quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

IRMÃ DULCE E O AMOR AOS POBRES

Ir. Dulce é conhecida não apenas em Salvador ou na Bahia, mas como em todo o Brasil. Caso alguém a invoque provavelmente recordará dos tantos títulos dados pelo povo a quem tão devotamente serviu: Mãe dos Pobres, Mães dos Inválidos, Anjo Bom da Bahia.
O que muitas pessoas não sabem – ou sequer relacionam como a vida dessa religiosa – é que todo o seu ardor apostólico brotava da sua radical adesão ao Cristo Crucificado. Ir. Dulce ofereceu a sua vida em honra ao Verbo encarnado. De fato, não apenas manteve prudentemente a sua vela acesa como foi incansável no esforço de encaminhar quantas almas pudesse para o redil de Nosso Senhor.
Nos tempos atuais, quando vem tornando-se comum uma visão horizontal das relações humanas, rompendo com o sagrado e a vocação natural do homem de buscar a Deus, Ir. Dulce deu um testemunho avassalador de coerência e amor aos pobres. Ela, mais do que qualquer teórico da luta de classes ou de adeptos das mais estapafúrdias teses “reinocêntricas”, era confrontada a cada dia com as misérias da sociedade e as injustiças do mundo moderno. Não obstante, o seu esforço não estava voltado para a reflexão ideológica e material, mas sim para a prática do amor aos mais necessitados como conseqüente causa da experiência pessoal com e em Cristo.

Ir. Dulce fundara o Círculo Operário da Bahia – com o apoio dos frades menores – preocupada com a triste condição de vida do operariado soteropolitano. Entretanto, assim como os franciscanos, sempre se manteve distante das discussões políticas e, juntamente com a assistência eclesiástica dada no Círculo, jamais permitiu a perda do fervor religioso e a ascensão das idéias comunistas dentro das suas fileiras. Não que faltassem incursões dos grupos de esquerda, mas a piedade daqueles bons proletários católicos desfavorecia qualquer ideologização.
A força de Ir. Dulce sempre fora a oração, o amor a Cristo e às práticas de piedade. Jamais deixara a sua Santa Comunhão diária e a devoção mariana e ao glorioso Santo Antônio de Lisboa. Oferecia os seus pobres como pérolas à Virgem Maria. Ademais, sempre teve em mente o sentido da sua vocação. Nunca se esquecera daquela experiência religiosa determinante na sua convicção vocacional; ainda jovem, na Igreja de Santo Antônio Além do Carmo, em Salvador, ficara fascinada com aquela cena que parecia ser uma pintura digna das mais impactantes telas barrocas: um ser de branco rasgara os raios de luz que atravessavam as janelas e cortavam toda a nave. Pensou que se tratava de um anjo, mas viu que era uma freira que testemunhava a sua consagração no hábito que usava. A força desse evento foi tão importante que a então Maria Rira, sem saber ao certo de qual Congregação se tratava, até mesmo desconhecendo a vida daquela religiosa, resolvera oferecer a sua vida a Deus como mais uma Missionária de Imaculada Conceição da Mãe de Deus.
Mais tarde a Superiora Geral, quando as obras de Ir. Dulce já eram grandiosas e de conhecido respeito em toda Salvador, irá obrigá-la a fazer uma triste decisão: ou largar o seus apostolados – estava atrapalhando a vida comunitária e contemplativa, alegara – ou retirar-se da Congregação. Para o Anjo bom da Bahia foi um momento de dor e provação. Depois de consultar-se com santos e doutos sacerdotes e auxiliada pelo então Administrador Apostólico da Arquidiocese Primaz do Brasil, D. Eugênio Sales – mais tarde Bispo titular e Cardeal da Bahia – resolveu pedir a desenclausuração. Não saía da Congregação, mas vira nesse meio a única forma de cumprir não o seu desejo, mas a vontade de Deus nos pobres.
Viveu dez anos fora da comunidade, já que o Convento de Santo Antônio, onde residia com as suas Irmãs, ao lado das Obras Assistenciais, foi desativado e as religiosas transferidas para o Colégio Santa Bernadete. Ainda sendo liberada pelo Cardeal para usar qualquer vestimenta, devido ao acontecido, jamais largou aquele hábito azul e branco que a marcara na mocidade e, assim, tornou-se a única religiosa da sua Congregação na Bahia a não aderir ao modelo reformado e ao não uso que logo veio a ser ordinário.
A sua piedade, confiança na Providência e amor gratuito fazia com que tivesse livre acesso tanto aos casarões da Vitória como às palafitas de Alagados, ao palácio do Governador e às favelas de Maçaranduba. Como a mesma intimidade com que tratava tuberculosos e leprosos dialogava com Dr. Norberto Odebrecht e Dr. Ângelo Calmon de Sá, amigos íntimos e benfeitores.
Os seus gestos e as suas ações falavam de uma religiosa que depois de prostrar-se em adoração ao Jesus-Hóstia saía pelas ruas não para libertar os pobres da opressão ou para incendiá-los com o fogo da paixão ideológica, mas sim para apresentá-los ao Amor encarnado, para uni-los fortemente a Cristo na Sua Igreja através dos Sacramentos. Como filhos de Deus, feitos à Sua imagem e semelhança, os homens eram merecedores da salvação e de gozar de uma vida digna. Esse era o anúncio feito por Ir. Dulce.

Ao longo da sua vida essa Mãe dos Pobres testemunhou a sua radical confiança na Providência e uma sólida convicção no amor de Cristo aos homens. Num inverno muito rigoroso em Salvador, Ir. Dulce ficara doente e não pudera sair pelas ruas distribuindo agasalhos e recolhendo seus pobres para o albergue. A luz da sua cela tornara-se um farol em meio ao mar da miséria, onde homens e mulheres quase congelados gritavam implorando por um cobertor. A religiosa, tomada pela febre, depois de lançar tudo o que tinha - só não distribuíra as poucas vestes que restavam porque foi impedida pelas irmãs - resolvera então descer até a capela e rezar, pedindo a Deus que zelasse por aqueles filhos. Depois da sua oração ordenara que, em procissão, a imagem de Santo Antônio fosse levada até o lado de fora, ainda que as outras religiosas não indicassem pelo frio e por ela encontrar-se enferma. Nada feito! A imagem foi colocada no passeio. Alguns minutos depois, estando em prece no oratório, ouviu um forte estrondo e, ao sair, deparou-se com uma caminhonete que quase se acidentara no muro do Convento. Dela saiu um homem com um rosto já conhecido por ela e pelas irmãs, mas que não sabiam considerar a origem. Começara a tirar cobertores do carro que, imediatamente, foram sendo agarrados pelos miseráveis. O rapaz misterioso, sem dizer uma palavra, entrou no carro e se foi. Qual a surpresa dessas religiosas quando, ao se lembrarem do coitado do Santo Antônio esquecido na friagem, reconheceram claramente aquela face, sabiam finalmente quem era aquele homem: sim, o mais pobre dos filhos de São Francisco viera ao socorro da sua filha querida, a glória de Portugal e orgulho da Itália, Antônio!
Quanta humildade e amor aos necessitados! Ao perambular por Salvador em busca de doações para a compra do terreno onde seria construído o hospital, entrara numa venda e abordara o dono pedindo auxílio para os miseráveis. Estendeu a sua mão e recebeu em resposta uma cusparada! Na sua mais genuína mansidão respondeu: Sim, meu senhor, isto é para mim, agora dê-me alguma coisa para os meus pobres!
Ir. Dulce tornou-se o Anjo Bom da Bahia não apenas porque construíra uma das maiores obras caritativas desse país confiando apenas na Providência, mas sim porque fez a escolha fundamental de amar a Cristo e ser fiel a Ele. No dia do julgamento, quando essa Mãe dos Inválidos for questionada se O vestiu quando estava nu, se O deu de beber quanto estava com sede, se O deu de comer quando sofria de fome, se O viu nos mais pequeninos, poderá responder, gloriosamente, que sim, que tudo ela fez por amor e pelo Amor!

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