quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

DEASAFIANDO O RIO-MAR - AS AMAZONAS

Hiram Reis e Silva, Óbidos, PA, 17 de janeiro de 2011.

As Amazonas
Segundo a lenda, mulheres brancas, guerreiras, que habitam as margens do Rio Amazonas. O primeiro relato conhecido, escrito por Frei Gaspar de Carvajal, nos idos de 1541, na foz do Rio Jamundá: "Estas mulheres são muito alvas, com o cabelo muito comprido, nuas em pêlo, tapadas as suas vergonhas, com seus arcos e flechas nas mãos, fazendo tanta guerra como dez índio
s


Alexander von Humboldt
pintura de Friedrich Georg Weitsch, 1806

“A lenda das Amazonas guerreiras percorreu todas as regiões celestes. Ela pertence àqueles círculos uniformes e estreitos de sonhos e idéias em torno dos quais a imaginação poética e religiosa de todas as raças humanas e todas as épocas gravita quase que instintivamente”. (Alexander von Humboldt)

É do Frei Gaspar de Carvajal o primeiro, e “único”, relato daquele que teria sido, supostamente, um fortuito contato com as temíveis Amazonas americanas. Carvajal afirma que mesmo cansados, doentes e debilitados em decorrência da carência alimentar e da extenuante jornada pelo Rio-Mar, os 59 homens enfrentaram bravamente as famosas Valquírias Latinas. As valorosas indígenas, hábeis no manejo do arco e da flecha, bem nutridas, formosas e adestradas para guerra, foram derrotadas por um punhado de espanhóis famélicos e combalidos.


Escritor português,
Pero Vaz de Caminha nasceu
em Porto, Portugal, em 1450.
Faleceu em 15 de dezembro de
1500, em Calecute, Índia.
Trabalhou como escrivão da
armada do navegador
Pedro Álvares Cabral

“O exagero das narrativas corria parelhas com a ingenuidade dos ouvintes. (...) A propensão tendia para deformar tudo. O próprio Pero Vaz de Caminha, na carta enviada a D. Manuel, fabulava a respeito das índias, que a seus olhos propiciatórios pareciam quase tão belas, como as damas de Lisboa. Era este o espírito da época”. (Raymundo Moraes)

O paraense RAYMUNDO MORAES
(1872-1941) é um dos mais
exímios escritores da Amazônia,
de sua gente, seus costumes,
sua hidrografia, suas lendas,etc.


Os relatos de Carvajal sobre a expedição de Orellana são fantasiosos, superlativos em relação às riquezas da terra e da população nativa e por diversas vezes contraditórios. Seus devaneios, porém, atingem o clímax ao fomentar a lenda das Amazonas. O imaginário popular foi alimentado, ao longo dos séculos, por pesquisadores despreparados e sensacionalistas. Basta folhear as amareladas páginas da história das civilizações para verificar que em todas as épocas e em todos os continentes, nas mais diversas culturas, a participação das mulheres em expedições militares era usual. Elas sempre participavam, na retaguarda, da preparação do abrigo e do alimento das tropas e, no combate estimulando-os e provendo-os com as armas necessárias e após a refrega cuidando dos feridos ou despojando os mortos.

- Mundurucus: Os Senhores da Guerra

A mais formidável etnia que já existiu no Médio e no Alto Amazonas foi, sem dúvida, a dos destemidos “Senhores da Guerra Mundurucus”.

Caciques Munduruku
Chegou o dia em que ousaram
profanar esse território sagrado.
E o véu místico formado por
centenas de cânticos e rimas
que ecoavam nas pedras e nas
águas foi arrancado pela pressão
dos engolidores da floresta e
perdeu-se nos escaninhos da
história.Ritos e cerimônias já
não são mais ouvidos e espalhados
pelo rio poderoso e belo.
Ainda hoje os Munduruku contam
suas histórias no esforço de
manter vivo um elo com suas
crenças e valores ameaçados
pela realidade do mundo moderno:
as hidrelétricas planejadas
para o rio Tapajós

Estes verdadeiros “samurais” americanos adestravam seus descendentes, desde cedo, numa rígida disciplina militar e consideravam o combate como a atividade mais nobre e gratificante da vida de um guerreiro. O porte físico e a altivez do “Povo Mundurucu” impressionava, eram altos, dotados de invejável compleição física e portadores das mais belas e elaboradas tatuagens do planeta. Os complexos desenhos eram gravados quando o jovem guerreiro atingia seus oito anos de idade e eram ampliados, com o passar dos anos, no inverno amazônico, até cobrir-lhe inteiramente o corpo. No combate, os Mundurucus, se faziam acompanhar das mulheres que carregavam suas flechas e, segundo, antigos relatos eram capazes de apanhar as flechas inimigas em plena trajetória. A participação das mulheres no combate, comum em tantas culturas, auxiliando e incentivando e, eventualmente, substituindo os maridos abatidos, pelos inimigos, na peleja gerou a criação do mito das Amazonas brasileiras.

Relatos Pretéritos - Amazonas

Gaspar de Carvajal (1542)

Havia lá uma praça muito grande e no meio da praça um grande pranchão de dez pés em quadro, pintado e esculpido em relevo, figurando uma Cidade murada, com a sua cerca e uma porta. Nessa porta havia duas altíssimas torres com as suas janelas, as torres com portas que se defrontavam, cada porta com duas colunas. Toda esta obra era sustentada sobre dois ferocíssimos leões que olhavam para trás, como acautelados um do outro, e a sustinham nos braços e nas garras. Havia no meio desta praça um buraco por onde deitavam, como oferenda ao sol, a chicha, que é o vinho que eles bebem, sendo o sol que eles adoram e têm como seu Deus. Era esse edifício coisa digna de ser vista, admirando-se o Capitão e nós todos de tão admirável coisa. Perguntou o Capitão a um índio o que era aquilo e que significava naquela praça, e o índio respondeu que eles são súditos e tributários das Amazonas, e que não as forneciam senão de penas de papagaios e guacamaios para forrarem os tetos dos seus oratórios. Que as povoações que eles tinham eram daquela maneira, conservando-o ali como lembrança e o adoravam como emblema de sua senhora, que é quem governa toda a terra das ditas mulheres. Encontrou-se também nessa praça uma casa muito pequena, dentro da qual havia muitas vestimentas de plumas de diversas cores, que os índios usavam para celebrar as suas festas e bailar quando se queriam regozijar diante do já referido pranchão, e ali ofereciam seus sacrifícios com a sua danada intenção. (...) Quero que saibam qual o motivo de se defenderem os índios de tal maneira. Hão de saber que eles são súditos e tributários das Amazonas, e conhecida a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro e vieram dez ou doze. A estas nós as vimos, que andavam combatendo diante de todos os índios como capitãs, e lutavam tão corajosamente que os índios não ousavam mostrar as espáduas, e ao que fugia diante de nós, o matavam a pauladas. Eis a razão por que os índios tanto se defendiam. Estas mulheres são muito alvas e altas, com o cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito membrudas e andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas mãos, fazendo tanta guerra como dez índios. E em verdade houve uma destas mulheres que meteu um palmo de flecha por um dos bergantins, e as outras um pouco menos, de modo que os nossos bergantins pareciam porco espinho. Voltando ao nosso propósito e combate, foi Nosso Senhor servido dar força e coragem aos nossos companheiros, que mataram sete ou oito destas Amazonas, razão pela qual os índios afrouxaram e foram vencidos e desbaratados com farto dano de suas pessoas. (...) Perguntou o Capitão como se chamava o senhor dessa terra, e o índio respondeu que se chamava Couynco, e que era grande senhor, estendendo-se o seu senhorio até onde estávamos. Perguntou-lhe o Capitão que mulheres eram aquelas que tinham vindo ajudá-los e fazer-nos guerra. Disse o índio que eram umas mulheres que residiam no interior, a umas sete jornadas da costa, e por ser Este senhor Couynco seu súdito, tinham vindo guardar a costa. (...) Disse o índio que as aldeias eram de pedra e com portas, e que de uma aldeia a outra iam caminhos cercados de um e outro lado e de distância em distância com guardas, para que não possa entrar ninguém sem pagar direitos. (...) Ele disse que estas índias coabitam com índios de tempos em tempos, e quando lhes vem aquele desejo, juntam grande porção de gente de guerra e vão fazer guerra a um grande senhor que reside e tem a sua terra junto à destas mulheres, e à força os trazem às suas terras e os têm consigo o tempo que lhes agrada, e depois que se acham prenhas os tornam a mandar para a sua terra sem lhes fazer outro mal; e depois quando vem o tempo de parir, se têm filho o matam ou o mandam ao pai; se é filha, a criam com grande solenidade e a educam nas coisas de guerra. Disse mais que entre todas estas mulheres há uma senhora que domina e tem todas as demais debaixo da sua mão e jurisdição, a qual senhora se chama Conhorí. Disse que há lá imensa riqueza de ouro e prata, e todas as senhoras principais e de maneira possuem um serviço todo de ouro ou prata, e que as mulheres plebéias se servem em vasilhas de pau, exceto as que vão ao fogo, que são de barro. Disse que na capital e principal Cidade, onde reside a senhora, há cinco casas muito grandes, que são oratórios e casas dedicadas ao sol, as quais são por elas chamadas caranaí, e que estas casas são assoalhadas no solo e até meia altura e que os tetos são forrados de pinturas de diversas cores, que nestas casas tem elas ídolos de ouro e prata em figura de mulheres, e muitos objetos de ouro e prata para o serviço do sol. Andam vestidas de finíssima roupa de lã, porque há nessa terra muitas ovelhas das do Perú. Seu trajar é formado por umas mantas apertadas dos peitos para baixo, o busto descoberto, e um como manto, atado adiante por uns cordões. Trazem os cabelos soltos até ao chão e postas na cabeça coroas de ouro, da largura de dois dedos. (CARVAJAL)

Cristóbal de Acuña (1639)

LXX - Notícia que Deram os Tupinambás

Através destes índios Tupinambás, que são gente de mais civilização e que não necessitam de intérprete por ser corrente entre eles, como já disse, a língua geral que muitos dos próprios portugueses falam com eloquência por serem nascidos e criados naquelas costas, tivemos algumas notícias que aqui transmitirei. E já que são gente que tem explorado e sujeitado todas as regiões circunvizinhas a sua jurisdição, pode tê-las por certas. (...)

LXXI - Dão Notícias das Amazonas

Com o que também disseram esses Tupinambás, confirmamos as longas notícias que por todo o Rio trazíamos das afamadas Amazonas das quais o Rio tomou o nome desde seus primórdios, não o conhecendo por nenhum outro, senão por este, os cosmógrafos que dele trataram até hoje. E seria coisa de admirar-se que, sem fundamentos tão graves, houvesse usurpado o nome do Rio das Amazonas, podendo qualquer pessoa dar-lhe na cara que através deste nome queria conseguir a fama, com a única razão de vestir-se com o alheio. Não me convenço de sua nobreza, nem é acreditável que, tendo esse Rio tantas grandezas de que lançar mão, só quisesse vangloriar-se de um título que não lhe competia. Seria uma baixeza comum em quem, não conseguindo por seus braços alcançar a honra que deseja, procura mendigá-la do vizinho. Os fundamentos que há para assegurar a existência da Província das Amazonas neste Rio são tantos e tão fortes, que seria faltar com a fé humana não lhes dar crédito. E não trato das importantes investigações que, por ordem da Real Audiência de Quito, fizeram-se com os nativos que habitaram essa região muitos anos, de tudo o que suas ribeiras continham. Uma das principais coisas que asseguraram era estar o Rio povoado por uma tribo de mulheres guerreiras que, sustentando-se sozinhas, sem varões, com os quais apenas durante certo tempo mantinham coabitação, viviam em suas aldeias, cultivando suas terras e conseguindo com o trabalho de suas mãos todo o necessário para seu sustento. Tão pouco faço menção às investigações que pelo Novo Reino de Granada, na Cidade de Pasto, foram feitas com alguns índios, e em particular com uma índia que disse ela mesma já ter estado nas terras onde estas mulheres vivem, acordando em tudo o que já se sabia pelos primeiros dados. Só lanço mão do que ouvi com meus próprios ouvidos e com cuidado averiguei desde que colocamos o pé neste Rio. E não há em termos gerais coisa mais comum, que ninguém ignora, que dizer que nele habitam estas mulheres, dando informações tão particulares que, coincidindo todas, não se pode acreditar que pudesse uma mentira ter se infiltrado em tantas línguas e em tantas nações com tantas cores de verdade. Mas, onde mais luz tivemos do lugar onde vivem estas mulheres, de seus costumes, dos índios que se comunicam com elas, dos caminhos por onde se entra em suas terras e dos nativos que as povoam (que é o que aqui direi) foi na última aldeia, onde termina a província dos Tupinambás.

LXXII - O Rio das Amazonas

A 36 léguas desta aldeia, navegando Rio abaixo, está no lado Norte o Rio das Amazonas, que com o nome de Cunuris é conhecido entre aqueles nativos. Adota este Rio o nome dos primeiros índios que vivem em sua boca, aos quais se seguem os Apanto, que falam a língua geral de todo o Brasil. Após estes estão localizados os Taguau, e os últimos, que são os que se comunicam com as próprias Amazonas, são os Guacará. Têm estas mulheres varonis seu assentamento entre grandes montes e eminentes cerros, dentre os quais o que mais se destaca e que, como mais soberbo, é açoitado pelos ventos com mais vigor e por isso sempre se eleva descalvado (limpo de vegetação), chama-se Yacamiaba. São as Amazonas mulheres de grande valor, que sempre se têm conservado sem contato comum com varões e mesmo quando estes, por um acordo que com elas mantêm, vêm a cada ano a suas terras, elas recebem-nos de armas na mão, que são arcos e flechas. Depois de alguns exercícios, seguras de que os conhecidos vêm em paz, deixando as armas, acodem todas às canoas ou embarcações dos hóspedes e, tomando cada uma a rede que estiver a mão, redes estas que são as camas em que eles dormem, levam-na para sua casa e, dependurando-a onde o dono possa reconhece-la, recebem-nos por hóspedes naqueles poucos dias, após os quais eles regressam a suas terras, repetindo todos os anos esta viagem na mesma época. As filhas fêmeas que desta união nascem elas conservam e criam entre si, que são as que levarão adiante os valores e costumes de sua nação, mas os filhos varões não há muita certeza do que com eles fazem. Um índio, que quando era pequeno havia ido com seu pai a essa visita, afirmou que os filhos varões elas os entregavam a seus pais, quando, no ano seguinte, regressavam as suas terras. Mas outros, e isso é o que parece mais certo por ser o relato mais comum, dizem que tão logo distinguem seu sexo elas os matam. Só o tempo mostrará a verdade. E se estas são as Amazonas afamadas dos historiadores, em sua Comarca estão encerrados tesouros suficientes para enriquecer todo o mundo. A boca do Rio em que vivem as Amazonas está a 2°30’ de altura. (ACUÑA)

Charles-Marie de La Condamine (1743)

IX - As Amazonas Americanas

No decurso de nossa navegação, indagamos por toda parte dos índios das diversas nações, e com grande cuidado o fizemos, se tinham algum conhecimento das mulheres belicosas que Orellana pretendia ter encontrado e combatido, e se era certo que elas se conservavam fora do comércio dos homens, não os recebendo entre si senão uma vez por ano, como nos refere o Padre d”Acuña na sua relação, onde o assunto merece ser lido pela singularidade. Todos nos disseram que ouviram falar disso por seus pais, e juntaram mil particularidades longas demasiado para serem repetidas, e tudo tendente a confirmar que houve no continente uma república de mulheres solitárias, que se retiraram para as bandas do Norte, no interior das terras, pelo Rio Negro, ou por outro que pelo mesmo lado vem ter ao Maranhão. Um índio de São Joaquim d”Omáguas nos dissera que acharíamos talvez ainda em Coari um velho cujos pais avistaram as Amazonas. Soubemos aí que o índio que nos fora indicado havia morrido; mas falamos ao filho que parecia ter 70 anos, e que chefiava os outros índios da mesma aldeia. Ele nos afirmou que o seu avô vira com efeito discorrer tais mulheres pela entrada do Rio Cuchivara, provindo do Rio Caiame, que desemboca no Amazonas pelo lado Sul, entre Tefé e o Coari; que ele chegou a falar com quatro dentre elas; e que uma trazia uma criança ao peito. Ele nos disse o nome de cada uma, e ajuntou que, partindo do Cuchivara, elas atravessaram o grande Rio, e tomaram o rumo do Rio Negro. Omito certos pormenores pouco verossímeis, mas que em nada importam para o essencial da coisa. Abaixo do Coari, os índios nos disseram sempre o mesmo, com algumas variantes nas circunstâncias: mas todos estavam de acordo no principal. Em particular o Tapajós, de que faremos menção a seu tempo mais expressamente. Referiram-se a certas pedras verdes, conhecidas como “das Amazonas”, que dizem haver herdado de seus pais, e estes as tiveram das “cunhantainsecuima”, ou seja, em sua língua, “mulheres sem marido”, entre as quais, ajuntam eles, existem em grande quantidade. Um índio habitante de Mortigura, missão vizinha do Pará, ofereceu-se a mostrar-me um Rio por onde se podia remontar, segundo ele, até pouca distância do país atualmente habitado, dizia o mesmo, pelas Amazonas. Tal Rio se chama Irijó, e depois passei pela sua embocadura, entre Macapá e o cabo Norte. Conforme o reconto do mesmo sujeito, no ponto em que esse Rio deixa de ser navegável por causa dos saltos, há-se de, para penetrar no País das Amazonas, caminhar vários dias pelos bosques da margem do Oeste, e atravessar um país montanhoso. Um velho soldado da guarnição de Caiena, habitando agora próximo dos saltos do Rio Oiapoque, assegurou-me que num destacamento em que ele estava, destacamento enviado pelas terras para reconhecer o país, em 1726, havia penetrado até os amicouanes, nação de largas orelhas que vive acima das nascentes do Oiapoque, e perto das de outro Rio afluente do Amazonas; e que aí ele vira nos pescoços das mulheres dessas mesmas pedras verdes de que acabo de falar; e que tendo perguntado a esses índios donde as tiravam, obteve como resposta que provinham das mulheres “que não tinham marido”, cujas terras demoravam a sete ou oito dias de jornada para o lado do ocidente. Essa nação dos amicouanes habita longe do mar, num país alto, onde os Rios não são navegáveis ainda; assim eles não tinham aparentemente recebido essa tradição dos índios do Amazonas, com os quais não tinham comércio: eles não conheciam senão as nações contíguas às suas terras, entre as quais os franceses do destacamento de Caiena tinham tomado guias e intérpretes. Deve-se preliminarmente notar que todos os testemunhos que acabo de arrolar, outros que deixo de referir, assim como os de que se fez menção nas informações dadas em 1726, e depois os dos governadores espanhóis da província de Venezuela, concordam no fundo na existência das Amazonas; mas o que não merece menor atenção é que enquanto essas diversas relações designam o lugar de retirada das Amazonas americanas, umas para o oriente, outras para o Norte, ainda outras para o ocidente, todas essas direções diferentes concorrem em situar o centro comum de convergência nas montanhas do Guiana, e num cantão onde nem os portugueses do Pará, nem os franceses de Caiena, ainda penetraram. Apesar de tudo, confesso que eu não acreditaria facilmente que as Amazonas aí estão estabelecidas, sem notícias mais positivas, de vizinhança em vizinhança, pelos índios limítrofes das colônias européias da costa da Guiana; essa nação ambulante poderia muito bem ter ainda mudado de residência; e o que me parece mais verossímil que tudo o mais é que elas perderam com o tempo seu antigo costume, ou porque tenham sido subjugadas por outra nação, ou porque cansadas de tanta solidão as jovens acabaram por olvidar a aversão materna com respeito aos homens. Assim, quando hoje não se achassem mais vestígios dessa República de Mulheres, não se pode dizer que ela não haja alguma vez existido. Aliás, basta para a verdade do fato que tenha havido na América um povo de mulheres, que não consentiam os homens em sua sociedade. Seus demais costumes, e particularmente o de se cortarem uma das tetas, como o Padre de Acuña nos relata à fé dos índios, são circunstâncias acessórias e independentes, e foram provavelmente alteradas, e talvez acrescentadas pelos europeus preocupados pelos usos que se têm atribuído às Amazonas da Ásia; o amor do maravilhoso lhes terá feito adotar pelos índios nos seus relatos. Não se disse com efeito que o cacique que advertiu Orellana de fugir às Amazonas (que ele chamava em sua língua comapuyaras) haja aludido à mama decepada, e o nosso índio de Coari, na história do avô que viu quatro Amazonas, uma das quais a aleitar um filho, não se refere absolutamente a essa particularidade tão propositada a se fazer notar. Mas chego ao principal. Se para negar a lenda alguém alega a falta de verossimilhança, e a quase impossibilidade moral de poder estabelecer- se e subsistir uma tal república, eu não insisto no exemplo das antigas Amazonas asiáticas, nem das Amazonas africanas modernas, pois que aquilo que lemos nas histórias antigas e modernas é, pelo menos, misturado de muitas fábulas, e sujeito a contestações. Contento-me de assinalar que se alguma vez pôde haver Amazonas no mundo, isso foi na América, onde a vida errante das esposas que acompanham os maridos à guerra, e que não são mais felizes no lar, lhes deve ter feito nascer a idéia e ocasião frequente de se furtarem ao jugo dos tiranos, buscando fazer para si um estabelecimento onde pudessem viver na independência, e pelo menos não serem reduzidas à condição de escravas e bestas de carga. Semelhante resolução, uma vez tomada e executada, não teria nada de extraordinário, nem de mais difícil do que o que se observa todos os dias em todas as colônias européias da América, ou não é senão demasiado comum que servos maltratados e descontentes fujam aos bandos para os bosques, e não raro sós, quando não acham a quem associar-se, e que aí passem assim vários anos, e talvez toda a vida em solitude. Sei bem que todos, ou quase todos os índios da América Meridional são mentirosos, crédulos, encasquetados com o maravilhoso; mas nenhum desses povos ouviu ainda falar das Amazonas de Diodoro da Sicília, e de Justino. Entretanto, já se tratava das Amazonas entre os índios do interior, antes que os espanhóis aí houvessem penetrado, e delas se fez menção entre povos que não tinham jamais visto europeus. É o que prova o conselho dado pelo cacique a Orellana, bem como às suas gentes, e ainda as tradições referidas pelo Padre d”Acuña e pelo Padre Baraze. É crível que selvagens de lugares distantes fossem acordes em imaginar, sem qualquer fundamento, o mesmo fato, e que esta pretensa fábula fosse adotada tão uniforme e universalmente em Mainas, no Pará, em Caiena, e em Venezuela, entre tantas nações que não se entendem absolutamente, e que não têm nenhuma comunicação? De resto, não fiz enumeração de todos os autores e viajantes de tantas nações da Europa, que há mais de dois séculos vêm afirmando a existência das Amazonas americanas, e alguns pretendem havê-las visto. Contento-me de aludir aos novos testemunhos que tivemos ocasião de recolher, M. Maldonado e eu, em nossa rota. Pode-se ver esta questão tratada na “Apologia” do primeiro tomo do Teatro Crítico do célebre Padre Feijó, beneditino espanhol, feita pelo seu sábio discípulo Padre Sarmiento, da mesma congregação. (CONDAMINE)

José Monteiro de Noronha (1768)

62. Do Rio das Trombetas até a boca inferior do Rio Nhamundá na mesma margem Setentrional do Amazonas, são seis léguas. E em distância de oito léguas por Este Rio acima está a Vila de Faro na margem oriental, na qual se termina a Capitania do Pará pela margem Setentrional do Rio das Amazonas, servindo a margem ocidental do Nhamundá de limite, e princípio da Capitania de São José do Rio Negro.

63. Na boca deste Rio se diz, que fora Francisco de Orellana acometido por aquelas mulheres, a que chamam Amazonas, e deram o nome ao Rio, das quais se conserva uma” constante tradição entre os índios; posto que confusa em algumas circunstancias. Os mais deles afirmam, que depois de algumas transmigrações, se internaram as Amazonas no Rio das Trombetas declarado em o parágrafo 61.

64. Vicente Maria Coroneli no seu “Atlante Veneto” dá por fabulosa a semelhança das Amazonas Americanas com as Asiáticas na circunstancia de não admitirem varões na sua república, e buscarem fora dela os estranhos em determinado tempo do ano, para se fecundarem: E só tem por Certo, que em um desembarque, que fez Orellana nas ribeiras do Rio Amazonas, o acometeram os índios do país, vindo entre eles juntamente as mulheres armadas em guerra. A favor delas está a opinião comum, que teve origem, e subsiste desde que Orellana navegou por Este grande Rio, como se pôde ver largamente na demonstração “Crítico Apologética” do teatro critico universal do doutíssimo Feijó, - escrita pelo mestre Frei Martinho Sarmento, e na “Ilustração Apologética” do mesmo Feijó ao 1°, e 2° tomo do seu “Teatro Crítico” discurso 16.

65. Não abono de infalível a verdade da historia, e tradição dele. Persuado-me com tudo, que se não pode negar sem temeridade um fato histórico, atestado por Francisco Orellana, e por todos os soldados da sua comitiva, e armada, justificado solenemente na Audiência Real de Quito, e na Cidade de Pasto; conservado na memória dos índios por participação dos seus maiores nos domínios de Portugal, Espanha, e França; sendo bem inverossímil, que não tendo eles notícia das Amazonas Asiáticas, conspirassem casualmente para uma fábula revestida das mesmas circunstâncias; e um fato em fim, que não encontra dificuldade maior; que prudentemente o dissuada; pois nenhuma há, que se oponha invencivelmente a existência da dita Republica, ou presente, e atual; ainda que se não saiba dela; por se não ter penetrado o interior de todos os sertões; ou passada, e já agora extinta; ou porque vencida a República por outra nação de índios, perdesse o seu antigo costume debaixo de um domínio estranho; ou porque reduzida a menor número de indivíduos, por causa de guerras, e largas peregrinações, admitiu voluntariamente homens na sua sociedade, como discorre Mr. de Condamine no extrato do diário da sua viagem página 58. (NORONHA)

Spix e Martius (1819)

A série de outeiros, que se estendem desde Óbidos até o Rio Trombetas, cerca de uma milha alemã, vai-se abaixando pouco a pouco, e avistamos esse Rio, que verte suas águas claras numa vasta baía do Amazonas. Segundo informa Acuña, aqui foi que, desembarcada, a guarnição de Orellana sofreu o ataque de índios, em cujo número combatiam mulheres, e, portanto é o ponto clássico para a etnografia e geografia do maior Rio, que deriva seu nome desse fato, tantas vezes floreado e posto em dúvida. Espera, portanto, o leitor, com razão, que, por minha vez, eu me manifeste a respeito das Amazonas; para não interromper muito o curso da narração, basta declarar que não acredito na existência delas, quer no passado, quer no presente. Pelo geral interesse que o assunto desperta, confie o leitor na declaração que nós, o Dr, Spix e eu, não poupamos esforço para obter alguma luz ou certeza sobre o caso. Entretanto não avistamos em parte alguma qualquer amazona, nem soubemos de pessoa fidedigna de origem europeia, fato algum que de longe se referisse a essa tradição fabulosa. Na verdade, os índios falavam a esse respeito de tal modo que, com alguma imaginação ativa, sem dificuldade poderia deduzir-se tudo que é necessário para apoiar a lenda. À pergunta: - Existem Amazonas?, a resposta deles, por via de regra, é: - Ipu (parece que sim). É, porém, a própria pergunta que já contém todas as qualidades atribuídas as Amazonas, pois não há na língua geral termo próprio para designar “amazona”, de sorte que o índio só precisa responder na afirmativa ao seu modo, e já está pronta a lenda. (...)

Nota I - Se uma circunstância parece indicar que na América do Sul existiam ou ainda existem Amazonas, semelhantes às que se atribuem à Ásia, é a extraordinária divulgação da lenda neste continente: Orellana foi avisado por um cacique, a cerca de um povo de mulheres guerreiras, que esse índio chamava de cunhá-puiára (talvez fosse ele da tribo dos Omáguas, que falavam a língua geral), e encontrou, em 1542, no Rio Cunuris, hoje Trombetas, entre os homens, mulheres combatentes. A “Relação” de Acuña acrescenta ao simples fato todas as lendas, que, desde aquela época, têm sido tão repisadas... Talvez quisessem descrever a Orellana a feição belicosa de certa tribo, contando que até as mulheres pegavam em armas, e a vista de algumas dessas mulheres, que combatiam ao lado dos maridos, nas refregas à beira do Rio Trombetas, veio completar a fábula. (SPIX e MARTIUS)

Paul Marcoy (1847)

No lugar de poucas mulheres lutando entre os índios na embocadura de um afluente insignificante do grande Rio, esse último tornou-se inteiramente povoado de mulheres guerreiras cuja audácia era comparável à das Amazonas asiáticas. Em 1744, quando desceu o Amazonas, La Condamine deteve-se na missão de São Tomé que então florescia à entrada do canal de Cuchiguara, supostamente uma das bocas do Purus. Aqui o nosso viajante teve a sorte de encontrar um Sargento-mór da artilharia chamado José da Costa Pacorilha cujo avô, dissera o homem, havia realmente visto uma dessas mulheres guerreiras do Nhamundá para as quais, por dois séculos, haviam-se dirigido os telescópios da ciência e os binóculos dos sábios. Ela tinha vindo, conforme as assertivas daquele homem, do Rio Caiamé (igarapé de águas pretas localizado entre Tefé e Jutica). Respondendo a certas questões delicadas que La Condamine ousou colocar em relação aos costumes daquelas senhoras, o Sargento-mór, sempre falando por seu avô, disse que as opiniões a respeito estavam divididas. Conforme alguns as Amazonas eram tão radicalmente modestas que repeliam a ponta de lança aqueles que vinham pedir seus favores; conforme outros, elas cediam uma vez por ano aos Guacaris - leia-se Huacaris - uma tribo de índios estabelecida na encosta da serra de Yacamiaba, entre a Guiana portuguesa e o Rio Amazonas. La Condamine, ao voltar para a França, pondo fé na narrativa do seu informante, publicou uma elaborada dissertação sobre as Amazonas americanas, oferecendo como prova da sua existência o relato original de Orellana - um pouco modificado, é verdade - e a declaração de uma índia da Sierra equatorial que dizia ter visitado as Amazonas em seu país, mas esquecera o caminho que levava até lá e não sabia dar qualquer informação sobre a sua localização geográfica. As absurdas declarações dessa mulher, feitas e publicadas na Cidade de Pasto e por ela repetida diante da Real Audiência de Quito, haviam sido transcritas por um escrivão oficial, assinadas por um juiz e diversas testemunhas e depositadas como documento oficial no arquivo da Cidade. Desses relatos colhidos por La Condamine e por ele apresentados como provas não era fácil chegar a uma conclusão racional. Mas os sábios não estavam dispostos a entregar os pontos e tiveram muito trabalho para chegar ao conhecimento dos fatos e elucidar a questão. A circunstância de as Amazonas do Nhamundá terem-se dado por satisfeitas em cruzar lanças com Orellana e nunca mais terem aparecido era um grande inconveniente. Esse enigma feriu o orgulho dos sábios empenhados numa luta contra o impossível, que optaram pela suposição de que essas mulheres guerreiras teriam migrado para alguma região desconhecida. Alguns sugeriram que, deixando o Nhamundá, elas teriam subido o Amazonas até a foz do Caiamé; outros imaginaram que elas teriam subido o Rio Trombetas até as nascentes; outros ainda que elas teriam passado do Rio Urubu ao Negro e deste para o Branco de onde, acompanhando o limite Ocidental das Guianas, teriam-se fixado na Guiana brasileira na esperança de lá poder passar em paz o resto de seus dias. Raleigh, Laet, Acunha, Feijó, Sarmiento e Coronelli escreveram copiosamente sobre o tema. Além de refutar a existência passada e presente das Amazonas americanas como um povo separado, e mesmo como um corpo separado de guerreiros, queremos salientar aqui que viragos (mulher varonil) ou marimachos (mulher com modos de homem) não são absolutamente raros no continente meridional. Muitas mulheres acompanham na guerra seus maridos e irmãos, seja contendo o seu ímpeto, seja estimulando-os quando necessário com seus gritos e invectivas (insultos). Elas recolhem as lanças que foram arremessadas, provêm os guerreiros de flechas e quando a luta termina cuidam dos feridos e despojam os mortos. Essa é a parte que as mulheres tomam na guerra entre os Murucuris no Leste, os Mayorunas no Oeste, os Otomacs no Norte e os Huatchipayris no Sul. O leitor lembrará de como a brava mulher Ticuna do Atacuary afundou a lança no jaguar que havia arrancado o escalpo do seu marido. Esse temperamento belicoso do sexo frágil na América do Sul não se limita às Índias que vivem na mata. Ele caracteriza também as suas irmãs civilizadas que vivem nas cidades serranas da costa do Pacífico. As mulheres dos soldados chilenos seguem-nos na guerra com devoção canina, embora voltem a abandoná-los quando a paz é concluída. Elas preparam a comida e os abrigos campais, participam das expedições de saque para acrescentar algum luxo ao seu pobre cardápio e ajudam a devastar as terras conquistadas. Também as “rabonas” do Peru, ao mesmo tempo “huarmipamparunacunas” e vivandeiras (mulheres que se encarregam dos mantimentos das tropas em marcha), formam batalhões às vezes mais numerosos que os esquadrões de guerreiros e os precedem como batedoras ou os seguem como retaguarda. Elas recolhem tributos nos povoados que atravessam e, quando há oportunidade, saqueiam, pilham e queimam sem o menor escrúpulo. Elas são, sem dúvida, verdadeiras Amazonas de caráter forte e selvagem. No tempo em que Francisco de Orellana e seus companheiros desceram o Rio, esses fatos eram porém ignorados pelos europeus; e a visão de mulheres lutando entre os índios, ou incitando-os à luta foi para os aventureiros tão nova quanto surpreendente. Quando eles voltaram para a Espanha, o que contaram a seus compatriotas foi, como já observei, logo modificado e desfigurado pelo exagero e pelo gosto do maravilhoso que lhes é natural e que parecem ter herdado dos Mouros, seus antepassados. É a esse costume de ampliar, enobrecer e idealizar fatos ordinários - um hábito que se tornou uma segunda natureza para os espanhóis - que as índias do Rio Nhamundá devem a honra de serem comparadas às célebres mulheres guerreiras da Trácia. Estando agora cabalmente demonstrado que as viragos de Orellana e suas descendentes viveram e vivem em todas as partes da América do Sul, elas jamais existiram em qualquer parte do continente como um corpo governante; as obras dos sábios que tratam esse conto romântico como uma história verdadeira não tem mais valor que o papel velho em que estão escritas, e que seria mais útil para fazer embrulhos num armazém. (MARCOY)


Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA); Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS); Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB); Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS); Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.

Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br - E–mail: hiramrs@terra.com.br

Imagens da Internet (Google) - fotoformatação (PVeiga).

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