de dois exemplos de coisas que podemos conhecer. A seguinte sugestão em T4 é menos problemática:

5) Se não existe apenas um mundo, o número de mundos é finito ou infinito.

Podemos facilmente interpretar 5 do seguinte modo:

6) Se existe mais do que um mundo, então o número de mundos ou é finito ou infinito.

E 6 parece de fato uma verdade necessária. E por isso, de acordo com Z, também pode ser conhecida.

Depois de T4 deparamo-nos com uma passagem fascinante. O céptico acadêmico apresenta o seguinte desafio a Agostinho:

T5. "Como sabes que o mundo existe [realmente], [...] já que os sentidos são enganadores?" (III, 11, 24)

Este é talvez o desafio céptico mais extraordinário em todo o tratado. Introduz aquilo que na filosofia moderna é designado como "o Problema do Mundo Exterior". A resposta de Agostinho é, de igual forma, notável:

T6. "Portanto, designo o todo que nos contém e sustém, seja lá o que for, como "o mundo" — quero dizer o todo que aparece perante os meus olhos, que vejo conter os céus e a terra (ou os quase-céus e a quase-terra) [...]

Perguntas-me: "será que quando estás a dormir, aquilo que vês é o mundo?"

“Já ficou dito que designo como “o mundo” tudo o que me aparece como tal.” (III, 11 24-5)

Agostinho está a introduzir aqui, talvez pela primeira vez na filosofia ocidental, a noção do nosso próprio mundo fenomênico, o mundo de aparências do qual se está ciente enquanto sujeito consciente, ou intelectivo. Pensa-se geralmente que a ideia de um mundo fenomênico é uma noção moderna que tem origem em Descartes. Mas já está presente em Agostinho.

Agostinho não volta a desenvolver esta noção. Não coloca o Problema do Mundo Exterior como Descartes na célebre passagem:

“... tudo o que acreditei sentir enquanto estou acordado também posso algumas vezes acreditar que sinto, quando durmo; e como não acredito que chegue até mim por meio de coisas situadas fora de mim aquilo que me parece sentir durante o sono, não via porque tinha de acreditá-lo das coisas que me parece sentir enquanto estou acordado." (Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, VI, AT VII, 77, CSM, II, 53)

Ainda assim, aquilo que Agostinho afirma no Livro III de Contra Acadêmicos abre as portas ao problema de Descartes.

Gareth B. Matthews

Fonte: Cítica revista de filosofia

Tradução de Hugo Chelo
Retirado de
Santo Agostinho, Gareth B. Matthews (Edições 70, 2008)

Imagem da Internet (Google)-(PVeiga).

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